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NOVOS COLETIVOS SOCIAIS: A MULTIDÃO E O AMOR

No documento CArtografias e Devires (páginas 125-132)

AO TEMPO A CONSTITUIR

Cláudia Perrone

Comecemos pela questão do novo coletivo. Há o Império e a nova ordem mundial. Dele não se pode fugir. O Império é o mercado mundial que não conhece concorrente e envolve suavemente todas as facetas da vida humana. Resta o quê? Esperar que os trabalhadores se organizem e rom­ pam o círculo infernal do capital. Mas isto se, e somente se, desejarmos criar uma “globalização democrática”, em oposição a uma “globalização capitalista” .

O Império têm, como todo o social, fronteiras flexíveis e não exis­ tem mais Estados soberanos que sustentem, por si mesmos, uma amplia­ ção de riquezas e de poder por meio da ocupação territorial. A sombra do Império caiu sobre todas as nações. Não sabemos onde ele inicia e nem onde termina. A sua pretensão é se expandir urbi et orbis, ele não conhece exterior. Como sociedade de controle mundial, o Império é a realização do mercado mundial. O mercado mundial é contrariado pelas exclusões (Hardt, 2000, p.361), ele prospera incluindo efetivos sempre crescentes. A reali­ zação do mercado mundial é a soberania imperial em sua totalidade.

Tradicionalmente, o Império é definido por um domínio ilimitado no sentido espacial; ele é ilimitado no sentido temporal, pois é posto como necessário e eterno; é ilimitado no sentido social pois o seu objeto é a pró­ pria vida. Imperceptivelmente nos tomamos cidadãos do Império. Com es­ tranhamento kafkiano, um dia acordamos pertencendo a ele.

A quase imaterialidade desta passagem têm sua explicação através do destino manifesto do Império: tornar-se a sociedade mundial de con-

Cláudia Perrone é psicóloga graduada pela PUCRS, doutora em Teoria da Literatura,

professora no Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS c no Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.

trole, a realização mesma da fluidez. Não há uma ruptura com sociedade disciplinar descrita por M ichel Foucault, mas uma intensificação e uma generalização, como acertadam ente indicou Michel Hardt, dos aparatos norm atizantes da disciplinariedade que anima interiormente nossas prá­ ticas comuns e cotidianas. N a bela imagem de Gilles Deleuze saímos dos túneis estruturais da toupeira para as infinitas ondulações da serpente. Na sociedade disciplinar, os efeitos das tecnologias biopolíticas eram par­ ciais, mas quando o poder se faz biopolítico, a vida mesm a é convertida no objeto da poder. O biopoder é a produção da vida social para mais além das normas, ele engloba não só o político da teoria clássica, mas deter­ mina uma esfera de exercício do que anula a distinção entre o público e o privado e funciona em todos os níveis e em toda a profundidade do corpo social. Seu objeto é a vida social e o vivo na sua totalidade. O biopoder rege a vida social a partir do seu interior, administra e modela a produ­ ção e a reprodução da vida mesma.

A sociedade de controle é difusa no controle do corpo dos seus cida­ dãos, com sua matriz “democrática” e imanente no campo social. Há uma interiorização das regras e imperativos pelos sujeitos mesmos via máqui­ nas culturais e informacionais elaborando a organização dos corpos em um paradoxo: um estado de alienação autônoma no qual o sujeito é minado desde o seu interior, estruturalmente via uma pseudocultura que não é mais do que um catálogo de prescrições, de palavras de ordem predeterminan­ do desejos, representações, expressões. Trata-se dos “ bens culturais” e de seus suportes: televisão, cinema, internet, jogos, vídeos.

Negri levou as idéias de Foucault sobre o biopoder até um ponto de suspensão e apresenta no seu livro O poder constituinte-, uma dimensão constitutiva e uma abertura absoluta. Negri toma a idéia de biopoder como um lugar de recomposição de resistências. No limite máximo desta sus­ pensão foucaultiana:

Estam os diante de uma con cep ção de sujeito que tem, formal e metodologicamente, características adequadas ao procedimento absoluto. Com efeito, este sujeito é potência, tempo e constituição: é potência de produzir trajetórias constitutivas, é tempo sem nenhum sentido predeter­ minado, é constituição singular. (2002, p. 46)

Negri propõe um horizonte de atividades, de resistências, de von­ tades e desejos que recusam a ordem hegem ônica e propõe caminhos constituintes. O sujeito deste caminho é a multidão, o novo coletivo so­ cial. A multidão, atravessada pelo biopoder, pode gerar formas de con- trapoder na sua conectividade imprevisível e pronta para inventar novas

formas democráticas e um novo poder constituído. O poder constituinte se encontra disperso na multidão, como potência para gerar uma contra- império. A luta preconizada é essencialmente resistência, uma subversão a partir do interior.

