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AS DOBRAS DA SUBJETIVAÇÃO CAPITALÍSTICA A objetivação do social, característica da segunda configuração, é

No documento CArtografias e Devires (páginas 162-166)

INVENTANDO UMA OUTRA PSICOLOGIA SOCIAL

2. AS DOBRAS DA SUBJETIVAÇÃO CAPITALÍSTICA A objetivação do social, característica da segunda configuração, é

acompanhada por um outro movimento complementar que é a objetiva­ ção do indivíduo. Estes dois movimentos assinalam a emergência de um novo território do saber que, segundo Foucault (1966), marca o advento das ciências humanas. Essa relação de complementaridade pode ser resu­ mida da seguinte m aneira ao processo de objetivação do social corres­ ponde um processo de objetivação do indivíduo.

A correspondência entre esses dois processos pode ser explicada por­ que ambos são expressões distintas de um mesmo modo de subjetivação, isto é, da produção de um mesmo modo de existência. Ao utilizarmos a palavra subjetivação estamos considerando que esta expressão constitui, “um modo intensivo e não um sujeito pessoal” (Deleuze, 1990, p. 135).

Um processo de subjetivação traduz, portanto, o modo singular pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de for­ ças. Podemos dizer que cada formação histórica irá dobrar diferentémem te a composição de forças que a atravessam dando-lhe um sentido particu­ lar. Isso explica por que um mesmo elemento (a noção de social, por exem­ plo) pode adquirir uma configuração distinta em função do modo pelo qual se produz a vergadura ou o plissamento das forças que o atravessam.

A idéia de dobra é portanto fundamental para entendermos o que vem a ser um processo de subjetivação. Ela toma-se um importante operador conceituai para pensar a produção, ao longo da história, de diferentes mo­ dos de constituição da relação consigo e com o mundo, ou seja, dos dife­ rentes modos de produção da subjetividade.

A dobra, neste caso, deve. ser tomada como um conceito filosófico e é através do pensamento deleuziano - sobretudo nas obras dedicadas a Fou­ cault (Deleuze, 1986) e a Leibniz (Deleuze, 1988) - que encontraremos

1 Os conceitos de “anom ia social” e de “alma coletiva” , criados respectivamente no cam­ po da sociologia por D urkheim e no cam po da psicologia por Le Bon, buscam oferecer uma explicação para o fenômeno das m ultidões na segunda metade do século XIX.

sua expressão. Nessas obras, Deleuze procura apreender a problemática que atravessa o campo de investigação destes dois filósofos em um determina­ do momento, mostrando que tanto as tecnologias de si propostas por Fou- cault como a mônada leibniziana exprimem a idéia de multiplicidade e de criação permanente que vão forjar o conceito deleuziano de dobra.

Para Deleuze (19881. tudo no mundo existe dobrado. Sendo assim,

nós poderíam os dizer que são essas múltiplas dobraduras do tecido social ~ que vão produzir diferentes modos de expressão da subjetividade. A do­

bra, neste caso, pode ser caracterizada como o ponto de inflexão através do qual se constitui um determinado tipo de relação consigo; o modo pelo qual se produz um Dentro do Fora (cf. Deleuze, 1986, p. 104). A noção de dobra não é portanto independente do campo social: a produção de um certo tipo de relação consigo e com o mundo é coextensiva às forças que atra­ vessam/constituem um determinado arranjo do tecido social.

Deleuze (1986) considera que há quatro tipos de dobras presentes em qualquer modo de subjetivação. A primeira concerne à “parte material de nós mesmos que vai ser cercada, apanhada na dobra” (o corpo, entre os gregos; a carne, entre os cristãos, e assim por diante). A segunda é a “regra singular” pela qual “a relação de forças é vergada para tomar-se relação ft consigo” (pode ser tanto uma regra “divina”, “racional”, “estética”, ou outra, conforme o caso). A terceira é a maneira pela qual se constitui uma relação entre saber e verdade. A quarta se refere àquilo que o sujeito espe­ ra do exterior. Esta última dobra já pressupõe um modo de subjetivação calcado na idéia de uma divisão entre o dentro e o fora, característico das formações ocidentais (cf. Deleuze, 1986, p. 111-114).

