DE TRABALHOS PLÁSTICOS
1. ARTE PARA A SUBJETIVAÇÃO E A CLÍNICA Uma
orelha.
Comecemos este texto com uma orelha, esta parte do corpo relacio nada à função auditiva, e que no entanto, de quando em quando, inscre ve-se no universo das artes visuais. Algumas dessas ocorrências pode riam ser citadas, desde o “estilo orelha”, uma outra denominação da estética barroca quanto aos seus volteios compositivos, no uso de rocalhas e volutas, propiciando uma linha serpenteada, labiríntica - tal qual uma orelha.1 Op o objeto de apreciação do connoisseur Morelli, que ao estu dar uma obra para dar-lhe uma atribuição, reparava não no seu foco compositivo, mas no estilo que se repetia em zonas desprivilegiadas,
Cláudia M aria França Silva Gozzer, natural de Belo Horizonte, é artista plástica e
professora auxiliar na Universidade Federal de Uberlândia, onde leciona disciplinas nas áreas de Desenho e Expressão Tridimensional. Atualmente é m estranda em Poéticas visu ais pelo Instituto de Artes da UFRGS e bolsista CNPq. Seu projeto de pesquisa é intitulado
(iravidade por um fio: o peso e a leveza em um projeto de instalação, e deverá ser defen dido em maio de 2002.
1 “ Nunca foi despropositado assem elhar a forma do barroco à profundidade curvilínea de uma orelha; circunstância que lhe valeu ser designado na Baviera do Sul, por estilo de orelha.” Emídio Rosa de Oliveira, Profundidade. In: Pereira, Paulo (coord.) Dicionário da arte barroca, Portugal, Lisboa Editorial Presença, 1989, p .387.
periféricas, como as pontas dos dedos das figuras representadas, ou os lóbulos de suas orelhas.2 Lembremo-nos também do filme Veludo Azul, de David Lynch, em que o personagem principal encontra uma orelha perdida no meio de uma folhagem, esse enigma iniciando, de maneira insólita, o suspense de toda a trama.
Entretanto, a orelha mais famosa parece ser uma daquelas que van Gogh extirpou de seu corpo. Esse ato de insanidade e sacrifício lhe garantiu, pelo menos no senso comum, um rótulo - o de louco - tão reconhecido e adotado para a classe artística quanto o de gênio, outorgado ao autor de A Monalisa. No entanto, tanto o rótulo de louco quanto o de gênio não são nem um pouco confortantes para quem é artista nos dias de hoje. Ambas classificações são marginais, colocam o autor visual como um indivíduo isolado da sociedade, cuja obra não é resultado do seu trabalho, mas de algo que transcende o próprio artista. Alguém que toma-se objeto para que o outro o idolatre ou mesmo zombe dele. Uma imagem aquém ou além do outro, enfim, nunca alguém igual a ele, em conformidade com a própria condição efêmera, trágica e instável de qualquer ser humano.
No meio artístico, porém, Van Gogh, de louco, converteu-se de certa maneira em um parâmetro para nós artistas, como agente da subjetivação: “a soberania da subjetividade, enquanto agente da verdade, é a grande questão modema. O sujeito é um guerreiro que se faz conquistando a si mesmo, fazendo de seu corpo agente do sentido. Ninguém melhor do que Van Gogh... Seu dilaceramento intemo. Seu incômodo no mundo”.3 O ato de Van Gogh desvia-se de ser um ato insano para colocar-nos sobre a liberdade, o sacrifício, a ousadia e a necessidade de engajamento do artis ta contemporâneo com sua própria obra - uma questão ética para o artista: depois dele, “cortar a orelha virou matéria obrigatória nos currículos de história da arte”.4
N esse sentido, parecem-nos no mínimo “sim páticas” algumas con siderações de profissionais da psicologia clínica que colocam o artista e a arte em geral como focos de m ira para se pensar o processo de form ação do sujeito e a própria prática clínica. Isso porque há um in vestim ento do artista em seu fazer e em seu pensar, antes, durante e depois desse fazer; nesse mesmo fazer, ele, enquanto sujeito, tam bém
2 Segundo M orelli, tom a-se “necessário exam inar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das m ãos e dos pés.” Cf. Ginzburg, Carlo.
Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Com panhia das Letras, 1989, p. 144
’ Doctors, Márcio. A verdade e o sujeito. Guiadas artes. São Paulo: n. 18, 1990, p.34-40: 37. 4Basbaum , Ricardo, apud Doctors, op. cit., p.40.
se faz. H á uma perspectiva ética nessa atitude do artista que tais consi derações procuram salientar.
Sueli Rolnik é autora de um desses textos. Ela propõe-nos um percur so em direção ao interior de uma subjetividade, tendo a pele como estrutura de acesso, que, se num primeiro momento é da ordem da estabilidade, pare de que determina as diferenças do fora e do dentro, à medida dessa viagem, vai se transformando em estrutura vibrátil, permeável às oscilações exter nas e escoando-as para dentro. A cada nova reação do interior do indivíduo com o fora - a cada “dobra” sofrida pela pele, a autora nomeia de diagrama: “cada vez que um diagrama se forma, a pele se curva novamente — [...] cada modo de existência é uma dobra da pele que delineia o perfil de uma deter minada figura de subjetividade.”5 É nesse sentido que podemos perceber a carga de transitoriedade e flexibilidade que assum e o processo de subjetivação: um processo que desterritorializa quaisquer tentativas de se fixar tempos e espaços. Melhor seria dizer que dentro e fora não seriam mais categorias fixas do espaço, mas “situações espaciais”: “cada linha de tempo que se lança é uma dobra que se concretiza e se espacializa num território de existência, seu dentro. [...] Cada figura e seu dentro dura tanto quanto a linha de tempo que a desenhou [...]”. 6
Entretanto, esse processo não se dá de maneira assim tão simples. Se essa relação do indivíduo com o meio promove uma certa homeostase, há dentro de todos nós, como que um dentro cristalizado, uma “árvore” aves sa aos trânsitos, sempre a postos, dotando a pele de filtros que permitem entrar somente o fora “conveniente”. Cria-se, na radicalidade dessa crista lização interna, uma situação de “inconciliabilidade” : um mal-estar dado pela impossibilidade de superação dessa tensão. Essa seleção do “fora” interrompe o fluxo natural do tempo, culminando na modalidade de inter rupção “drogadição de identidade” :
O viciado em identidade tem horror ao turbilhão das linhas de tempo cm sua pele. A vertigem dos efeitos do fora o ameaçam a tal ponto que para sobreviver a seu medo ele tenta anestesiar-se, deixando vibrar em sua pele, de todas as intensidades do fora, apenas aquelas que não ponham em risco sua suposta identidade. Este homem se vê então obrigado a consumir al gum tipo de droga se quiser manter a miragem de uma suposta identidade. [...] Obviamente, ele nunca chega lá, já que lá é uma miragem. E quanto mais se frustra, mais corre atrás; e quanto mais desorientado, estressado.
5 Rolnik, Sueli. Subjetividade, ética e cultura nas práticas clínicas. Cadernos de subjeti vidade. Sâo Paulo: PUCSP, v .l, n .l, 1993, p.305-313; p.306.
