UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
Dissertação apresentada ao Corpo Docente
do Curso de Mestrado em Enfermagem da
Universidade Federal do Ceará (UFC)
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Enfermagem
FORTALEZA - CEARÁ 1996
A 773 ti Arrais, Fátima Maria de Aragão.
Doação de filho: um gesto símbólico/Fátíma Maria de Aragão Arrais. - Fortaleza, 1996.
122p.: íl.
Orientadora: ProF. Dra Loríta Marlena Freitag Paglíuca
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federai do Ceará. Departamento de Enfermagem.
1. Doação de filho. 2. Gravidez indesejada. 3. Aborto. I. Título.
FÁTIMA MAFUA DE ARAGÃO ARRA^S
&
Prof, DrT LORITA MARLENA F. PAGLIUCA
PRESIDENTE
/' 'i z.b , / :
Prof, Dr;i. RAIMUNDA MAGALHÃES DA SILVA
2a Examinadora
Prof, Dra. MARTA MARIA COELHO DAMASCENO 3a Examinadora
A Deus,
Supremo Orientador e Fortaleza, por guiar minha existência.
A Adaly, Patrícia, Lyssa e Fábio, minha família,
pelo carinho e apoio nesta trajetória, compreendendo meus momentos...
Ao meu irmão José,
exemplo de luta e resignação frente às adversidades do
processo saúde-doença.
As
pessoas
entram
e saem
de
nossas
vidas. Mas
elas
não
vão
só...
Sempre
levam um
pouco
de nós
e deixam
um
pouco
de
si.
Gislane
In memoriam
Ao meu pai e à minha irmã, ausências sempre presentes em minha vida.
À professora Dra. Tereza Maria Frota Haguette, exemplo de mestra,
que partiu para cumprir outra experiência de vida, por sua significativa
de
ajuda.
Paulo Coelho
À ORIENTADORA,
Prof. Dra. LORITA MARLENA FREITAG PAGLIUCA,
um agradecimento especial, por me acolher no meio da caminhada, acreditando no meu trabalho. Como profissional favoreceu
meu crescimento e aprendizado, questionando e promovendo reflexões na busca de novas descobertas. Como amiga, grata pela interação,
palavras de apoio, compreensão e amizade.
A G R A D E CIMENTOS
A
gratidão
é
o
coração
da memória
e
um
homem
mostra-se ocasionalmenfe
grato
quando
diz:
OBRIGAÜO!
BENJAMIN DISRAELI
À minha mãe, por seu exemplo de ser humano e revestir minha
vida de amor, dedicação e compreensão.
Ao curso de Enfermagem da UFC, pela oportunidade
concedida ao meu desenvolvimento.
Ao Dr. Suenon Bastos Mota, Juiz da Infância e Juventude da Comarca de Fortaleza, pela acolhida e presteza que permitiu o desenvolvimento deste trabalho.
A Sandra M. Lira Fernandes e Fátima Duarte Mota,
funcionárias do Juizado da Inf. e Juventude, sempre dispostas a
colaborar, minha gratidão.
À minha família e meus amigos pela afeição e incentivo que sempre me deram.
compreensão com que assumiram minhas atividades docentes.
Às enfermeiras, assistentes sociais e psicólogas da Maternidade Escola Assis Chateubriand, pelo desvelo nos contatos com as mães da amostragem.
Às colegas Raímunda Magalhães da Silva e Maria Salete B.
Jorge, pelos valiosos empréstimos literários.
A Francileide Paiva de Oliveira, que, com carinho e paciência, decifrou o manuscrito na primeira versão digitada.
À Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa, pelo apoio financeiro para que eu concretizasse essa dissertação.
À bibliotecária Vânia Pinheiro de Souza, pela orientação
bibliográfica,
A Sílvia Regina Gomes Costa que produziu a digitação final e
apresentação.
As alunas Maria do Carmo S. Oliveira e Andreia Gomes Linard,
pelas transcrições dos discursos.
Last but not the least, meu especial agradecimento as amigas e colegas:
Francilita Frota Loureiro e Dalva Santos Alves, pelas palavras
de força e de carinho nos momentos difíceis desta trajetória, dando-me a certeza de que eu não estava sozinha.
