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DA FUNÇÃO POLÍTICA DO TÉDIO E DA ALEGRIA

No documento CArtografias e Devires (páginas 63-73)

P eter P á l P elb a rt

Toni Negri tem razão. Apesar da catástrofe que parece estar no fundo da obra de Giacomo Leopardi (por exemplo, a memória dos vários fracas­ sos históricos, como o do século das Luzes e da Revolução Francesa), sua poesia é uma lufada de imaginação, de transgressão e de ressurgência. Que o leitor me perdoe o desvio aqui proposto, mas não há como deixar de alu­ dir a um dos mais belos textos sobre o tédio e a alegria escritos pelo poeta italiano, publicado como parte de seus Opúsculos morais, em junho de 1827. Chama-se “História do gênero humano”,1

A ÂNSIA DO IM POSSÍVEL

Era uma vez uma terra, muito menor do que a nossa, com regiões pla­ nas, céus sem estrelas, sem mar, homens todos da mesma idade, em suma: por toda parte havia muito menor variedade e magnifíciência do que hoje. Contudo, os homens compraziam-se insaciavelmente em observar e admirar o céu e a terra, consideravam-nos lindíssimos, imensos, infinitos tanto em majestade como em graça, e extraíam de cada sentimento incríveis delí­ cias, crescendo contentíssimos, com um pouco menos do que se chama fe­ licidade. M as passada a infância e a adolescência, dimuinuiu aquela viva­ cidade nos seus espíritos. Passaram a andar pela Terra, e perceberam que

Peter Pál Pelbart é professor do Program a de Pós-G raduação em Psicologia C línica pela

PUC de São Paulo. G raduado em Ciências Sociais pela U SP e Filosofia pela Universite Paris IV (Paris-Sorbone). É doutor em Filosofia pela U SP cuja tese se tom ou o livro O tempo não-reconcihado: imagens de tempo em Deleuze. Seu mestrado pela PUC/SP tam ­ bém lhe rendeu uma publicação intitulada Da clausura do fora ao fora da clausura: oucura e desrazão. Publicou ainda A nau do tempo rei e Vertigem por um fio.

embora grande, tinha limites certos e não tão vastos que fossem inatingí­ veis. Pelo que crescia o seu dissabor, de modo que um manifesto tédio de existir os invadia universalmente. Aos poucos, com a saciedade, ficaram tão desesperados, não mais suportando a luz e o ar que respiravam antes, que cada um a seu modo foi se privando deles.

Isso pareceu horrendo aos deuses, que a morte fosse preferida à vida pelas criaturas humanas, cuja espécie haviam formado com tão singular apuro e com maravilhosa excelência. Júpiter deliberou então, para melho­ rar a condição humana, e orientá-la para a felicidade com maiores subsí­ dios, mas sem poder satisfazer plenamente ao desejo de infinito que ambi­ cionavam os homens em toda coisa e neles mesmos, e de juventude eter­ na, que contrariava as leis da natureza e os decretos divinos, e de perfei­ ção, Júpiter resolveu então propagar os termos da criação, enfeitá-la: en­ grandeceu a terra, infundiu o mar para diversificar-lhe a aparência e intro­ duzir distâncias, aumentando os confins incognocícveis, pôs em tudo ares de imensidão, em profundidade, em altura, na noite, na luz, na temperatu­ ra. Mas também diversificou as idades, de modo que a velhice de uns sor­ vesse a juventude de outros, e vice-versa. Para multiplicar ainda mais o in­ finito, nutrindo a imaginação dos homens, criou o eco, escondeu-o nos va­ les e nas cavernas, proveu as selvas de ruído surdo e profundo, e criou os sonhos, encarregados de iludir os homens com aquela plenitude de uma incompreensível felicidade, com imagens obscuras e indeterminadas, pe­ las quais os homens suspirariam incessante e ardentemente.

Levantou-se assim o ânimo dos homens, e voltou a graça e o amor à vida, a delícia e o espanto com a imensidão das coisas terrenas. Esse esta­ do de coisas durou mais que o primeiro, principalmente porque os mais velhos reviviam com a juventude dos moços, mas à medida que o tempo progredia, voltou a faltar a novidade, resssurgiu o tédio e a desestima pela vida, reduziram-se os homens a tal abatimento, de modo que passaram a chorar a cada recém-nascido. Daí nasceu a iniqüidade, da própria calami­ dade do desencanto.