Já esboçamos três questões importantes: a multidão, a multidão como coletivo social e o poder constituinte. O primeiro passo é desdobrar cada uma destas idéias a partir da tese de Negri do poder constituinte como al­ ternativa à modernização capitalista na história ocidental. Não desenvol­ veremos toda a teoria sobre o poder constituinte, mas apenas um esboço mínimo para pensarmos a multidão como o novo coletivo social que per­ mite pensar não apenas os movimentos sociais, mas também Seattle ou Gênova, uma oposição imediata e acentrada contra o poder imperial. E uma interpretação ligeira pensar Seattle ou o Fórum Social Mundial de Porto Alegre como um movimento superficial e limitado. A verdadeira questão é: como estabelecer uma resistência sem o “fora”?

O poder constituinte é, fundamentalmente, o conceito de política como inovação e radical transformação da sociedade capitalista. No final dos anos 70, Negri escreveu A anomalia selvagem-ensaio sobre o poder e a potên­ cia em Spinoza que o levou a uma reflexão ontológica sobre sua experiên­ cia política. Nos primeiros anos da década de 70, ele participou de lutas operárias em Milão e Turim e promoveu uma ampla discussão sobre o de­ senvolvimento dos movimentos sociais durante esta década na Itália.

A leitura de Spinoza marca a revolução ontológica que o próprio N e­ gri apresenta em três teses:

a) Spinoza funda o materialismo moderno:

b) O filósofo holandês funda uma forma não-mistifícada de demo­ cracia, isto é, ele coloca o problema da democracia no campo do materia­ lismo como crítica de toda a mistificação do estado, acrescentando que é no protagonismo das massas que Spinoza coloca o fundamento da ação transformadora social e, ao mesmo tempo, a política. (Aída, 1998, p. 146)

c) Spinoza mostra alternativas radicais a história da metafísica, ou seja, é a idéia da anomalia selvagem, a expressão da transgressão histórica do ordenamento que não foi livremente constituído pela multidão.

Em Spinoza, o processo constituinte acumula ser, qualitativa e quan­ titativamente, ocupa novos espaços, constrói. Negri toma-se um leitor spi- noziano de Marx:

[...] há um outro Marx, dos Gründrisse, que pensa o trabalho e sua importân­ cia na produção do valor. Um Marx que pensa o desenvolvimento das forças produtivas como estando essencialmente ligado à dimensão do trabalho. O

que desenvolve processos sociais, produzindo subjetividades coletivas, o que comumente chamado produção da cultura. (In; Costa, 1993, p.40-41) A teoria do poder constituinte é desenvolvida a partir da relação en­ tre multidão e potência. O poder constituinte é um sujeito para Negri. Este sujeito é a subjetividade coletiva que desprende-se das condições e con­ tradições aos quais sua força constituinte é submetida nos momentos cru­ ciais da história política e constitucional (2001, p.447). Isto porque a mul­ tidão é a antítese contínua da progressão constitucional e o sujeito consti­ tuinte não se submete à permanência estática da vida constitucional. Em outras palavras, a multidão é descontinuidade, é ruptura e inovação.

O modemo é, de acordo com Negri, a negação da possibilidade de que a multidão possa se expressar como subjetividade. O modemo é en­ tendido como o pensamento totalizador que assume a criatividade indivi­ dual e coletiva para reinscrevê-la na racionalidade instrumental do modo capitalista de produção. A potência da multidão provoca medo e a política modema, na acepção de Negri, nasce não da administração, mas do medo. A racionalidade não é apenas um instrumento de ordenação, mas é funda­ mentalmente um instrumento de repressão. O poder se nutre da potência constituinte e sem ela não existiria. Para lidar com essa potência, o poder realiza o isolamento da potência da multidão no social: esta é a segunda característica do modemo. Esta operação implica na neutralização da mul­ tidão no político e exige o seu confinamento no social. Assistimos, então, o esquadrinhamento do político pelas disciplinas, quer ele se denomine economia política, sociologia, psicologia, sua tarefa é sempre separar a potência do social da potência do político.

