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ARTE PARA A SUBJETIVAÇÃO E A CLÍNICA Uma

No documento CArtografias e Devires (páginas 194-200)

DE TRABALHOS PLÁSTICOS

1. ARTE PARA A SUBJETIVAÇÃO E A CLÍNICA Uma

orelha.

Comecemos este texto com uma orelha, esta parte do corpo relacio­ nada à função auditiva, e que no entanto, de quando em quando, inscre­ ve-se no universo das artes visuais. Algumas dessas ocorrências pode­ riam ser citadas, desde o “estilo orelha”, uma outra denominação da estética barroca quanto aos seus volteios compositivos, no uso de rocalhas e volutas, propiciando uma linha serpenteada, labiríntica - tal qual uma orelha.1 Op o objeto de apreciação do connoisseur Morelli, que ao estu­ dar uma obra para dar-lhe uma atribuição, reparava não no seu foco compositivo, mas no estilo que se repetia em zonas desprivilegiadas,

Cláudia M aria França Silva Gozzer, natural de Belo Horizonte, é artista plástica e

professora auxiliar na Universidade Federal de Uberlândia, onde leciona disciplinas nas áreas de Desenho e Expressão Tridimensional. Atualmente é m estranda em Poéticas visu­ ais pelo Instituto de Artes da UFRGS e bolsista CNPq. Seu projeto de pesquisa é intitulado

(iravidade por um fio: o peso e a leveza em um projeto de instalação, e deverá ser defen­ dido em maio de 2002.

1 “ Nunca foi despropositado assem elhar a forma do barroco à profundidade curvilínea de uma orelha; circunstância que lhe valeu ser designado na Baviera do Sul, por estilo de orelha.” Emídio Rosa de Oliveira, Profundidade. In: Pereira, Paulo (coord.) Dicionário da arte barroca, Portugal, Lisboa Editorial Presença, 1989, p .387.

periféricas, como as pontas dos dedos das figuras representadas, ou os lóbulos de suas orelhas.2 Lembremo-nos também do filme Veludo Azul, de David Lynch, em que o personagem principal encontra uma orelha perdida no meio de uma folhagem, esse enigma iniciando, de maneira insólita, o suspense de toda a trama.

Entretanto, a orelha mais famosa parece ser uma daquelas que van Gogh extirpou de seu corpo. Esse ato de insanidade e sacrifício lhe garantiu, pelo menos no senso comum, um rótulo - o de louco - tão reconhecido e adotado para a classe artística quanto o de gênio, outorgado ao autor de A Monalisa. No entanto, tanto o rótulo de louco quanto o de gênio não são nem um pouco confortantes para quem é artista nos dias de hoje. Ambas classificações são marginais, colocam o autor visual como um indivíduo isolado da sociedade, cuja obra não é resultado do seu trabalho, mas de algo que transcende o próprio artista. Alguém que toma-se objeto para que o outro o idolatre ou mesmo zombe dele. Uma imagem aquém ou além do outro, enfim, nunca alguém igual a ele, em conformidade com a própria condição efêmera, trágica e instável de qualquer ser humano.

No meio artístico, porém, Van Gogh, de louco, converteu-se de certa maneira em um parâmetro para nós artistas, como agente da subjetivação: “a soberania da subjetividade, enquanto agente da verdade, é a grande questão modema. O sujeito é um guerreiro que se faz conquistando a si mesmo, fazendo de seu corpo agente do sentido. Ninguém melhor do que Van Gogh... Seu dilaceramento intemo. Seu incômodo no mundo”.3 O ato de Van Gogh desvia-se de ser um ato insano para colocar-nos sobre a liberdade, o sacrifício, a ousadia e a necessidade de engajamento do artis­ ta contemporâneo com sua própria obra - uma questão ética para o artista: depois dele, “cortar a orelha virou matéria obrigatória nos currículos de história da arte”.4

N esse sentido, parecem-nos no mínimo “sim páticas” algumas con­ siderações de profissionais da psicologia clínica que colocam o artista e a arte em geral como focos de m ira para se pensar o processo de form ação do sujeito e a própria prática clínica. Isso porque há um in­ vestim ento do artista em seu fazer e em seu pensar, antes, durante e depois desse fazer; nesse mesmo fazer, ele, enquanto sujeito, tam bém

2 Segundo M orelli, tom a-se “necessário exam inar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das m ãos e dos pés.” Cf. Ginzburg, Carlo.

Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Com panhia das Letras, 1989, p. 144

’ Doctors, Márcio. A verdade e o sujeito. Guiadas artes. São Paulo: n. 18, 1990, p.34-40: 37. 4Basbaum , Ricardo, apud Doctors, op. cit., p.40.

se faz. H á uma perspectiva ética nessa atitude do artista que tais consi­ derações procuram salientar.

Sueli Rolnik é autora de um desses textos. Ela propõe-nos um percur­ so em direção ao interior de uma subjetividade, tendo a pele como estrutura de acesso, que, se num primeiro momento é da ordem da estabilidade, pare­ de que determina as diferenças do fora e do dentro, à medida dessa viagem, vai se transformando em estrutura vibrátil, permeável às oscilações exter­ nas e escoando-as para dentro. A cada nova reação do interior do indivíduo com o fora - a cada “dobra” sofrida pela pele, a autora nomeia de diagrama: “cada vez que um diagrama se forma, a pele se curva novamente — [...] cada modo de existência é uma dobra da pele que delineia o perfil de uma deter­ minada figura de subjetividade.”5 É nesse sentido que podemos perceber a carga de transitoriedade e flexibilidade que assum e o processo de subjetivação: um processo que desterritorializa quaisquer tentativas de se fixar tempos e espaços. Melhor seria dizer que dentro e fora não seriam mais categorias fixas do espaço, mas “situações espaciais”: “cada linha de tempo que se lança é uma dobra que se concretiza e se espacializa num território de existência, seu dentro. [...] Cada figura e seu dentro dura tanto quanto a linha de tempo que a desenhou [...]”. 6

Entretanto, esse processo não se dá de maneira assim tão simples. Se essa relação do indivíduo com o meio promove uma certa homeostase, há dentro de todos nós, como que um dentro cristalizado, uma “árvore” aves­ sa aos trânsitos, sempre a postos, dotando a pele de filtros que permitem entrar somente o fora “conveniente”. Cria-se, na radicalidade dessa crista­ lização interna, uma situação de “inconciliabilidade” : um mal-estar dado pela impossibilidade de superação dessa tensão. Essa seleção do “fora” interrompe o fluxo natural do tempo, culminando na modalidade de inter­ rupção “drogadição de identidade” :

O viciado em identidade tem horror ao turbilhão das linhas de tempo cm sua pele. A vertigem dos efeitos do fora o ameaçam a tal ponto que para sobreviver a seu medo ele tenta anestesiar-se, deixando vibrar em sua pele, de todas as intensidades do fora, apenas aquelas que não ponham em risco sua suposta identidade. Este homem se vê então obrigado a consumir al­ gum tipo de droga se quiser manter a miragem de uma suposta identidade. [...] Obviamente, ele nunca chega lá, já que lá é uma miragem. E quanto mais se frustra, mais corre atrás; e quanto mais desorientado, estressado.

5 Rolnik, Sueli. Subjetividade, ética e cultura nas práticas clínicas. Cadernos de subjeti­ vidade. Sâo Paulo: PUCSP, v .l, n .l, 1993, p.305-313; p.306.

ansioso, perseguido, culpado, deprimido, em pânico, mais ele se droga. Um círculo vicioso infernal.7

Sueli Rolnik vê a diferença no artista, na maneira pela qual ele “admi­ nistra” as suas transformações internas com o exterior e as repõe em obra. Assim, se ele sempre se apresenta como diagrama em gerúndio, seu trabalho coloca-se na mesma situação - o work in ptvgress - ao mesmo tempo alimen­ tando e sendo alimentado pelo meio. Atentemo-nos aqui para o sentido de “obra aberta” de Umberto Eco, obra cuja condição de existência repousa no seu devir, na abertura semântica que permite a sua atualização através do tempo - “como proposta de um “campo” de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de maneira a induzir o fruidor a uma série de “leituras” sempre variáveis [...]”8 - e percebamos como a obra aberta afina-se com o pensamento de Rolnik

sobre a destinação social dessa subjetividade-(em)-obra:

