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OS MATERIAIS DA AUTORIA

No documento CArtografias e Devires (páginas 144-157)

Regina Orgler Sordi

Se cartografar é deixar-se afetar por forças, movimentos, direções, ten­ dências, esta reflexão pretende desacelerar numa pergunta: quais são os ma­ teriais que formam a autoria de pensamento? Como vai sendo trabalhada essa argila que vai dando formas ao aprender, criando pensamentos, idéias? Não se trata de um perguntar ao outro para que me diga o que tenho que pensar; trata-se de perguntar junto a autores cujas reflexões têm vindo em auxílio da curiosidade e até de uma certa perplexidade: fala-se muito em análise de discurso, mas pouco se fala em autoria de pensamento.

Neste trabalho, parto da idéia de que a autoria tem a ver com a vontade de produzir efeitos. Está mais próxima ao trabalho imaginado de um oleiro, nas palavras de Cruz (1998), modelando umas caçarolas, umas vasilhas e que, em certo momento, interrompe seu trabalho, um instante antes de levar es­ sas panelas ao fogo. ,.E o que faz o oleiro nesta interrupção? Algo que até ali não havia feito em seu trabalho: toma a ponta de um instrumento e decide incluir umas marcas, um desenho em sua panela e continua aquele processo até o seu término. Que intervalo se abre nesta interrupção? A eficácia de um gesto de autoria, nos diz Cruz. A importância de incluir descontinuidades em processos que, de outra forma ficariam subsumidos a uma outra lógica, a da eficiência das continuidades, da falta de intervalos, de descanso, de pensa­ mento. Para que o oleiro possa encontrar-se com sua autoria, precisa não som ente do ato criativo - novas formas de produção - mas encontrar um sen- lido na própria obra: a possibilidade de que, a partir dali, essa panela seja portadora de sua marca, seus sinais, que fale para si de um outro modo, em sua produção. Precisa romper com o destino e inscrever-se nas condições de sua própria história. O movimento paradoxal da autoria é que, simultanea­ mente, o sujeito se encontra e é encontrado.

Itegina O rg le r S o rd i c psicóloga, doutora em Educação tJFRGS; professora Adjunta no Instituto dc Psicologia UFRGS; pesquisa na área: Sociedade do Conhecimento e Ecolo­ gia Social e Cognitiva no M estrado em Psicologia Social c Institucional da UFRGS.

Autoria não tem a ver com o que já está feito, não é compreendida como um produto, mas como uma abertura para o sempre inacabado; fala mais de um devir, um modo de situar-se, uma ética que tem a ver com o desejo de produzir e com as possibilidades produtivas do outro. O escri­ tor, a escritora, entrega sua obra ao outro, mas há uma diferença entre es­ crever e ser escritor/escritora. O escrever está para mim, o escritor/escri­ tora é para o outro (Larios, 2000). A autoria se instala entre o escrever e seu produtor e no reconhecimento que possa fazer de si mesmo, a partir de encontrar-se com sua obra. Usufruir da autoria é desfrutar de seu proces­ so, porque potencializa o autor, o que não significa o mesmo que ser pro­ prietário - até porque, não parece haver uma unidade completa entre a obra e o autor. Esta última, tem vida própria. .A palavra autor está mais relacio­ nada com a responsabilidade, não no sentido de propriedade privada, mas ao que permite construir um espaço de pensamento. “Supõe confiar nas possibilidades de criar o que já está aí, poder fazer pensável a experiência vivida” (Femández, 2001, p.91).

A pergunta inicialmente formulada remete a uma busca dos mate­ riais que formam a autoria. Penso que esta pergunta pode ser melhor com­ preendida ao tentar situar o lugar desde onde ela se gerou. Poderia dizer, no momento, que ela se gerou de várias ignorâncias. Trabalhando em Psi­ cologia Escolar, abastecendo-me das teorias da aprendizagem e do de­ senvolvimento, sentia que ainda assim, faltava um olhar específico so­ bre a aprendizagem que tratasse esse tema como um fenômeno humano complexo e não m eram ente instrumental. A costumei-me a considerar, desde minha experiência como aluna do ensino fundamental e posterior­ mente, aluna universitária, mas também, a partir das teorias psicológi­ cas estudadas, que o aprender era o resultado de. Nesta perspectiva, uma nota, uma medida, um olhar sobre a transm issão do conteúdo, o qual de­ veria ser devolvido num a avaliação, era sinônimo de uma boa ou uma má aprendizagem.