Punidos com o dilúvio, restaram apenas dois sobreviventes, que pouco a pouco restauraram a espécie humana. Júpiter, que entendeu a ânsia de impossível que atormentava os humanos, e que essa ânsia aumentava na proporção em que diminuíam os demais males com os quais deviam preo­ cupar-se, decidiu entreter os homens em mil atividades e desviá-los o m á­ ximo possível do diálogo com o próprio espírito. Difundiu entre eles do­ enças e desventuras, a ver se se contentavam com o bem que possuíam. Sabia que com a dor aumenta a esperança e o apego à vida, que os infeli­ zes têm certeza de que seriam felicíssimos caso se livrassem de sua dor presente. Lançou também trevas, raios, eclipses, e estabeleceu o espanto

entre os mortais, a ver se se reconciliariam os homens com os momentos de apaziguamento. Enviou igualmente para eles alguns espectros, como Justiça, Virtude, Glória, Amor-pátrio, Verdade. Tais visões fizeram bem aos homens, mas cobraram deles muito esforço e vida e sangue. M as também elas com o tempo deterioraram-se e cresceu entre os humanos o fastio, e o amargo desejo de felicidade desconhecida.

NIILISM O E HORROR

E hora de interromper o pastiche que fiz do texto de Giacomo Leo- pardi sobre a “História do genero humano”, do qual usei trechos inteiros e deformei muitos outros, omitindo várias passagens. Meu propósito inicial é desprender-me do encanto que suscitou em mim essa historinha que te­ ria agradado a Schopenhauer ou Cioran, grandes admiradores de Leopar- di, mas também a Nietzsche, no pólo oposto da alma filosófica. Qual é um dos motos desse texto? E a idéia de uma roda do tédio que arruina o ho­ mem e contra o qual o deus luta, a cada vez inventando um expediente novo, mais engenhoso ou alambicado, seja de diversificação, de tortura, de ele­ vação, de aspiração, de humilhação. A idéia, de qualquer modo, é que a existência não basta para dar ao homem a alegria que lhe caberia. Tampouco o mundo se basta. Tudo advém dessa indigência, que nenhum deus pode jamais preencher. Um pouco rapidamente, e de modo expeditivo, vejo nessa idéia como que um horizonte moderno de desencanto, cuja teoria Scho­ penhauer desenvolveu com maestria filosófica, e em cujo oco vem alojar- se de maneira compensatória a idéia de prazer, alegria, felicidade. Não é fácil escapar dessa dinâmica, o nada e o infinito, a indigência e a promes­ sa, a tortura e o repouso... Não está claro, tampouco, a que ponto em Leo- pardi, assim como em Schopenhauer, não é essa uma antecipação visioná­ ria da absorção da sociedade pela artificialidade capitalista, na sua homo­ geneização indiferente e no misto de tédio e horror que ela inspira.2

O fato é que vivemos um momento particularm ente aflitivo, no to­ cante aos afetos que o contexto social nos inspira. Poderíam os evocar os últimos acontecimentos em Nova York e o clima de estupor, terror, para­ nóia, mobilização bélica, mas é preciso dizer que a sensação de niilismo que o atentado apenas escancarou o antecede em muito. Em todo caso, numa atmosfera dessas falar sobre alegria é uma tarefa impossível, e no entanto, talvez tanto mais necessária. No belo diário de Viktor Klempe- rer, um professor de literatura judeu que descreve o dia-a-dia durante a

ascenção do nazismo, as poucas vezes em que aparece a palavra alegria é para falar da relação da esposa com os gatos, “a única coisa que signi­ fica uma alegria genuína e uma ligação autêntica com a vida.”3 Pois bem, nossa época obviamente é outra, não estamos presenciando a ascenção do nazismo, mas temos a impressão, por vezes, de que carecemos de ins­ trum entos conceituais para apreciar o que nos acontece com luzes dife­ rentes daquelas que iluminam o proscênio da comédia social. Daí o en­ tusiasm o que me inspirou o estudo de um italiano radicado em Paris, M aurizio Lazzarato, que pôs em questão tantos lugares comuns sobre afetos sociais.4 Eu vou resumir em poucas palavras uma teoria rica e com­ plexa, inspirada em Gabriel Tarde. Tarde é um sociólogo-filósofo do fi­ nal do XIX, que desenvolveu o que se poderia chamar de uma economia afetiva, ou uma economia psicológica, num a direção inteiramente estra­ nha ao século positivista em que ele viveu.