é primeiro em microuniversos culturais e artísticos que relações de força inédi­ tas ganham corpo e, junto com um corpo, sentido e valor. Estes microuniversos constituem cartografias [...] do ambiente sensível instaurado pelo novo diagra­ ma. Tais cartografias ficam à disposição do coletivo afetado por este ambiente, como guias que ajudam a circular por suas desconhecidas paisagens.9

7 Ibid, p .308-309. Esse “vício de identidade” parece encontrar eco no texto de Luís C láu­ dio Figueiredo, ao colocar sobre a condição do estrangeiro na formação do sujeito. O estrangeiro, que m uitas vezes está muito m ais próximo do que comumente se espera, pode su sc ita r reações de reforçar em alg u ém com “ d rogadição de id e n tid a d e ” o estranham ento, “m antendo o estranho tão longe quanto possível [...]” Cf. Luís Cláudio Figueiredo,/! questão da alteridade nos processos de subjetivação. In: Catenna KoltaI(org.)

O estrangeiro. São Paulo: Escuta/Fapesp, 1998, p 62.

8Eco, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 150. M ais à frente o autor complementa: “ [...] assim como o leitor escapa ao controle da obra, a certa altura a obra parece escapar ao controle de quem quer que seja, inclusive do autor, e prosseguir o discurso “ sponti sua” , como um cérebro eletrônico enlouquecido. Então, não há m ais possibilidades; mas o indistinto, o originá­ rio, o indeterminado em estado selvagem, o todo, o nada.” Ibid, p. 162.

9Rolnik, Sueli. Umberto op. cit., p .308 A drogadição de identidade surge como o estágio em que seria útil uma ajuda profissional. E é aí que esse diagrama em aberto - a figura do artista - é chamada a ser, pelo menos observada, não somente pelo paciente, m as sobretu­ do pelo profissional que o atende. Abre-se, além de uma “porta” social para a figura do artista, outra perspectiva, ética. Aqui entende-se ética como afirmação da vida enquanto continua desestabilização. Uma ética dada por essa constante subjetivação e que deve chegar até o profissional, impelindo-o a uma nova postura: “estar à escuta da dor causada pela desestabilização, anunciadora da finitude. [...] é preciso [...] suportar esta dor em nós m esm os e improvisar modos de existência que dêem sentido e valor para aquilo que o m al-estar de nossa pele nos sopra.” Sueli Rolnik, op. c i t , p.310.

Já Cristina Rauter constrói seu pensamento tendo como horizonte a afirmação de Deleuze e Guattari da Arte como sendo uma “psicanálise bem-sucedida”, esperando que, à maneira do processo artístico, haja tam­ bém, por parte da clínica, uma “eficácia [.. .] no sentido de produzir muta­ ções no campo da subjetividade”.10 No entanto, desde já ela afasta-se tan­ to de um a concepção de A rte que lida com questões biográficas e idiossincráticas de artistas quanto de uma idéia historicista da Arte e de valorização da memória. A autora, ao enfocar seu olhar para a Arte, o faz na perspectiva do impacto social e estético dos movimentos de vanguar­ da. E é por isso mesmo que seu ponto de partida é o fim do século XIX, dado como o início da arte moderna, que caracterizou-se pelo rompimen­ to com a tradição. Juntamente com a noção tradicional e instituída de arte, outros valores também começam com sua derrocada ao fim do mesmo século. É o caso da família burguesa, sobre cujos escombros nasce a psi­ canálise, campo de impasses a atuar sobre o sujeito, instância “já em deri­ va” : “nunca se lutou tanto por um eu, e nunca a produção da subjetividade teve um caráter tão serializado, tão uniformizado e impessoal”.11

Ao referir-se às vanguardas artísticas, a autora notadamente detém- se no construtivismo russo, por perceber relações deste com a “Clínica Construtivista” de Guattari, “capaz de romper com ideais de cientificidade ultrapassados, tomando paradigm as ético-estético-políticos”.12 Esses paradigm as refutam os princípios da verificabilidade científica e da imprescindibilidade de provas para se constatar um fato ou uma teoria. Entretanto, se os vícios do utilitarism o e do tecnicism o cerceiam a inventividade criadora, tal como se deu no próprio Construtivismo Russo, processo similar pode acontecer na prática clínica. Essa “tentação prag­ mática e utilitária” é verificada pela questão do trabalho. Há uma tentativa de adaptação do psicótico ao sistema ou da intensificação de sua capaci­ dade criadora, mas tomando-o alheio ao resultado de sua produção.