Se aprender era apenas aquilo, trabalhar naquele intervalo estreito conduzia a dois tipos de ignorância: a) quem apresentava baixos resulta­ dos escolares, era considerado um aluno-problema e, portanto, precisa­ va ser derivado a uma atenção especial; a) Responsabilizando-se ao alu­ no e não poucas vezes, sua família, perdia-se a oportunidade de incluir - professor e psicólogo escolar - num espaço de reflexão em que os três - professor, psicólogo e aluno - tinham um problem a para resolver. Assim, uma prim eira cegueira estabelecia-se: a de que o psicólogo era suficien­ temente onipotente para resolver a situação. Desta, advinha uma segun­ da cegueira: a de que o professor, experimentando um alívio ilusório ao encaminhar o problem a para outro resolver, via desaparecer seu aluno e

sentia-se, em verdade, frustrado e impotente em seu trabalho. “Sabemos que tanto a impotência como a onipotência são duas formas opostas de um mesm o problema: não conseguir conectar-se com a ‘potência’. Po­ tência como reconhecimento das próprias possibilidades, como autoria” (Fernández, 2001, p. 127).

Deste choque em que um investia-se de plenos poderes e o outro, de- sinvestia-se absolutamente, o resultado final era muito desastroso: profes­ sores queixando-se dos psicólogos que não resolviam nada e psicólogos queixando-se que trabalhavam em tomo das queixas dos professores e que não recebiam nenhum reconhecimento. E de onde vinha essa sensação de que nada se resolvia? A meu ver, de pressupostos pobres e limitados sobre a aprendizagem, concepções parciais, talvez as mais superficiais e menos produtivas. Aprendizagem era o produto, muito pouco discutia-se acerca de seu processo.

As teorias psicológicas mais consistentes, que nos auxiliavam - e se­ guem auxiliando - a fundamentar o campo da aprendizagem, curiosamen­ te, não eram propriamente, teorias da aprendizagem. De um lado, a psico­ logia genética, uma teoria sobre a construção conhecimento. De outro, a psicanálise, uma teoria sobre a constituição do sujeito psíquico. E neste ponto, surgia uma terceira ignorância: quando aquele aluno que não apren­ dia em sala de aula era encaminhado para o psicólogo escolar, como abor­ dar sua dificuldade? Para responder esta pergunta, inúmeros olhares se bi­ furcavam: ou explicava-se a dificuldade de aprendizagem como uma ma­ nifestação de conflitos emocionais, ou como detenção dos processos cons- trutivos do conhecimento ou, o que era mais grave, como um defeito em alguma habilidade específica. Era como se várias disciplinas abrissem suas portas para observar o fenômeno para, logo, voltarem às suas casas e bas- tarem-se em suas explicações.

Foi então que Sara Pain, nos anos 60, ao tentar resolver os impasses leóricos e práticos sobre o campo da aprendizagem, enunciou que as teo­ rias psicológicas - a psicanalítica e a psicologia genética - cindiam o su- leito em dois. Apresentou-nos mais duas ignorâncias sobre o aprender:

a) ausência de programação instintiva, a qual nos condena e nos abre as portas para o aprender;

b) a presença de duas instâncias psíquicas que se ignoram mutuamen­ te o consciente e o inconsciente. Por um lado, temos um sujeito epistêmi- co, que conhece. Por outro, temos um sujeito simbólico, que se desconhe­ ce Para cada sujeito, desenvolveram-se teorias muito potentes, mas que minca dialogaram entre si.

Felizmente, a ignorância pode ser transformada numa vivência mui- lo produtiva, se a considerarmos em sua função positiva (Paín, 1999 ), aque-

la em que a falta de sentido, tanto consciente quanto inconsciente, nos for­ ça a realizar um trabalho de ligações que nunca se acaba.

O pensamento ativo nos força a realizar ligações. Estas ligações, por sua vez, nos impelem a fazer escolhas. Antes de escolher, tudo é possível, mas quando escolhemos, há uma decisão, um limite. Aqui aparece, nova­ mente, o tema da responsabilidade que todo o pensar contém. Pensar é res­ ponsabilizar-se. E perguntamos, junto com Sara Paín: o que há de consciente naquilo que pensamos? De onde vêm estas escolhas, essas decisões de se­ guir por uma via e não por outra? Certamente, se o produto de nosso pen­ samento é consciente, se temos acesso a ele, seu processamento é, contu­ do, inconsciente. Não temos acesso imediato ao pensamento, não sabemos por que pensamos.

