AO TEMPO A CONSTITUIR
Cláudia Perrone
Comecemos pela questão do novo coletivo. Há o Império e a nova ordem mundial. Dele não se pode fugir. O Império é o mercado mundial que não conhece concorrente e envolve suavemente todas as facetas da vida humana. Resta o quê? Esperar que os trabalhadores se organizem e rom pam o círculo infernal do capital. Mas isto se, e somente se, desejarmos criar uma “globalização democrática”, em oposição a uma “globalização capitalista” .
O Império têm, como todo o social, fronteiras flexíveis e não exis tem mais Estados soberanos que sustentem, por si mesmos, uma amplia ção de riquezas e de poder por meio da ocupação territorial. A sombra do Império caiu sobre todas as nações. Não sabemos onde ele inicia e nem onde termina. A sua pretensão é se expandir urbi et orbis, ele não conhece exterior. Como sociedade de controle mundial, o Império é a realização do mercado mundial. O mercado mundial é contrariado pelas exclusões (Hardt, 2000, p.361), ele prospera incluindo efetivos sempre crescentes. A reali zação do mercado mundial é a soberania imperial em sua totalidade.
Tradicionalmente, o Império é definido por um domínio ilimitado no sentido espacial; ele é ilimitado no sentido temporal, pois é posto como necessário e eterno; é ilimitado no sentido social pois o seu objeto é a pró pria vida. Imperceptivelmente nos tomamos cidadãos do Império. Com es tranhamento kafkiano, um dia acordamos pertencendo a ele.
A quase imaterialidade desta passagem têm sua explicação através do destino manifesto do Império: tornar-se a sociedade mundial de con-
Cláudia Perrone é psicóloga graduada pela PUCRS, doutora em Teoria da Literatura,
professora no Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS c no Curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
trole, a realização mesma da fluidez. Não há uma ruptura com sociedade disciplinar descrita por M ichel Foucault, mas uma intensificação e uma generalização, como acertadam ente indicou Michel Hardt, dos aparatos norm atizantes da disciplinariedade que anima interiormente nossas prá ticas comuns e cotidianas. N a bela imagem de Gilles Deleuze saímos dos túneis estruturais da toupeira para as infinitas ondulações da serpente. Na sociedade disciplinar, os efeitos das tecnologias biopolíticas eram par ciais, mas quando o poder se faz biopolítico, a vida mesm a é convertida no objeto da poder. O biopoder é a produção da vida social para mais além das normas, ele engloba não só o político da teoria clássica, mas deter mina uma esfera de exercício do que anula a distinção entre o público e o privado e funciona em todos os níveis e em toda a profundidade do corpo social. Seu objeto é a vida social e o vivo na sua totalidade. O biopoder rege a vida social a partir do seu interior, administra e modela a produ ção e a reprodução da vida mesma.
A sociedade de controle é difusa no controle do corpo dos seus cida dãos, com sua matriz “democrática” e imanente no campo social. Há uma interiorização das regras e imperativos pelos sujeitos mesmos via máqui nas culturais e informacionais elaborando a organização dos corpos em um paradoxo: um estado de alienação autônoma no qual o sujeito é minado desde o seu interior, estruturalmente via uma pseudocultura que não é mais do que um catálogo de prescrições, de palavras de ordem predeterminan do desejos, representações, expressões. Trata-se dos “ bens culturais” e de seus suportes: televisão, cinema, internet, jogos, vídeos.
Negri levou as idéias de Foucault sobre o biopoder até um ponto de suspensão e apresenta no seu livro O poder constituinte-, uma dimensão constitutiva e uma abertura absoluta. Negri toma a idéia de biopoder como um lugar de recomposição de resistências. No limite máximo desta sus pensão foucaultiana:
Estam os diante de uma con cep ção de sujeito que tem, formal e metodologicamente, características adequadas ao procedimento absoluto. Com efeito, este sujeito é potência, tempo e constituição: é potência de produzir trajetórias constitutivas, é tempo sem nenhum sentido predeter minado, é constituição singular. (2002, p. 46)
Negri propõe um horizonte de atividades, de resistências, de von tades e desejos que recusam a ordem hegem ônica e propõe caminhos constituintes. O sujeito deste caminho é a multidão, o novo coletivo so cial. A multidão, atravessada pelo biopoder, pode gerar formas de con- trapoder na sua conectividade imprevisível e pronta para inventar novas
formas democráticas e um novo poder constituído. O poder constituinte se encontra disperso na multidão, como potência para gerar uma contra- império. A luta preconizada é essencialmente resistência, uma subversão a partir do interior.