Essas quatro dobras propostas por Deleuze (1986) nos permitem com­ preender a singularidade do modo de subjetivação que caracteriza esta zona de intensidades de onde emerge aquele duplo movimento de objetivação: a objetivação do social e a objetivação do indivíduo.

Vejamos agora como essas quatro dobras vão se atualizar no modo de subjetivação específico à segunda configuração do social, ou seja, no modo de subjetivação capitalístico:2 é preciso disciplinar o corpo (primei­ ra dobra) vinculando-o a um lugar preciso na produção a partir da vigi-

2 O termo “capitalístico” foi forjado por Félix Guattari (1986) durante os anos 70 para designar um modo de subjetivação que não se achava apenas ligado às sociedades ditas capitalistas, m as que caracterizava também as sociedades, até aquele momento, ditas so­ cialistas, bem como as dos países do Terceiro M undo, já que todas elas viveriam numa espécie de dependência e contradependência do modelo capitalista. Por isso, do ponto de vista de uma economia subjetiva, não haveria diferença entre essas sociedades, pois elas reproduziriam 11111 m esm o tipo dc investimento do desejo no campo social

lância constante do espaço que ele ocupa em cada momento (na escola, na fábrica, na prisão, etc.), e nele imprimindo uma cadência ritmada no tem­ po a partir de uma programação de seus gestos, que será tanto mais eficaz quanto mais se tome automática e retire todo vestígio de vontade do cor­ po. Por outro lado, é recorrendo a um modelo de racionalidade, organiza­ do em tomo de uma regra de equivalência geral (segunda dobra), que pro­ duz, ao mesmo tempo, uma segmentação e uma homogênese dos univer­ sos de valor, que as forças que atravessam esse campo de intensidades se­ rão dobradas para constituir um novo tipo de relação consigo, que, daqui para a frente, será territorializada sobre a idéia de individuo. Esse novo território subjetivo permite a esse “indivíduo” reconhecer-se ao mesmo tempo como sujeito e objeto de conhecimento (terceira dobra). Essas três dobras preparam o ponto de inflexão para a criação da quarta dobra desse modo de subjetivação, garantindo, a partir daí, sua operacionalidade. A

quarta dobra se constitui por um movimento de dupla captura: ao mesmo tempo em que são criadas duas séries dicotômicas - o indivíduo, de um lado, e a sociedade, de outro - , não cessam de proliferar todos os tipos de mediação para estancar o trabalho de hibridação entre essas duas séries, produzindo assim o que poderíamos chamar de uma individualização do social caracterizada pelo achatamento e a sistemática homogeneização da experiência subjetiva.3

Essas quatro dobras não podem ser dissociadas: cada dobra segue a outra e a precede, tudo isso simultaneamente, pois elas fazem parte de um mesmo campo de intensidades e são expressões de um certo tipo de rela­ ção de forças que, neste caso, caracteriza a subjetivação capitalística.

A principal característica desse modo de subjetivação é a de “em­ baralhar’' todos os códigos: na medida em que opera a apropriação das forças produtivas dentro de novas relações de produção sustentadas pela divisão entre o dentro e o fora, provoca, simultaneamente, a abolição sis­ temática de toda relação a uma exterioridade. A arm adilha da subjetiva­ ção capitalística traduzir-se-ia portanto em um movimento de dupla cap­

3 Podemos dizer que a expressão “psicologia social” atualiza a lógica inerente a esse modo de subjetivação: ela pressupõe que se aceita a separação entre individuo e socieda­ de como dois pólos distintos, dilatando assim cada vez m ais a experiência de uma subje­ tividade privatizada a partir de uma proliferação da idéia de individuo e de uma naturali­ zação da noção de social. Em função dessa separação, e inclusive para alirm á-la, a m aior parte das teorizações no campo da psicologia social não cessa de fazer proliferar todo tipo de mediação entre esses dois pólos (o que, em realidade, não faz senão aum entar a distân­ cia entre eles), construindo assim todo um campo de conhecimentos a partir de um pro­ blema mal colocado, ou seja, a partir dessa dicotomia.

tura que implicaria forjar a separação entre estes dois registros (o dentro e o fora) e, ao mesmo tempo, romper com tal divisão já que a lógica ine­ rente à dinâmica capitalística é uma lógica inclusiva, fundamentalmente desterritorializada e homogeneizante, que não cessa de fabricar riqueza e miséria ao mesmo tempo e em todos os lugares. Isso significa que a lógica capitalística não opera por exclusão e sim a partir de uma estraté­ gia de inclusão diferencial (cf. Hardt, 2000, p.365). Deste modo, nada escapa à ubiqüidade do seu poder.