Começamos a entender que a aprendizagem é muito mais do que o resultado de alguma coisa. Ela é o fenômeno humano, por excelência, a máquina simultaneamente subjetiva e objetiva, consciente e inconsciente, que potencializa nosso pensamento e processos criativos. E, aqui, chega­ mos novamente ao tema da autoria de pensamento.

Em nossas mãos está a aprendizagem da autoria de pensamento onde a inteligência, conhecendo seu alcance, aceita resignar ante o desejo de co­ nhecer tudo e, conectando-se com a função positiva da ignorância, pode aceitar conhecer parcialidades, mas assumindo-se como co-autora, junto com o desejo, com a história própria e do mundo que habita esse sujeito. (Femández, 2001, 90)

Foi necessário percorrer um caminho diferente ao da psicologia, para encontrar-me com a riqueza das novas concepções sobre o aprender. O novo caminho apontava não mais para as estradas disciplinares construídas na modernidade, mas para as fendas que estas estradas deixavam repletas de perguntas sem responder.

Assim, no campo da aprendizagem, essas gretas denunciavam que nem os problemas orgânicos, nem os problemas emocionais, nem os pro­ blemas de QI, nem os processos construtivos de pensamento, por si sós, respondiam pelos fracassos ou pelos sucessos no aprender. Era necessário situar-se frente a um novo posicionamento.

Ainda hoje, a “indisciplinada” psicopedagogia clínica, campo teóri­ co que emerge das fendas deixadas pelas teorias relacionadas à aprendiza­ gem, é muitas vezes definida como sendo um mero somatório de duas teo­ rias fortemente constituídas - epistemologia genética e psicanálise. Entre­ tanto, ao definir-se como uma reflexão e uma prática sobre a abertura de espaços objetivos e subjetivos de construção de autoria de pensamento

(Fernández, 1987), inaugura um posicionamento, um modo de situar-se frente ao aprender com uma originalidade própria.

De que materiais, então, é feita a autoria de pensamento?

Diria, numa abordagem ainda muito inicial, que o barro e a água da autoria partem das noções de “entre”, cada vez menos entendida como uma preposição e muito mais como noção de “diferença” .

“ENTRE” EM AUTORIA

Cruz (1999) lança uma pergunta instigante: “Como se aprende aqui­ lo que não se pode ensinar?” (comunicação oral). Há coisas que não se pode ensinar, mas que se aprende neste intervalo, nesta distância, nesta incon­ gruência entre um e outro ou nesta incongruência consigo mesmo. Pode- i íamos pensar, já distantes da noção de aprendizagem como resultado de. (|ue aquilo que se ensina não corresponde ao que o outro aprende. Não há uma correspondência ou correlação, mas sim, um “entre” o que se ensina e o outro aprende, espaço de transformação, em que algo novo se gera "Entre” não deve ser confundido, então, com passagem ou com ponte. ( 'hristlieb fala em uma nova materialidade, uma terceira realidade, que não está dentro, mas que também não está fora, mas entre, que encarna numa terceira natureza, inquantifícável e impecavelmente real” (p. 51).

Acompanhando o pensamento deste autor, a noção de “entre” deve ser substantivada, sujeito em si mesma, que permite falar, não de uma reu- iiião de experiências ou coincidência que está entre dois significados, mas do significado que estk entre dois e todos.

Nas origens do desenvolvimento do aparelho psíquico, Winnicott des­ creveu, desde a psicanálise, um fenômeno transicional, um “entre” estru- t ui ante da vida de relação e determinante das capacidades humanas de brin- i ui, pensar e criar. Este autor conceituou uma fase na qual o ego do bebê i onge ao mundo como se ele fosse parte de si mesmo e separado, ao mes­ mo tempo. Enfatiza que o bebê e sua mãe nunca questionam tal distinção. I ssa ilusão é mantida: a de que o bebê controla e cria o mundo, um mundo que satisfaz suas necessidades na medida em que elas são demandadas. A