Marta Maria Coelho Damasceno, pela solicitude e atenção ao longo da caminhada, decifrando comigo o meu discurso e fazendo o
subjetivo acontecer em amizade, incentivo, compreensão, dedicação e confiança,... È wiíhív bom saber Você é minha amiqa!
Feliz
e o
homem que tem
um amigo.
ais feliz
é
o
que
tem
muitos
amigos.
R. Clark
Trabalho de abordagem qualitativa descritiva que teve como
objetivo desvelar o significado da doação do filho para a mãe,
compreendendo sua definição de situação face a decisão de doá-lo. Os
dados foram obtidos mediante observações livres, diário de campo e uma entrevista semi-estruturado fundamentada em três itens básicos - Identificação, gravidez e doação. A coleta se deu no período de março a
junho de 1995, tendo o estudo sido realizado com 19 mães. A análise
interpretativa das falas foi procedida à luz do interacionismo simbólico na
perspectiva de Herbert Blumer. Nelas ficou evidenciado que, ao gesto
simbólico da doação do filho, as mães atribuem os significados de amparo financeiro, educacional e afetivo; liberdade social e do companheiro; atenuação da culpa pela gravidez indesejada e tentativa de aborto. Esta
tentativa de descoberta do significado revelou também que a mãe, ao doar o filho, direciona sua ação sob très perspectivas, a dela, a do filho e de
ambos, ficando evidenciado, também, ser este gesto uma decisão difícil de ser tomada pela mãe, uma vez que ele contém elementos de incerteza, esperanças e fraquezas.
SUMMARY
Work of descriptive qualitative boarding, had as objective to watch the meaning of the son’s donation for lhe mother, understanding its
definition of situation face the decision of donating it. The data were
obtaíned by means of free observatíons, field newspaper and a semi- structured ínterview based in three basic items - Identification, pregnancy and donation. The data were collected in the period of March to June of
1995, having the study been accomplished with 19 mothers. The interpretative analysis of the speeches was proceeded to the light of the
symbolic interactionism in Herbert Blumer's perspective, In those it was
evidenced that, to the symbolic gesture of the son’s donation, the mothers attribute the meaníngs of financial, educational and affective help; social freedom and of the companion; and attenuation of the blame for the pregnancy undesirable and abortion attempt. This attempt of discovery of
the meaning also revealed that the mother, when donating the son,
addresses its action under three perspectives; hers, her son and both's,
being evidenced, also, to be this gesture a decision difficult of being taken
by the mother, once he contains uncertainty elements, hopes and
RESUMO x
1 DOAÇÃO - UM FENÔMENO SÓCIO-CULTURAL 1
2 A TRAJETÓRIA TEÓRICA 13
3 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA 29
4 O CAMINHO PARA A INTERPRETAÇÃO 38
5 REFLEXÕES FINAIS 91
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 97
1. DOAÇÃO - UM FENÔMENO SÓCIO-CULTURAL
Ao me propor a realizar o curso de mestrado, sabia, desde o início, da necessidade de produção de um conhecimento científico - a dissertação - como condição sine qua non para obtenção do título; e desde já, comecei a refletir sobre qual tema
abordaria, uma vez que não gostaria de fazer algo apenas por exigência de uma situação.
Queria, sim, realizar um trabalho que estivesse diretamente relacionado com minha vivência pessoal e profissional;
que me fizesse sentir e ser útil, mas, acima de tudo, que fosse um
trabalho prazeroso de descobertas, conquistas e superações.
Dada a minha condição de docente, o conhecimento
científico passa a ser um modo contínuo de interação entre o ensino e a aprendizagem. Entretanto, com o passar do tempo, algumas
pessoas, e eu me incluo neste meio, se descobrem mais exigentes de
si quanto à sua capacidade geradora de conhecimento, buscando
desafios e formas de superá-los. Neste esforço de ampliação, aperfeiçoamento e busca do que pesquisar, emergí numa reflexão
sobre minhas inquietações como mulher, mãe e profissional.
Sabe-se que toda pesquisa tem por objetivo a produção
de um conhecimento científico sobre determinada realidade, e que
sua origem, segundo ALVES (1991), comporta tradicionalmente três tipos de situações:
DOAÇÃO - UM FENÔMENO SÓCIO-CULTURAl 3
b) inconsistência entre deduções decorrentes de teorias e resultados de pesquisas ou observações feitas na prática cotidiana;
c) inconsistência entre resultados de pesquisas
diferentes ou entre este e o que é observado na
prática.