E assim a autora prossegue: estabelecendo relações de analogias des­ sas novas proposições artísticas questionadoras de valores estético-artísti- cos arraigados no seio da sociedade, com a necessidade de produção de “novos universos existenciais” que possam colocar-se frente a antigas es­ truturas do ser social, ela detecta essas relações como crises que se tornam làtores geradores de novas propostas artísticas. Rauter fará um interessan­ te paralelo entre alguns conceitos de Deleuze e Guattari e de depoimentos

'"Rauíer, Cristina. Subjetividade, arte & clinica. In: A ndrc Silva et alli (org.) Subjetivida­ de: questões contemporâneas. São Paulo: Editora Hucitec, 1997, p. 109-119, p. 109.

" Ibid., p. 114.

dados por Malevitch. Se para este artista o passado era encarado como um obstáculo, isso implicava em um conceito de inventividade que admitia o novo, um conceito de criação que compactuava com a postura moderna em geral. Assim, para ele havia uma instância criadora, que ele denomina de “vazio criador”, de onde provêm as formas e os objetos do mundo da ciência. Essa idéia, entretanto, foge da noção de transcendência que ali­ menta a Filosofia até o fim do século XIX. Sua arte, pelo contrário, se visualizarmos o “quadrado preto” ou o “quadrado branco sobre fundo bran­ co”, nada diz dessa transcendência, mas de uma imanência que se traduz na própria superfície do quadro, ele então sendo visto na sua própr a objetualidade. “Malevitch criou a denominação superfície plana pictural para designar o que considerava ser a grande invenção modema das artes plásticas, ao se desprender da função representativa.”13 Esse plano não representacional significaria, assim , a autonom ia da p in tu ra e sua desvinculação a qualquer função externa a si mesma.

Num caminho diferenciado do de Malevitch, D eleuze14 chega a essa potência de criação, denominada de “plano de imanência” . Um plano do qual nos servimos na criação de nossa subjetividade, o caos originário do qual tudo provém. Nossa subjetividade, entretanto, não como organizadora desse caos, mas advinda dele, de um “inconsciente maquínico” : “um in­ consciente que se autoproduz, que é este plano a partir do qual todas as formas são criadas,” onde o que importa não é o resultado obtido (o sujei­ to), mas “os deslocamentos ou os agenciamentos”15 (a subjetivação). Che­ gamos assim à idéia de que, se o inconsciente maquínico opera na forma­ ção de uma subjetividade por uma riqueza processual de agenciamentos, de maneira analógica isso se dá com o sujeito-artista e se dá na arte con­ temporânea, especificamente aquela derivada das experimentações dos anos 60 e 70, cuja força e interesse estão calcados no espaço entre a con­ cepção inicial de uma idéia e sua provável concretização. Algo que se assemelha assim ao termo poiein, um resgate do próprio termo fazer. O fazer artístico pressupõe uma descontinuidade de ação e tempo, a ação do acaso como co-estruturador às avessas da obra. O inconsciente maquínico operando, portanto, no espaço do intervalo: o “coeficiente artístico” esti­

13Rauter, Cristina, op. cit., p. 117.

14 Contrariamente ao “pictural”, Deleuze aposta na arte “figurai”, ou seja, aquela que amda m antém vínculos de reconhecimento com uma realidade externa à da arte. Porém, a arte figurai coloca-se, com suas formas, em aberto, "para se deixar atravessar por um campo de forças ” 14, uma força “caósm ica” , aqui entendendo-se o caos como germe de criação. Cf. Rauter, op. cit., p. 118.

No documento CArtografias e Devires (páginas 194-200)