ansioso, perseguido, culpado, deprimido, em pânico, mais ele se droga. Um círculo vicioso infernal.7
Sueli Rolnik vê a diferença no artista, na maneira pela qual ele “admi nistra” as suas transformações internas com o exterior e as repõe em obra. Assim, se ele sempre se apresenta como diagrama em gerúndio, seu trabalho coloca-se na mesma situação - o work in ptvgress - ao mesmo tempo alimen tando e sendo alimentado pelo meio. Atentemo-nos aqui para o sentido de “obra aberta” de Umberto Eco, obra cuja condição de existência repousa no seu devir, na abertura semântica que permite a sua atualização através do tempo - “como proposta de um “campo” de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de maneira a induzir o fruidor a uma série de “leituras” sempre variáveis [...]”8 - e percebamos como a obra aberta afina-se com o pensamento de Rolnik
sobre a destinação social dessa subjetividade-(em)-obra:
é primeiro em microuniversos culturais e artísticos que relações de força inédi tas ganham corpo e, junto com um corpo, sentido e valor. Estes microuniversos constituem cartografias [...] do ambiente sensível instaurado pelo novo diagra ma. Tais cartografias ficam à disposição do coletivo afetado por este ambiente, como guias que ajudam a circular por suas desconhecidas paisagens.9
7 Ibid, p .308-309. Esse “vício de identidade” parece encontrar eco no texto de Luís C láu dio Figueiredo, ao colocar sobre a condição do estrangeiro na formação do sujeito. O estrangeiro, que m uitas vezes está muito m ais próximo do que comumente se espera, pode su sc ita r reações de reforçar em alg u ém com “ d rogadição de id e n tid a d e ” o estranham ento, “m antendo o estranho tão longe quanto possível [...]” Cf. Luís Cláudio Figueiredo,/! questão da alteridade nos processos de subjetivação. In: Catenna KoltaI(org.)
O estrangeiro. São Paulo: Escuta/Fapesp, 1998, p 62.
8Eco, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 150. M ais à frente o autor complementa: “ [...] assim como o leitor escapa ao controle da obra, a certa altura a obra parece escapar ao controle de quem quer que seja, inclusive do autor, e prosseguir o discurso “ sponti sua” , como um cérebro eletrônico enlouquecido. Então, não há m ais possibilidades; mas o indistinto, o originá rio, o indeterminado em estado selvagem, o todo, o nada.” Ibid, p. 162.
9Rolnik, Sueli. Umberto op. cit., p .308 A drogadição de identidade surge como o estágio em que seria útil uma ajuda profissional. E é aí que esse diagrama em aberto - a figura do artista - é chamada a ser, pelo menos observada, não somente pelo paciente, m as sobretu do pelo profissional que o atende. Abre-se, além de uma “porta” social para a figura do artista, outra perspectiva, ética. Aqui entende-se ética como afirmação da vida enquanto continua desestabilização. Uma ética dada por essa constante subjetivação e que deve chegar até o profissional, impelindo-o a uma nova postura: “estar à escuta da dor causada pela desestabilização, anunciadora da finitude. [...] é preciso [...] suportar esta dor em nós m esm os e improvisar modos de existência que dêem sentido e valor para aquilo que o m al-estar de nossa pele nos sopra.” Sueli Rolnik, op. c i t , p.310.
Já Cristina Rauter constrói seu pensamento tendo como horizonte a afirmação de Deleuze e Guattari da Arte como sendo uma “psicanálise bem-sucedida”, esperando que, à maneira do processo artístico, haja tam bém, por parte da clínica, uma “eficácia [.. .] no sentido de produzir muta ções no campo da subjetividade”.10 No entanto, desde já ela afasta-se tan to de um a concepção de A rte que lida com questões biográficas e idiossincráticas de artistas quanto de uma idéia historicista da Arte e de valorização da memória. A autora, ao enfocar seu olhar para a Arte, o faz na perspectiva do impacto social e estético dos movimentos de vanguar da. E é por isso mesmo que seu ponto de partida é o fim do século XIX, dado como o início da arte moderna, que caracterizou-se pelo rompimen to com a tradição. Juntamente com a noção tradicional e instituída de arte, outros valores também começam com sua derrocada ao fim do mesmo século. É o caso da família burguesa, sobre cujos escombros nasce a psi canálise, campo de impasses a atuar sobre o sujeito, instância “já em deri va” : “nunca se lutou tanto por um eu, e nunca a produção da subjetividade teve um caráter tão serializado, tão uniformizado e impessoal”.11
Ao referir-se às vanguardas artísticas, a autora notadamente detém- se no construtivismo russo, por perceber relações deste com a “Clínica Construtivista” de Guattari, “capaz de romper com ideais de cientificidade ultrapassados, tomando paradigm as ético-estético-políticos”.12 Esses paradigm as refutam os princípios da verificabilidade científica e da imprescindibilidade de provas para se constatar um fato ou uma teoria. Entretanto, se os vícios do utilitarism o e do tecnicism o cerceiam a inventividade criadora, tal como se deu no próprio Construtivismo Russo, processo similar pode acontecer na prática clínica. Essa “tentação prag mática e utilitária” é verificada pela questão do trabalho. Há uma tentativa de adaptação do psicótico ao sistema ou da intensificação de sua capaci dade criadora, mas tomando-o alheio ao resultado de sua produção.