I I uição de um objeto que seja tanto interno quanto externo é referido como

ii ei latividade psíquica primária. De acordo com Winnicott, o ego do bebê adquire a habilidade para criar um objeto devido ao bom cuidado mater­ no, o que significa que a existência da mãe, por um período de tempo, está lolbrida a esta preocupação maternal primária. E a este objeto autocriado que Winnicott chama de objeto transicional e a este espaço, entre o bebê e a mile, de espaço transicional e que é representativo de uma fase do desen­

volvimento onde o fora e o dentro não são distinguíveis porque a mãe aju­ da a manter a ilusão de que tal distinção não existe. O fenômeno transicio- nal não fala então de uma correlação entre a mãe e o bebê, mas de uma zona onde pode acontecer a diferenciação, pode construir-se a individua­ ção do sujeito, o trânsito entre o eu e o não-eu. Não se trata apenas de uma aquisição do desenvolvimento, mas de uma experiência que se expande para a vida. E nesse lugar onde nascem as possibilidades criativas e de confian­ ça, onde se pode jogar e é o mesmo espaço onde se pode aprender (Fer- nández, 1989).

Como a criatividade surge da construção do espaço transicional, o qual podemos chamar de espaço de jogar?

Falo de uma ficha, logo digo que esta ficha é um jogador, logo falo de jogador, logo, do jornal esportivo que nomeia ao jogador, logo da altura e características físicas do jogador. E relato histórias pessoais dos jogadores como se tratassem realmente de pessoas.

Então, uma ficha verde é um jogador com camiseta verde. Um botão é uma bola de futebol.

Mas então, tenho que acreditar que o que vejo é um jogador e não uma ficha.

Para apaixonar-me pelo jogo, tenho que assassinar a palavra ficha e atravessa-la com histórias. Sc digo “ficha”, não jogo, perco minha capaci­ dade imaginativa, me concretizo. Dar-lhe vida. Isso é o que apaixona. Isso é o terapêutico do processo lúdico. Da história futebolística à criação de novas histórias possíveis compartilhadas pelo grupo que pratica o jogo. O jogo nos afeta a todos, os adolescentes. Nos sentimos "afetados” pelo jogo. Diz Brasi: "Há uma cadeia de idéias que começa com o problema dos afe­ tos, depois segue com o devir c poderíamos dizer que termina com a pro­ blemática da criatividade”. (Pavlovsky, 1996, p. 39,40).

Como diz Pavlovsky, a capacidade imaginativa durante a experiên­ cia do jogo é a “cozinha” do processo criativo. É aí que entra o trabalho de autoria: “quando almejamos fazer com que algo do desejável seja, primei­ ro, possível e, logo, provável. O pensamento não trabalha apenas com as possibilidades; trabalha também com a decisão” (Femández, 2001, p.90).

A autoria, então, não tem a ver apenas com o crer/criar o jogo, mas está igualmente ativa no momento da decisão de usá-lo, momento de sua apropriação. A apropriação significa reconhecer-se em sua produção.

Mas o que motivou o nosso "agenciamento'’ não foi .só o jogo cm si. mas a capacidade de construir histórias sobre os jogadores. O que nos apaixona

va era a capacidade maquínica de imaginar para além do concreto do jogo. O jogo durava 20 minutos cronológicos em um espaço determinado de l,50m X lm (a cancha). Mas este espaço-tempo, era atravessado por histó­ rias inventadas pelo grupo que criavam outras unidades de espaço-tempo. Fugíamos das regras do jogo concreto e seus contornos e fabricávamos c suscitár amos pequenos acontecimentos. (Pavlovsky, 1996, p.41)

As crianças do jogo de Pavlovsky, deslizando-se num espaço e num tempo transicionais, decidiam, responsabilizavam-se por aquilo que cria­ vam. Neste espaço “entre”, operava o conhecimento/afeto, a matéria pri­ ma entre os jogadores e o jogo.

Rodulfo (1997), analisando a cena da amamentação como a escritura de um jogo, nos diz que, no curso da mamada, o bebê repara um botão da blusa da mãe, concentra-se e começa a trabalhar nele. Como no jogo dos adolescentes, o ser do botão fica em suspenso, altera-se sua existência, es­ sência e função como botão. “Brincar significa usar a coisa para o que não é [...]” (Rodulfo, p. 14). A hipótese básica do autor é a de que o jogo/botão não é um objeto entre outros, mais um primeiro objeto no qual o bebê ins­ creve/escreve um certo entre com o outro. É um ato que só a criança pode fazer. E pensar que toda classe de objetos, incluindo o conhecimento, de- i iva destes primeiros trabalhos/entre...