Já esboçamos três questões importantes: a multidão, a multidão como coletivo social e o poder constituinte. O primeiro passo é desdobrar cada uma destas idéias a partir da tese de Negri do poder constituinte como al ternativa à modernização capitalista na história ocidental. Não desenvol veremos toda a teoria sobre o poder constituinte, mas apenas um esboço mínimo para pensarmos a multidão como o novo coletivo social que per mite pensar não apenas os movimentos sociais, mas também Seattle ou Gênova, uma oposição imediata e acentrada contra o poder imperial. E uma interpretação ligeira pensar Seattle ou o Fórum Social Mundial de Porto Alegre como um movimento superficial e limitado. A verdadeira questão é: como estabelecer uma resistência sem o “fora”?
O poder constituinte é, fundamentalmente, o conceito de política como inovação e radical transformação da sociedade capitalista. No final dos anos 70, Negri escreveu A anomalia selvagem-ensaio sobre o poder e a potên cia em Spinoza que o levou a uma reflexão ontológica sobre sua experiên cia política. Nos primeiros anos da década de 70, ele participou de lutas operárias em Milão e Turim e promoveu uma ampla discussão sobre o de senvolvimento dos movimentos sociais durante esta década na Itália.
A leitura de Spinoza marca a revolução ontológica que o próprio N e gri apresenta em três teses:
a) Spinoza funda o materialismo moderno:
b) O filósofo holandês funda uma forma não-mistifícada de demo cracia, isto é, ele coloca o problema da democracia no campo do materia lismo como crítica de toda a mistificação do estado, acrescentando que é no protagonismo das massas que Spinoza coloca o fundamento da ação transformadora social e, ao mesmo tempo, a política. (Aída, 1998, p. 146)
c) Spinoza mostra alternativas radicais a história da metafísica, ou seja, é a idéia da anomalia selvagem, a expressão da transgressão histórica do ordenamento que não foi livremente constituído pela multidão.
Em Spinoza, o processo constituinte acumula ser, qualitativa e quan titativamente, ocupa novos espaços, constrói. Negri toma-se um leitor spi- noziano de Marx:
[...] há um outro Marx, dos Gründrisse, que pensa o trabalho e sua importân cia na produção do valor. Um Marx que pensa o desenvolvimento das forças produtivas como estando essencialmente ligado à dimensão do trabalho. O
que desenvolve processos sociais, produzindo subjetividades coletivas, o que comumente chamado produção da cultura. (In; Costa, 1993, p.40-41) A teoria do poder constituinte é desenvolvida a partir da relação en tre multidão e potência. O poder constituinte é um sujeito para Negri. Este sujeito é a subjetividade coletiva que desprende-se das condições e con tradições aos quais sua força constituinte é submetida nos momentos cru ciais da história política e constitucional (2001, p.447). Isto porque a mul tidão é a antítese contínua da progressão constitucional e o sujeito consti tuinte não se submete à permanência estática da vida constitucional. Em outras palavras, a multidão é descontinuidade, é ruptura e inovação.
O modemo é, de acordo com Negri, a negação da possibilidade de que a multidão possa se expressar como subjetividade. O modemo é en tendido como o pensamento totalizador que assume a criatividade indivi dual e coletiva para reinscrevê-la na racionalidade instrumental do modo capitalista de produção. A potência da multidão provoca medo e a política modema, na acepção de Negri, nasce não da administração, mas do medo. A racionalidade não é apenas um instrumento de ordenação, mas é funda mentalmente um instrumento de repressão. O poder se nutre da potência constituinte e sem ela não existiria. Para lidar com essa potência, o poder realiza o isolamento da potência da multidão no social: esta é a segunda característica do modemo. Esta operação implica na neutralização da mul tidão no político e exige o seu confinamento no social. Assistimos, então, o esquadrinhamento do político pelas disciplinas, quer ele se denomine economia política, sociologia, psicologia, sua tarefa é sempre separar a potência do social da potência do político.