A sede das determinações da nova racionalidade é transferida para a ontologia. E preciso reencontrar as bases da nova racionalidade onde flui o trabalho vivo, onde o social encontra a sua respiração vital - no lugar onde se formam “as seqüências do agir e as pulsações criadoras”. A forma da nova racionalidade, seu locus ontológico, é a relação entre a potência e a multidão. Esta é a tram a ontológica de invenção da subjetividade, que configura a produção social, engloba o social e o econômico no político, abarca a organização da produção e a organização política de maneira cons­ titutiva. Aqui é importante marcar a diferença entre multidão e classe so­ cial. A multidão é um conjunto de múltiplas emergências, de forças e sin­ gularidades. A classe social forma-se como conceito a partir da idéia de massa modema, a partir da ilusão de uma identidade orgânica. N a multi­ dão o conceito de classe não é dispensado, é antes problematizado pelas subjetividades que pensam, produzem valor e reproduzem o mundo e a vida, são singularidades em obra que possuem o poder do trabalho imaterial.

A noção de trabalho imaterial é desenvolvida por Negri, associada à constituição de um sujeito antagônico ao poder do capital e do Império, Negri desenvolve a partir do reconhecimento de um estranho paradoxo. É sobre a derrota do operário fordista e sobre o reconhecimento da centrali- dade do trabalho vivo mais e mais intelectualizado na produção que tem- se constituído as variantes do modelo pós-fordista. Na grande empresa, restruturada, o trabalho é um trabalho, em níveis diferentes, a capacidade de eleger entre diversas alternativas e, portanto, a responsabilidade de al­ gumas decisões. O conceito de interface dá conta desta atividade. É a in­ terface entre as diferentes funções, entre os diferentes equipamentos, en­ tre os níveis de hierarquia, etc. Como é prescrito pelo novo management, hoje é a alma do operário o que deve prevalecer na fábrica. É sua persona­ lidade, sua subjetividade o que deve ser organizado e dirigido. Qualidade e quantidade de trabalho são reorganizados ao redor de sua imaterialida­ de. Esta transformação do trabalho operário em trabalho de controle, de gestão de informação, de capacidade de decisão requer a subjetividade e atinge os sujeitos de maneira diferente segundo suas funções. Assim, o ci­ clo do trabalho imaterial está pré-constituído por uma força de trabalho social autônoma, capaz de organizar seu próprio trabalho e suas próprias relações. Nenhuma organização científica do trabalho pode determinar antecipadamente esse saber fazer e esta criatividade produtiva social que constituem hoje a base de toda a capacidade de empreendimento.

Para Negri, vivemos a época da hegemonia da “intelectualidade de massas”. Todo membro da sociedade é um produtor de mais-valia, inde­ pendentemente de sua condição de assalariado, encontrando-se em seu cérebro a principal força produtiva. N este sentido, ao contrário de autores que sustentam a tese do “ fim do trabalho”, e deduzem dela a impossibili­ dade de constituição de um sujeito com possibilidades de emancipação, para Negri, a multidão é o “proletariado” autônomo, é o conjunto das classes subalternas. Da potência da multidão vêm a força para um antagonismo não dialético, mas capaz de se produzir no aqui e no agora, vide Seattle e C iênova. O trabalho imaterial não necessita mais do capital e de sua ordem social para existir, mas se apresenta como livre e construtivo. Ao dizer que esta nova força de trabalho não pode ser definida no interior de uma rela­ ção dialética é preciso explicitar que a relação mantida com o capital não é apenas antagônica, ela está mais além do antagonismo, ela é constitutiva de uma realidade diversa.. O antagonismo se apresenta sob a forma poder constituinte que se revela como outro do poder constituído.

O movimento constituinte é ininterrupto, a sua construção pela base atravessa as emergências singulares e coordena a ação destas. Neste pro­ cesso não se aplicam normas gerais e abstratas, mas se organizam conste­

lações de interesses, acordos e relações que são permanentemente reavalia­ das. Se existem regras de procedimento, elas mesmas são constantemente repensadas. A expansão contínua da multidão se dá por atividades empre­ endedoras, num uso certamente irônico desta palavra por Negri, que atra­ vessam o social, o político, o jurídico e o institucional. O procedimento é a forma concreta que cada expressão de subjetividade assume ao relacio- nar-se com as demais. O procedimento dissolve o mito constitutivo do con­ trato social. Mas não apenas isto - há a interpretação e o desenvolvimento do seu movimento genealógico é como imbricação de paixões e insti­ tuições, de interesses e capacidades empreendedoras que o contrato social mitificou, que o procedimento propõe um tecido ontológico aberto.