DESEJO E SIMPATIA

Tomemos a questão do desejo. O desejo em Tarde é um pleno, não lhe falta nada, ele é um absoluto, uma força, uma virtualidade que tende à sua atualização: ele tende a ir ao limite de sua potência. Mesmo o que cha­ ma de desejo aquisitivo encontra sua base, não numa incompletude do ser, mas numa expansividade essencial, numa ambição propagatriz. Na sua ir­ radiação infinita a força encontra outras forças com as quais ela se com­ põe segundo interferências felizes, ou infelizes, estabelecendo relações de comando e obediência, ou de cooperação. N essa espécie de metafísica de Tarde, a força não faz a experiência da falta, mas do limite, o que é outra coisa. Toda força se associa ou entra em conflito com outras forças para satisfazer sua avidez conquistadora, para aumentar sua irradiação e trans­ formar o limite num obstáculo a transpor.

Concedamos a Tarde esse ponto de partida, sejam quais forem as ob- jeções que se possa evocar a respeito. O passo seguinte é examinar como essa força afetiva opera. Para Tarde, tudo se passa por imitação e inven­ ção, todos imitam e inventam, imitam e impõem variações ao que imitam, e a vida social inteira poderia ser reconstruída à luz dessas duas constan­ tes. Daí segue-se que todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, no trabalho, na conversa, nos costumes, no lazer - todos inven-

1 Victor Klemperer. Os diários de Victor Klemperer. São Paulo: Cia das Letras, 1999. 4 C f M aurizio Lazzarato, Puissances de l 'invention, Paris, Les empecheurs de penser en rond, 2002.

tam, mas inventam o quê? Novos desejos e novas crenças, novas associa­ ções e novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos gran­ des gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência de todos e de cada um. Quando eu imito um gesto e submeto esse gesto a uma pequena variação, por minúscula que seja, isso constitui uma invenção, na medida em que ao ser imitado, toma-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e coopera­ ções. Quando foi que o primeiro jovem começou a usar o boné virado para trás? Difícil dizer quem foi o inventor desse gesto minúsculo que posterior­ mente se tom ou a marca de toda uma geração, que ensejou novas associa­ ções, cumplicidades, hostilidades, agrupamentos, etc.

De todo modo, à luz dessa economia afetiva, a subjetividade é uma força viva, até mesmo uma potência política. Pois as forças vivas pre- sèntes na rede social, com sua inventividade intrínseca, criam valores pró­ prios, e manifestam sua potência própia. E o cjue alguns chamam de po­ tência de vida do coletivo, sua biopotência. É um misto de inteligência coletiva, afetação reciproca, produção de laço. Os economistas se deram conta, nos últimos anos, que a natureza do trabalho contemporâneo soli­ cita cada vez mais esses ingredientes. Se pensamos em alguns setores de ponta, como tecnociência, mídia, publicidade, são trabalhos que reque­ rem mais imaginação do que esforço, mais criatividade do que operações maquinais, mais invenção do que repetição, mais solidariedade entre cé­ rebros do que isolamento solitário. N ada a ver com o trabalho automáti­ co, burro e repetitivo cuja versão cinematográfica está em Chaplin de Os tempos modernos. Segundo a interpretação de alguns, essa mudança na natureza do trabalho se deve à recusa crescente do trabalho burro e repe­ titivo, e expressa a vontade de liberar a inventividade, o que hoje se cha­ ma de força-invenção, e também liberar a “alegria” da cooperação. Não sou eu dizendo, mas os economistas, sociólogos. A aspiração dos homens teria se voltado para a cooperação interpsicológica, intermental, e pode­ mos citar a internet como um pequeno exemplo de concretização dessa direção histórica que visa o que Tarde chama de “simpatia” . A simpatia como uma potência constitutiva, um princípio cooperativo, uma relação social fundamental.