A sede das determinações da nova racionalidade é transferida para a ontologia. E preciso reencontrar as bases da nova racionalidade onde flui o trabalho vivo, onde o social encontra a sua respiração vital - no lugar onde se formam “as seqüências do agir e as pulsações criadoras”. A forma da nova racionalidade, seu locus ontológico, é a relação entre a potência e a multidão. Esta é a tram a ontológica de invenção da subjetividade, que configura a produção social, engloba o social e o econômico no político, abarca a organização da produção e a organização política de maneira cons titutiva. Aqui é importante marcar a diferença entre multidão e classe so cial. A multidão é um conjunto de múltiplas emergências, de forças e sin gularidades. A classe social forma-se como conceito a partir da idéia de massa modema, a partir da ilusão de uma identidade orgânica. N a multi dão o conceito de classe não é dispensado, é antes problematizado pelas subjetividades que pensam, produzem valor e reproduzem o mundo e a vida, são singularidades em obra que possuem o poder do trabalho imaterial.
A noção de trabalho imaterial é desenvolvida por Negri, associada à constituição de um sujeito antagônico ao poder do capital e do Império, Negri desenvolve a partir do reconhecimento de um estranho paradoxo. É sobre a derrota do operário fordista e sobre o reconhecimento da centrali- dade do trabalho vivo mais e mais intelectualizado na produção que tem- se constituído as variantes do modelo pós-fordista. Na grande empresa, restruturada, o trabalho é um trabalho, em níveis diferentes, a capacidade de eleger entre diversas alternativas e, portanto, a responsabilidade de al gumas decisões. O conceito de interface dá conta desta atividade. É a in terface entre as diferentes funções, entre os diferentes equipamentos, en tre os níveis de hierarquia, etc. Como é prescrito pelo novo management, hoje é a alma do operário o que deve prevalecer na fábrica. É sua persona lidade, sua subjetividade o que deve ser organizado e dirigido. Qualidade e quantidade de trabalho são reorganizados ao redor de sua imaterialida de. Esta transformação do trabalho operário em trabalho de controle, de gestão de informação, de capacidade de decisão requer a subjetividade e atinge os sujeitos de maneira diferente segundo suas funções. Assim, o ci clo do trabalho imaterial está pré-constituído por uma força de trabalho social autônoma, capaz de organizar seu próprio trabalho e suas próprias relações. Nenhuma organização científica do trabalho pode determinar antecipadamente esse saber fazer e esta criatividade produtiva social que constituem hoje a base de toda a capacidade de empreendimento.
Para Negri, vivemos a época da hegemonia da “intelectualidade de massas”. Todo membro da sociedade é um produtor de mais-valia, inde pendentemente de sua condição de assalariado, encontrando-se em seu cérebro a principal força produtiva. N este sentido, ao contrário de autores que sustentam a tese do “ fim do trabalho”, e deduzem dela a impossibili dade de constituição de um sujeito com possibilidades de emancipação, para Negri, a multidão é o “proletariado” autônomo, é o conjunto das classes subalternas. Da potência da multidão vêm a força para um antagonismo não dialético, mas capaz de se produzir no aqui e no agora, vide Seattle e C iênova. O trabalho imaterial não necessita mais do capital e de sua ordem social para existir, mas se apresenta como livre e construtivo. Ao dizer que esta nova força de trabalho não pode ser definida no interior de uma rela ção dialética é preciso explicitar que a relação mantida com o capital não é apenas antagônica, ela está mais além do antagonismo, ela é constitutiva de uma realidade diversa.. O antagonismo se apresenta sob a forma poder constituinte que se revela como outro do poder constituído.
O movimento constituinte é ininterrupto, a sua construção pela base atravessa as emergências singulares e coordena a ação destas. Neste pro cesso não se aplicam normas gerais e abstratas, mas se organizam conste
lações de interesses, acordos e relações que são permanentemente reavalia das. Se existem regras de procedimento, elas mesmas são constantemente repensadas. A expansão contínua da multidão se dá por atividades empre endedoras, num uso certamente irônico desta palavra por Negri, que atra vessam o social, o político, o jurídico e o institucional. O procedimento é a forma concreta que cada expressão de subjetividade assume ao relacio- nar-se com as demais. O procedimento dissolve o mito constitutivo do con trato social. Mas não apenas isto - há a interpretação e o desenvolvimento do seu movimento genealógico é como imbricação de paixões e insti tuições, de interesses e capacidades empreendedoras que o contrato social mitificou, que o procedimento propõe um tecido ontológico aberto.