À medida que refletia na busca da definição de um tema que me conduzisse a algo a ser conhecido e desnudado, retroagi no tempo e no espaço às minhas experiências vividas, e urna cena acontecida ainda quando estudante me veio a mente. Era uma mãe jovem, na porta da maternidade, chorando profusamente, que
hesitava em entregar seu filho a terceiros, enquanto a família ao lado
a instigava a doar logo a criança, pois a “dor seria menor" e ela
"sofreria menos".
Perplexa diante de tal cena, fui tomada por sentimentos ambíguos que iam do pesar à revolta, da crítica e condenação à anuência, o enternecer. Senti-me impotente frente a situação, dada talvez a minha inexperiência e imaturidade.
Passado o tempo, já como profissional, iniciei a carreira de magistério, lecionando a disciplina enfermagem materno-infantil,
oportunidade em que me aproximei mais diretamente dessas mães doadoras, de suas angústias e preocupações, já que desenvolví minhas atividades em maternidade. Na ocorrência dessas doações,
chamam-me a atenção as reações de algumas mães face à decisão de dar o filho: choro, revolta, conformismo e indiferença. Frente a comportamentos tão distintos, surgiram algumas indagações: por que
essas mães doam seus filhos e outras não, quando a realidade social, econômica, política e religiosa é comum à maioria delas? O
que esse filho tem em especial? Que impacto este ato tem sobre a
vida futura da mãe? Que amor é esse que dizem ter e tentam deles
No decurso dessa reflexão, cheia de dúvidas,
questionamentos e conflitos, percebí que a doação de filho, apesar de uma prática antiga que remonta à origem da história da
humanidade, quando Ana, mulher de Elcana - após ter sido
concebida com a graça de um filho - o doou ao Senhor por todos os
dias de sua vida (Samuel, livro 1. cap. 1 e 2), me inquieta desde a
simples menção das palavras, em razão do surgimento de
sentimentos e idéias contraditórias, cujo grau de abstração me
confunde e incomoda.
Não obstante viver numa das regiões mais pobres do
País, o Nordeste - onde graves fatores sócío-econômícos, culturais e políticos tendem a acentuar-se pelo baixo nível de educação do povo - muito me tem incomodado o fato de que o Ceará tem sido alvo
constante de notícias no que concerne ao problema de crianças
doadas/adotadas. Só na presente década, mais de 1600 crianças cearenses foram adotadas por casais estrangeiros e em grande parte de forma irregular (GURGEL, 1993).
Não são raras as denúncias de seqüestros e o
arrependimento de mães que tiveram filhos retirados de seu poder, por coação. Acrescente-se ao problema o número cada vez maior de crianças abandonadas em ruas e creches. Dadas as grandes
dificuldades por que passa o País, não é de se estranhar que fatos
antigos como a doação e o abandono de menores se tornem
frequentes.
Nos últimos anos, principalmente há apenas três gerações, a mulher adquiriu uma liberdade até -então, jamais experimentada, em que a liberdade sexual e social foi a
característica principal. Entretanto, circunstâncias sociais, culturais
e econômicas, como sua inserção no mercado de trabalho, o direito ao estudo, os preconceitos de subordinação, por exemplo, passam a
lhe impor graves restrições, principalmente no que diz respeito à maternidade (LANGER, 1986),
DOAÇÃO - UM FENÔMENO SÓCIO-CULTURAL 5
Considerado um dos principais períodos do ciclo vital da mulher, em decorrência das transformações físicas, psíquicas, econômicas e sociais que ela experimenta, a gravidez se torna relevante, quando consideradas as altas taxas de morbimortalidade
materna, principalmente na Região Nordeste.
Analisada sobre o aspecto do desejo de engravidar, o
tema merece especial atenção, visto que, quando desejada,
planejada, a gravidez é objeto de realização da mulher ou do casal,
parecendo-me que, como mãe, a mulher encontra todas as respostas
à sua nova condição. Entretanto, estudos têm demonstrado que, quando indesejada, frequentemente a mulher é induzida a tomar decisões extremas, como o aborto e a doação do filho,
principalmente se incide sobre um período caracterizado por
ambivalências que marcam todo o desenvolvimento do indivíduo,
caracterizado pela imaturidade física e psicológica: a adolescência.