DIFERENÇA E INVENÇÃO

Mas esse princípio de cooperação, de simpatia, é todo o contrário de uma concórdia homogeneizante. O universo de Tarde é proliferante, múl­ tiplo, diverso.

Existir é diferir, a diferença, a bem dizer, num certo sentido é o lado subs­ tancial das coisas, o que elas têm de mais próprio e de mais comum. [...] A diferença é o alfa e o ômega do universo; por ela tudo começa [...] Por toda parte uma exuberante riqueza de variações e de modulações inauditas jorra [das | espécies vivas, sistemas estelares, [...] e acaba por destruí-los e renová- los inteiramente [...] Se tudo vem da identidade e se tudo visa e vai à iden­ tidade, qual é a fonte desse rio de variedades que nos encanta? Estejamos certos, o fundo das coisas não é tão pobre, tão temo, tão descolorido quan­ to se supõe. Os tipos não passam de freios, as leis não são senão diques em vão opostos ao transbordamento de diferenças revolucionárias, intestinas, onde se elaboram secretamente leis e tipos de amanhã [,..].5

Aqui tudo é novidade. A propria invenção é um acontecimento ju b i­ loso, uma combinação singular, encontro, hibndação, novo agenciamento das relações entre as forças, que rearranja as coisas de maneira distinta. É uma pequena diferença introduzida no mundo. Como se vê, entramos numa atmosfera muito distinta daquela presente no conto de Leopardi, onde o tédio leva os homens ao desespero e ao suicídio.

É que no pensamento de Tarde, inventar é uma grande alegria. A ale­ gria da invenção tem a ver com as novas formas de cooperação que ela enseja. Tarde chega a falar de uma alegria “social”. Diz ele: “Quem diz sociedade diz alegria; a alegria é a flor natural da sociabilidade”. A alegria tem a ver com agir conjuntamente. Mesmo na grande indústria, com toda a exploração ali presente, a cooperação e o agir conjuntamente introduzem alegria na ação. E assim chegamos à tese mais radical de Tarde: toda ação que empenha forças psicológicas, visa “a aquisição da alegria mais do que o evitamento da dor”. É um ponto de vista curioso para alguém com tama­ nho trato social e econômico como o autor, já que a economia política e a sociologia, mas também algumas vertentes do discurso “psi”, estão fun­ dadas sobre a falta, a carência, o sofrimento, a dor. Segundo Tarde, são marcas de um pensamento teológico-político. Tarde diz claramente: “Ao ler [tais autores] parece que todas as necessidades dos homens são negati­ vas, que eles têm por objetivo a supressão de um sofrimento, tal como a fome, a sede, o frio, de natureza orgânica, - ou então essas outras priva­ ções de natureza intelectual: a ignorância, por exemplo. É verdade, como o quer Schopenhauer, que só a dor é real, que o prazer nada mais é do que sua ausência, sua negação, sua isenção”?

5 Gabriel Tarde, Monadologie et Sociologie, Paris, Collection Les Empêcheurs de Penser en rond.

N um a obra de ficção científica estranhamente premonitória, Tarde se refere a um momento futuro em que um Império único terá recoberto o pla­ neta, terá conquistado os confins mais longínquos, numa homogeneização crescente, de linguagem, de cultura, de modos de vida, com o que se teria reintroduzido um tédio universal, uma monocronia, uma insipidez global que fará bocejarem os homens, lembrando curiosamente a situação evoca­ da por Leopardi no inicio desse texto. A partir dessa abolição de toda exte­ rioridade, porém, Tarde não evoca o surgimento de novos valores superio­ res que pudessem entreter o homem entediado, tal como o fez Leopardi - ao contrário. Uma catástrofe ecológica, a ação de um bárbaro dissidente, o bastardo Miltíade, misto de eslavo e bretão, teria precipitado uma transva- loração de todos os valores, ao apontar a necessidade de abandonar o alto e os valores transcendentes, e voltar-se para baixo, para as profundidades vulcânicas do planeta, o incomensurável da criação, a invenção comum, a relação verdadeiramente social do que hoje se convencionou chamar de Multidão, a partir de suas virtualidades inexploradas.6