A democracia do biopolítico não é formal, mas absoluta, imanente à multidão que considera toda transcendência uma variação do poder de do minação. Negri aponta para uma diferença crucial entre o empreendedor biopolítico e o empreendedor parasita. O empreendedor biopolítico é on tológico, vela pela construção de uma trama produtiva. Esta construção é encontrada em algumas experiências de comunidades, de coletividades, cooperativas ou de experiências de coletividades solidárias. O empreen dedor biopolítico é aquele que organiza o conjunto das condições de re produção da vida e da sociedade, e não somente da “economia” . É um empreendedor de subjetividade e igualdade.
O poder constituinte não se forma com a redução de singularidades ao uno, mas como lugar de sua imbricação e de sua expansão. Na riqueza das infinitas expressões da multidão está sua força criadora. A nova racio nalidade da multidão se configura como lógica das singularidades em pro cesso, em fusão, em contínua superação. Ela contraria a uniformidade. A desutopia ajuda a compreender o processo: a partir dela a racionalidade revela-se como impossibilidade de uniformizar o mundo da vida no ins tante em que o reconstrói criativamente. A uniformidade é o pecado da uto pia e mostra o seu enraizamento no moderno bem como seu déficit como elemento destrutivo das próprias condições do devir. O poder constituinte sempre rompe a uniformidade e sua criatividade busca a diversidade como a racionalidade de sua consistência ontológica.
A multidão dá voz a racionalidade do concreto, ou seja, a cooperação é a articulação do número infinito de singularidades que entram na com posição produtiva do novo. Cooperação é inovação, é riqueza, é a base da expressão da multidão. Ela é a forma pela qual as singularidades produ zem o novo, o rico, o potente, a única forma de reprodução da vida. A coo peração é o valor central da nova racionalidade.
O poder constituinte, assim, cum pre a sua função ontológica: cons truir o ser novo, construir uma nova natureza na história e um novo mundo
da vida. N este momento podem os repensar o do poder constituinte: ele é a definição de um paradigm a da política. E a política é a potência onto lógica de uma multidão de singularidades operantes. Chegamos ao nú cleo duro do argumento de Negri: todas as problematizações tradicionais não souberam justificar a potência da comunidade. O poder constituinte m uda radicalmente o terreno da definição ao transferir da política para a ontologia a criação do ser novo. O ntologicam ente estam os diante da multidão das singularidades e do trabalho criador de potência. A política é o lugar dessa imbricação, na medida em que se apresenta como um pro cesso criador, um processo constituinte. Não há mediação, termo tão caro ao pensam ento da esquerda, mas genealogia, uma produção coextensiva e cooperativa da comunidade e da força, ou, da multidão e da potência. A dialética não dá conta deste processo que abre infinitamente, e não fe cha, novas dimensões do ser, reconhecendo-se e operando a cada momen to como desutopia constitutiva.
Negri, discute, ainda, a temporalidade do poder constituinte. É a pre cipitação no tempo que revela a criação contínua da figura ontológica do poder constituinte como política, ou seja, como matriz de uma expansão de inter-relações entre singularidades, sempre renovadas e abertas. O novo tempo é definido por Negri como a alma do poder constituinte na medi da em que este faz do mundo da vida um a essência dinâmica, síntese sem pre renovada da natureza e da história. A política é o horizonte da revo lução que não termina, mas continua a ser aberta pelo tempo. Viver uma ética de transformação, que se expressa em um desejo de participação, revela o amor pelo tempo a constituir. E a multidão: o amor ao tempo a constituir. Cabe a nós acelerar esta potência e, no amor ao tempo, inter pretar sua necessidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: 34, 2000. COSTA, Rogério (org.). Limiares do contemporâneo. São Paulo: Escuta, 1993. HARDT, M.;NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
EAZZARATO. M.; NEGRI.A. O trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DPA, 2001. NEGRI, Antonio. Exílio. São Paulo: Iluminuras, 2001.
______. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DPA, 2002.
QUINTAR, Aída. A potência do poder constituinte cin Negri. In: I.ua nova, São Pau lo, n.43, p. 131-155, 1998.