Considerada por séculos como uma tendência inata a toda mulher, a maternidade passa, nos últimos anos, por questionamentos
quanto ao seu real objetivo, dada a grande tendência de se confundir determinismo social com imperativo biológico.
Segundo BADINTER(1 985), ao se conceber a maternidade ainda hoje como um tema sagrado, torna-se difícil questionar o amor materno, uma vez que a mãe, identificada com Maria, símbolo
infalível do amor ablativo, permanece em nosso inconsciente
coletivo. Ao questionar o mito do amor materno, ela ressalta o fato
de que, muitas vezes, os valores determinantes de uma sociedade
têm peso incalculável sobre os nossos desejos e que, aos olhos daqueles que defendem o amor materno, a maternidade e o amor
estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina. Neste contexto, entende-se que
uma
mulher é
feita para
ser
mãe, e mais, uma
boa
mãe.
Toda
exceção à norma
será
necessariamente
analisada
em
termos
de
excegão
patológica.
A
mãe
indiferente é om
desafio
langado
â natureza,
a
anormal por
excelência
(
bandinter,
1985).
Numa ambiência social em que a maternidade define a essência do feminino, algumas vezes esta própria sociedade conduz à ambiguidade, quando tal fato não ocorre dentro de padrões pre
determinados, como é o caso das mães solteiras. Pressões e limitações da vida social levam a mulher a tomar decisões muitas
vezes contraditórias e questionáveis.
Para GERMAIN(1 989), frequentemente, a gravidez indesejada é entendida como uma questão política, moral e social,
que não leva em conta a angústia das mulheres, tornando mais fácil
culpá-las de sua situação difícil, uma vez que são omitidos os reais fatores sociais que as induzem a esse estado.
De acordo com a OMS apud IONESCU (1988),
a
gravidez desejada ou
não,
independentemente do
meio cultural ou
social
que
apareça,
desempenha um
importante
papel
na
determinação
das
oportunidades
futuras da
jovem,
em
prejuízo
de
suas
aspirações
pessoais.
Especialmente
no
caso
das
adolescentes
solteiras,
tem-se
observado
a
precipitação
de
uma
ampla série de
acontecimentos que
se
combinam
por
desorganizar
tanto
a
educação
quanto
sua vida
familiar.
PINOTTE (1989), por sua vez, afirma que toda gravidez indesejada representa uma falha da sociedade e não da mulher.
SAI apud GERMAIN (1989) vai mais além, ao dizer que fatores sociais e culturais mais profundos e complexos, como a
DOAÇÃO • UM FENÔMENO SÓCIO-CULTURAL
crença e prática da subordinação da mulher ao homem na sociedade,
a discriminação, a sua exclusão da saúde, trabalho, educação, política e das tomadas de decisões nacionais, fomentam as
condições que favorecem a gravidez indesejada.
Nestes termos, é importante observar que frente à
gravidez indesejada é comum, num primeiro momento, a mulher optar pelo aborto, revertendo à doação do filho após algumas tentativas mal sucedidas.
MASHALABA (1989) concorda com a observação anterior
e ressalta o fato de que tal opção independe do estado civil, status
social e idade da mulher.
A decisão de levar a gravidez indesejada a termo ou abortar é um dilema doloroso para a mulher, pois nada pode ser
mais debilitante ou depressivo que engravidar em momento
inoportuno, e, ao optar pelo aborto, os conflitos continuam, já que,
frequentemente, ela não conta com apoio moral e solidário da sociedade (KABIR, 1989).
MASHALABA (1989) corrobora essa posição de KABIR e ressalta que, muitas vezes, o aborto ilegal é a única solução para as
mulheres com gravidez indesejada que vivem em países onde o aborto seguro é legalmente restrito ou indisponível, enquanto DAVID
& WEISS (1992) declaram:
E
trivial âfirmar
que
existe
uma
rnosifâ
psicologicamente
fácil
de
enfrentar
o
problema
da
concepção
não
planejada e
a
gravidez
não
desejada;
nenhuma
mulher
deseja engravidar
e
logo
abortar.
A
decisão
de
interromper
a gravidez
não
é
fácil nem
está
totalmente livre
de
arrependimentos
e remorsos.