A partir da segunda metade do século XX podemos perceber um novo tipo de arranjo dessa lógica capitalística, traçando o esboço de uma tercei­ ra configuração do social. Isso não significa que o campo de intensidades das demais configurações não continue reverberando na experiência con­ temporânea: as problemáticas que atravessam respectivamente o campo as- sistencial (primeira configuração) e o campo dos sistemas de regulação das relações entre trabalho e capital (segunda configuração) continuam presen­ tes. Elas simplesmente perdem seu impacto como “princípio organizador” de um certo arranjo do campo social em função de outros elementos que passam a habitar este campo, remetendo a novos problemas que, por sua vez, engendram uma outra configuração do social, marcada agora pela volatilização do poder capitalístico.

Nós podemos dizer que esta terceira configuração caracteriza-se ba­ sicamente por uma revolução tecnológica e cibernética que produz um novo arranjo do tecido social a partir do advento de novas tecnologias resultan­ tes dos avanços da informática. Este conjunto de novas tecnologias aliado a uma concentração de poder do capital financeiro internacional dá condi­ ções para a criação de uma nova ordem mundial, um mega-mercado pla­ netário conhecido pela expressão “globalização”. A globalização implica não somente a eliminação de limites bem definidos (“ausência de frontei­ ras”)4 como também uma aceleração da velocidade que se traduz pela si­ multaneidade dos acontecimentos. Deste modo, podemos dizer que a prin­ cipal característica dessa terceira configuração do social é estabelecer no­ vas coordenadas nas relações de tempo-espaço, criando uma superfície lisa para a expansão “ilimitada” do capital que vai sem dúvida afetar os modos de existência em escala planetária.

Vejamos como as quatro dobras de que falamos anteriormente, atua­ lizam a lógica subjacente ao modo de subjetivação capitalístico nessa ter­ ceira configuração do social: chegamos a um estágio de modelagem con­

4 Evidentemente que esta elim inação das fronteiras apenas existe quando se trata de de­ fender os interesses dos países que ditam as regras deste modelo, configurando-se portan­ to num a liberalização seletiva das regras do com ércio mundial.

tínua e visibilidade permanente que se produz através de um culto exacer­ bado do próprio corpo (primeira dobra). A regra singular que norteia o tipo de relação consigo (segunda dobra), calcada sobre o registro de uma equi­ valência geral dos valores, se desenvolve numa perspectiva cada vez mais intimista, atualizando-se sobre o que Foucault (in Dreyfus e Rabinow, p.333) denomina de “nossos sentimentos” A confissão pública toma-se, assim, a forma de expressão por excelência desse intimismo exacerbado. Por outro lado, a relação entre saber e verdade (terceira dobra) se territo- rializa através da proliferação do pensamento único (marcado por propo­ sições que afirmam, por exemplo, “o fim da história”), instaurando um re­ gime de verdade onde o mundo perde o sentido e, consequentemente, fa­ zendo com que nossa ação no mundo tom e-se supérflua e desnecessária. Isso faz com que a relação do nosso ser com a verdade oriente-se para um movimento de interiorização especulativa - marcado, por exemplo, pela proliferação dos livros de auto -aju d a- que é totalmente compatível com o projeto neoliberal. O movimento de dupla captura (quarta dobra) atuali- za-se através da idéia de crise permanente. A armadilha semiótica, neste caso, funciona a partir da regra segundo a qual quanto mais as coisas se desarranjam, melhor elas funcionam (cf. Deleuze e Guattari, 1972). A cri­ se tom a-se assim o “meio imanente ao modo de produção capitalista” (p.274). É neste sentido que a crise das diferentes instituições (família, educação, trabalho) aumenta enormemente a eficácia das estratégias de controle sobre as mesmas. Tais estratégias operacionalizam-se por meio da “gestão de microconflitualidades num a zona de expansão contínua” (Hardt, 2000, p.367), traduzindo assim uma axiomática capitalística for­ jada a partir da idéia de “crise generalizada”.5

No documento CArtografias e Devires (páginas 162-166)