E assim a autora prossegue: estabelecendo relações de analogias des sas novas proposições artísticas questionadoras de valores estético-artísti- cos arraigados no seio da sociedade, com a necessidade de produção de “novos universos existenciais” que possam colocar-se frente a antigas es truturas do ser social, ela detecta essas relações como crises que se tornam làtores geradores de novas propostas artísticas. Rauter fará um interessan te paralelo entre alguns conceitos de Deleuze e Guattari e de depoimentos
'"Rauíer, Cristina. Subjetividade, arte & clinica. In: A ndrc Silva et alli (org.) Subjetivida de: questões contemporâneas. São Paulo: Editora Hucitec, 1997, p. 109-119, p. 109.
" Ibid., p. 114.
dados por Malevitch. Se para este artista o passado era encarado como um obstáculo, isso implicava em um conceito de inventividade que admitia o novo, um conceito de criação que compactuava com a postura moderna em geral. Assim, para ele havia uma instância criadora, que ele denomina de “vazio criador”, de onde provêm as formas e os objetos do mundo da ciência. Essa idéia, entretanto, foge da noção de transcendência que ali menta a Filosofia até o fim do século XIX. Sua arte, pelo contrário, se visualizarmos o “quadrado preto” ou o “quadrado branco sobre fundo bran co”, nada diz dessa transcendência, mas de uma imanência que se traduz na própria superfície do quadro, ele então sendo visto na sua própr a objetualidade. “Malevitch criou a denominação superfície plana pictural para designar o que considerava ser a grande invenção modema das artes plásticas, ao se desprender da função representativa.”13 Esse plano não representacional significaria, assim , a autonom ia da p in tu ra e sua desvinculação a qualquer função externa a si mesma.
Num caminho diferenciado do de Malevitch, D eleuze14 chega a essa potência de criação, denominada de “plano de imanência” . Um plano do qual nos servimos na criação de nossa subjetividade, o caos originário do qual tudo provém. Nossa subjetividade, entretanto, não como organizadora desse caos, mas advinda dele, de um “inconsciente maquínico” : “um in consciente que se autoproduz, que é este plano a partir do qual todas as formas são criadas,” onde o que importa não é o resultado obtido (o sujei to), mas “os deslocamentos ou os agenciamentos”15 (a subjetivação). Che gamos assim à idéia de que, se o inconsciente maquínico opera na forma ção de uma subjetividade por uma riqueza processual de agenciamentos, de maneira analógica isso se dá com o sujeito-artista e se dá na arte con temporânea, especificamente aquela derivada das experimentações dos anos 60 e 70, cuja força e interesse estão calcados no espaço entre a con cepção inicial de uma idéia e sua provável concretização. Algo que se assemelha assim ao termo poiein, um resgate do próprio termo fazer. O fazer artístico pressupõe uma descontinuidade de ação e tempo, a ação do acaso como co-estruturador às avessas da obra. O inconsciente maquínico operando, portanto, no espaço do intervalo: o “coeficiente artístico” esti
13Rauter, Cristina, op. cit., p. 117.
14 Contrariamente ao “pictural”, Deleuze aposta na arte “figurai”, ou seja, aquela que amda m antém vínculos de reconhecimento com uma realidade externa à da arte. Porém, a arte figurai coloca-se, com suas formas, em aberto, "para se deixar atravessar por um campo de forças ” 14, uma força “caósm ica” , aqui entendendo-se o caos como germe de criação. Cf. Rauter, op. cit., p. 118.