Contudo,
outras opções
como
contrair
matrimônio
adoção
ou
ter
um
filho
a
mais em uma
relação
familiar
já deteriorada,
cria problemas
psicológicos
para a
mulher,
a
família,
a
sociedade
e
o
filho.
Em comentário a respeito da origem dos filhos, GONZÁLEZ (1993) nos diz que devemos recordar serem esses
menores provenientes de uniões consensuais bem estruturadas, assim como de outros tipos de união não tão estáveis, como a união passageira. Também, segundo ele, muitas gestações resultam de
relações incestuosas em que pai, irmão, tio, primo, violentam
sexualmente a menor; em outros casos, o abuso é cometido por visitantes do lugar, incluindo, em muitas ocasiões, o parceiro da mãe.
O autor chama a atenção para as empregadas
domésticas, muitas delas imigrantes rurais, cuja gravidez termina em
aborto clandestino ou abandono do recém-nascido. A impossibilidade
de ficar com o filho deve-se ao fato de que as famílias
empregadores, pertencentes aos estratos alto e médio, definem como incompatíveis o trabalho doméstico e a maternidade. Tais dados foram explicitados por MOTA (1994), em entrevista realizada
por mim em 1 993,
O predomínio de uma organização social patriarcal, onde,
para a mulher, se destinam a criança e a educação dos filhos e se privilegia o homem por não ter que enfrentar tais responsabilidades,
tem ensejado, cada vez mais, a formação de grupos familiares
compostos unicamente de mães e filhos. Tal fato acarreta uma
sobrecarga econômica, física e emocional destas mulheres que, em muitos casos, se veem limitadas e impossibilitadas de cumprir com
estas responsabilidades e decidem entregar seu filhos a terceiros,
seja de maneira transitória, ou definitiva, pela via legal da adoção
DOAÇÃO - LJM FENÔMENO SÓCiO-CULTURAL 9
Neste modelo de organização social e familiar pode-se
observar a reprodução de padrões sociais e culturais que ocultam ou
dissimulam realidades, tais como não evidenciar ser o homem quem primeiro abandona os filhos.
Assim sendo, a doação de filhos como referido, passa por uma dimensão mais ampla quando conhecidas algumas razões que favorecem o ato, como fome, miséria, abandono do companheiro e da
família, os preconceitos etc. - e não se questiona a simbologia da doação deste(s) filho(s) para a mãe. Esta simbologia muitas vezes tem um significado diferente para ela e para os outros. Será este
filho a representação de uma agressão, de um incesto, de uma relação amorosa frustrada? Ou é a tentativa de uma projeção de vida
melhor que a dela?
São questões como estas que tento descobrir, visto que, na maioria dos casos, o que se observa é a preocupação das pessoas quanto à origem da criança, o seu tipo físico, como
proceder à entrega etc., sem que, contudo, haja preocupação em ouvir as mães doadoras sobre suas angústias e expectativas.
Vale salientar que não é objetivo de meu estudo buscar e explicar as causas da doação de filhos. Todavia, considero
necessários para o delineamento da pesquisa a possessão e o uso de uma visão prévia ou esquema do mundo empírico sob estudo, visto ser esta visão a norteadora da pesquisa, conforme a concepção
metodológica apregoada por BLUMER (1969).
Por outro lado, pensar os paradoxos que se fundam na
relações humanas sociais leva-me a questionar o real significado do
termo DOAÇÃO, considerando que, ao se pensar em doação, de imediato nos vem a mente uma imagem positiva de alguém ou de
algo se desfazendo gratuitamente de alguma coisa sua, em função
de outro; seja doação de sangue, órgãos, verbas etc. implica sempre
Doação, segundo FERREIRA (1995), significa transmitir
gratuitamente (bens etc) a outrem. Dar, conceder, consagrar. LUFT
(1993), por sua vez, define como donativo, presente, concessão.
Nestes termos, a doação é compreendida como a
transmissão de um bem. Entretanto, as contradições que se
estabelecem no processo interpretativo usado pelas pessoas frente
às situações com que se defrontam, fazem-se enigmáticas e ambivalentes.