A democracia do biopolítico não é formal, mas absoluta, imanente à multidão que considera toda transcendência uma variação do poder de do­ minação. Negri aponta para uma diferença crucial entre o empreendedor biopolítico e o empreendedor parasita. O empreendedor biopolítico é on­ tológico, vela pela construção de uma trama produtiva. Esta construção é encontrada em algumas experiências de comunidades, de coletividades, cooperativas ou de experiências de coletividades solidárias. O empreen­ dedor biopolítico é aquele que organiza o conjunto das condições de re­ produção da vida e da sociedade, e não somente da “economia” . É um empreendedor de subjetividade e igualdade.

O poder constituinte não se forma com a redução de singularidades ao uno, mas como lugar de sua imbricação e de sua expansão. Na riqueza das infinitas expressões da multidão está sua força criadora. A nova racio­ nalidade da multidão se configura como lógica das singularidades em pro­ cesso, em fusão, em contínua superação. Ela contraria a uniformidade. A desutopia ajuda a compreender o processo: a partir dela a racionalidade revela-se como impossibilidade de uniformizar o mundo da vida no ins­ tante em que o reconstrói criativamente. A uniformidade é o pecado da uto­ pia e mostra o seu enraizamento no moderno bem como seu déficit como elemento destrutivo das próprias condições do devir. O poder constituinte sempre rompe a uniformidade e sua criatividade busca a diversidade como a racionalidade de sua consistência ontológica.

A multidão dá voz a racionalidade do concreto, ou seja, a cooperação é a articulação do número infinito de singularidades que entram na com­ posição produtiva do novo. Cooperação é inovação, é riqueza, é a base da expressão da multidão. Ela é a forma pela qual as singularidades produ­ zem o novo, o rico, o potente, a única forma de reprodução da vida. A coo­ peração é o valor central da nova racionalidade.

O poder constituinte, assim, cum pre a sua função ontológica: cons­ truir o ser novo, construir uma nova natureza na história e um novo mundo

da vida. N este momento podem os repensar o do poder constituinte: ele é a definição de um paradigm a da política. E a política é a potência onto­ lógica de uma multidão de singularidades operantes. Chegamos ao nú­ cleo duro do argumento de Negri: todas as problematizações tradicionais não souberam justificar a potência da comunidade. O poder constituinte m uda radicalmente o terreno da definição ao transferir da política para a ontologia a criação do ser novo. O ntologicam ente estam os diante da multidão das singularidades e do trabalho criador de potência. A política é o lugar dessa imbricação, na medida em que se apresenta como um pro­ cesso criador, um processo constituinte. Não há mediação, termo tão caro ao pensam ento da esquerda, mas genealogia, uma produção coextensiva e cooperativa da comunidade e da força, ou, da multidão e da potência. A dialética não dá conta deste processo que abre infinitamente, e não fe­ cha, novas dimensões do ser, reconhecendo-se e operando a cada momen­ to como desutopia constitutiva.

Negri, discute, ainda, a temporalidade do poder constituinte. É a pre­ cipitação no tempo que revela a criação contínua da figura ontológica do poder constituinte como política, ou seja, como matriz de uma expansão de inter-relações entre singularidades, sempre renovadas e abertas. O novo tempo é definido por Negri como a alma do poder constituinte na medi­ da em que este faz do mundo da vida um a essência dinâmica, síntese sem ­ pre renovada da natureza e da história. A política é o horizonte da revo­ lução que não termina, mas continua a ser aberta pelo tempo. Viver uma ética de transformação, que se expressa em um desejo de participação, revela o amor pelo tempo a constituir. E a multidão: o amor ao tempo a constituir. Cabe a nós acelerar esta potência e, no amor ao tempo, inter­ pretar sua necessidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: 34, 2000. COSTA, Rogério (org.). Limiares do contemporâneo. São Paulo: Escuta, 1993. HARDT, M.;NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

EAZZARATO. M.; NEGRI.A. O trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DPA, 2001. NEGRI, Antonio. Exílio. São Paulo: Iluminuras, 2001.

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QUINTAR, Aída. A potência do poder constituinte cin Negri. In: I.ua nova, São Pau­ lo, n.43, p. 131-155, 1998.

TRABALHO E CONTEMPORANEIDADE:

No documento CArtografias e Devires (páginas 125-132)