A multidão

Eu gostaria, de posse desses poucos elementos, fazer uma ponte com um pequeno texto escrito por Toni Negri há pouco tempo a respeito do momento que vivemos hoje, nessa estranha transição do moderno para o pós-modemo. Diz Negri que estamos no fim de uma guerra monstruosa que cobriu todo o século XX e que teve resultados tão dramáticos como os da Guerra dos Trinta Anos, vivida no início do século XVII por Descartes. Mas, acrescenta ele, dessas perturbações nasce o novo. O novo, em Des­ cartes, teve as características do sujeito individual. Entre nós, tem as ca­ racterísticas de uma multidão ético-política. “M as para ambos, tanto para Descartes quanto para nós, esse filho recém-nascido [seja o sujeito indivi­ dual ou a multidão] está sujo com todas as dores de sua geração. Padece­ mos esse momento sem conseguirmos apreender interiormente a alegria da nova descoberta, e estamos confusos diante da potência do acontecimen­ to assim como, introspectivamente, atordoados com nosso estupor.”

Eis o que eu gostaria de articular minimamente: a alegria indizível ainda com a descoberta dessa nova figura chamada multidão, e a alegria como força intrínseca da própria multidão.

Duas palavrinhas sobre a multidão. Multidão é tradicionalmente um termo pejorativo, ele designava um mundo pré-social que era preciso trans-

formar numa comunidade política. A teoria política distingue multidão e povo, sendo o povo um corpo público animado por uma vontade única, e a multidão um simples agregado, que o governante enfrenta, e que cabe a ele domar, dominar. Diferentemente de Hobbes ou Rousseau, na sua ca­ racterização negativa da multidão, Espinosa enxergava a democracia como a acentuação máxima da atividade criadora da multidão. Ora, a multidão, e nas condições contemporâneas isso é ainda mais visível, como o diz Vir- no, é plural, centrífuga, ela foge da unidade política, ela não assina pactos com o soberano, ela não delega a ele direitos, ela é resistente à obediência. O povo, ao contrário, converge numa vontade geral, se reflete no sobera­ no ou no Estado. Ora, com a desagregação das classes sociais e a emer­ gência de um proletariado imaterial, ou intelectualidade de massa, que tra­ balha com informação, com programação, com imagens, com imaginação, essa pluralidade de cérebros e afetividade conectados em rede, um certo caráter da riqueza coletiva vem à tona. Ao revalorizar a multidão, Negri fala justamente da potência dessa reserva coletiva, da construção do co­ mum, e da alegria. A definição espinosana da alegria é: a paixão pela qual a alma passa a uma perfeição maior [Ética, Livro UI]. E a condenaçao vi­ rulenta que faz Espinosa das paixões tristes: “só uma feroz e triste supers­ tição proíbe que nos alegremos., quanto maior for a alegria de que somos afetados, tanto maior é a perfeição a que passamos (260).”

M as onde está a M ultidão nesses termos anteriormente definidos, como reserva coletiva plural, como construção do comum, como alegria? Alguns localizam a emergência da multidão na cena contemporânea no movimento de 68. Outros vêem sua ressurgência paulatina no movimento que vai de Seattle a Gênova, passando por Porto Alegre. Ora, temos a im­ pressão de que tudo isso foi ofuscado subitamente pelo desmoronamento das torres gêmeas e por afetos de massa alternados, de terror, de compai­ xão, de solidariedade, de júbilo, de ódio, de rebeldia, e é como se vísse­ mos desfilarem diante de nós signos arcaicos, signos futuros, no mais dra­ mático e imprevisível cenário desde a Segunda Grande Guerra, em que o que parecia o plácido e tedioso fim da história, descrito por Leopardi ou por Fukuyama, subitamente cede o lugar a um estrondoso terremoto, dei­ xando entrever o mais sinistro e o mais auspicioso.

CONCLUSÃO

Ora, talvez é chegado o momento de amarrar algumas pontas disso que viemos desenvolvendo. Eu pretendi colher alguns elementos que nos ajudassem a pensar a dimensão política da alegria e a alegria como uma

dimensão do político. Não é um tema fácil, a começar pelo tema clássico da instrumentalização da alegria como pão e circo, como diversionismo,

No documento CArtografias e Devires (páginas 63-73)