Tradicionalmente, a psicanálise tem pensado que a criança entra em relação com a mãe e, a partir daí, pode jogar com os outros e com as outras coisas. No curso do pensamento aqui introduzido, o enfoque rota. Muda o seu centro: o bebê come enquanto joga. Se ele só come, algo está mal.

A partir da cena descrita acima, podemos pensar que a autoria de pen­ sam ento significa jogar com as idéias, “pôr entre parênteses o ser da coi­ sa", estar nesse entre, reconhecendo a idéia que vem do outro e simultane­ amente, reconhecendo algo próprio ali, nos interstícios entre o desconhe­ cimento, o conhecimento e o desejo de conhecer.

Para que isto ocorra, é necessário dar entrada às diferenças...

“DIFERENÇAS” EM AUTORIA

Espaço e tempo transicionais são a matéria prima para que o sujeito se singularize, trabalhe sua diferença.

Costumamos pensar que autorizar-se é diferenciar-se:

Para construir um pensamento, principalmente, necessitamos diferenciar- nos de... Então, para que a criança possa dizer "não gosto que meu pai me

ofenda” tem que construir uma ideia, dar-lhe um nome, ela precisa diferen­ ciar-se daquilo, porque senão, “eu sou má. me comportei mal e papai me respondeu”, o que não é o mesmo. (Femández, 1998, p.47).

Da cena transicional descrita por Winnicott, emerge a possibilida­ de de diferenciar-se do outro. Curiosamente, só nos diferenciamos gra- dativamente na medida em que experimentamos a simbiose com o ou­ tro. M uito cedo, entretanto, a mãe vai “permitindo” a entrada do pai (re­ presentado aqui tanto pela figura concreta do pai, quanto pelo chamamen­ to da cultura), processo que produz um afastamento necessário da mãe em relação ao bebê e que introduz no mesmo a necessidade de ir em bus­ ca de outros objetos. Do ponto de vista da aprendizagem, é necessário compreendermos que a apresentação ao mundo dos objetos, precisa acon­ tecer a partir deste vínculo, como se os olhos da mãe, apresentassem aos olhos do bebê, um mobili, por exemplo, e agora, ambos os olhares se entrecruzem com o objeto (Paín,1987 ). É da força dessa des-ilusão que cria-se o espaço de autoria. Ensinar é precisamente desejar que o outro aprenda... mas que aprenda a partir do que se mostra e não o que se mos­ tra. Não se trata, então, de que o bebê “apreende” os objetos porque es­ tejam ao seu alcance, mas porque estão investidos deste amor, deste de­ sejo de que conheça. A aprendizagem não acontece por fora de laços de amor e de desejo. É precisamente porque existe o amor, que desejamos parecer-nos com o outro, ao mesmo tempo em que desejamos diferen- ciar-nos dele:

Quem ensina se oferece como modelo identificatório. Não se aprende por imitação, querendo fazer o mesmo que faz o outro. Aprende-sc querendo se parecer com quem nos ama e amamos. Precisamos querer parecer-nos ao outro, e que esse outro nos aceite como semelhantes, para poder desejar diferenciar-nos dele, com menos culpa, ou melhor ainda, podendo elaborar a culpa por diferenciar-nos. (Femández, 2001, p.40).

Uma das formas de incorporar a diferença, trabalhar com ela, é pre­ cisamente, poder nomeá-la. E esta operação não tem a ver com oposição ou com anulação. Não poucas vezes, instalando-nos numa lógica binária, corremos o risco de reduzir a diferença e, deste modo, opô-la. Não se tra­ ta, apenas, de um funcionamento binário, rígido; além disso, agrega-se que somente um dos poios está marcado. E nesta segunda torção em que acaba por se arruinar a diferença. Não poucas vezes, deixamos de usufruir da ri­ queza mesma do pensamento que é, por definição, uma operação de corte, uma descontinuidade, para considerar tudo o que não está num dos poios

como “o” diferente e esse “diferente”, como “o” excluído. Se pudéssemos sair dessa lógica binária e nos aventurássemos a pensar “as diferenças” tal­

No documento CArtografias e Devires (páginas 144-157)