No que diz respeito à doação de filhos, é interessante observar que o significado da palavra doação nos dicionários difere, na prática, do seu significado social, em que a doação do filho é criticada e censurada, passando a mãe doadora a ser discriminada
até mesmo por mulheres que cometeram atos até bem mais graves e mais condenáveis social, religiosa e juridicamente, como o aborto, enquanto a adotante passa a ser vista como caritativa e bondosa.
À criança, para SANTAMARIA (1993), “cabe a
oportunidade de recuperar sua história ao ser recebida por uma
família que lhe garanta ambiente estável ao seu desenvolvimento e à sua seguridade."
Os dados, portanto, me levam a inferir que o termo
doação apresenta diferentes interpretações e aplicações, de acordo com a perspectiva utilizada pelos indivíduos.
Isto posto, creio que minhas inquietações quanto ao
problema da doação de filhos vêm bem antes da realização deste
estudo. Acho mesmo que de minha infância e adolescência, mas, principalmente, no transcorrer de minha vida profissional, quando
assisto a adoções de crianças, tanto no âmbito familiar e social, ou quando, dado o meu convívio em maternidade, sou solicitada a
conseguir uma criança para tal fim.
Parece aos olhos de muitos ser a doação do filho um ato simples, sem dores e sem história. Simplesmente, um desejo de dar
DOAÇÃO - UM FENÔMENO SÓCIO-CULTURAL
A história da humanidade, desde sua origem, é a história
da perpetuação da família, cujo percurso nos leva a longínquos e famosos processos de doação/adoção, sendo a doação do filho ausente de significado, porquanto se privilegia a adoção. A literatura e os estudos, embora numerosos, dirigem-se em sua totalidade a fornecer informações acerca da adoção, consistindo a priori, na
análise ou interpretação de temas como direitos fundamentais da
criança, guarda, tutela, leis da adoção, garantias e competências,
procedimentos, recursos etc.
Os raríssimos textos encontrados na literatura, em jornais
e revistas, sobre doação de filhos, em sua essência, estão voltados
para uma realidade exterior ao sujeito e cujo fenômeno da doação é
explicado através das relações de causa e efeito, demonstrando um
vago e fragmentado conhecimento do todo.
Neste contexto, podemos dizer que a literatura e os
estudos fornecem informações acerca da adoção de filho como fato e
consequência que se explica e classifica, mas não analisa o real significado do gesto precedente à doação do filho.
Feitas estas considerações a respeito do tema, é possível
afirmar que este estudo é fruto de minhas reflexões na qualidade de pessoa que convive com o fato e busca descobrir o que está encoberto no ato.
Pelo exposto, considero o estudo valioso na medida em
que me proponho, por meio de nova perspectiva, abordar o fenômeno doação de filhos, descobrindo através da fala das mães os
significados por elas atribuídos a essa experiência e, deste modo,
contribuir com uma peça a mais para o preenchimento da lacuna
existente sobre tão relevante temática. Sei que não esgotarei o tema
e que outras indagações virão, mas acredito que os resultados contribuirão, e muito, na construção do conhecimento para a
profissão, bem como na qualidade da assistência de enfermagem a estas mães angustiadas e carentes de informações e atenção,
possibilitando a busca de caminhos opcionais de ajuda se encontrar
em tal desagradável situação.
Entretanto, considero indispensável a esta assistência e
busca a compreensão interpretativa de consciência da mãe acerca da doação do filho. Mas, como fazê-lo, se não sei anteriormente o que a doação significa para ela e de que modo ela vivência e caracteriza essa situação?
Assim sendo, resolvi realizar este trabalho, que tem como
objetivo descobrir o significado da doação do filho para a mãe,
procurando compreender suas definições de situação em face da
2. A TRAJETÓRIA TEÓRICA
A busca de uma direção que me conduzisse ao encontro
do significado da doação de filho levou-me a percorrer uma trilha tortuosa e cheia de dúvidas que se iniciava pela própria dificuldade de caracterizar a pesquisa qualitativa pois segundo ALVES (1991),
a dificuldade
comega
com
a enorme
Variedade
de
denominagões que
compõem
essa vertente:
naturalista
pós-positiva,
antropológica, etnográfica,
estudo
de
caso,
humanista,
fenomenológica,
hermenêutica,
idiográfica,
ecológica,
construtiva,
entre
outras.
Após algumas reflexões, optei pela realização de um
estudo na linha descritiva, considerando que, apesar das inúmeras
estratégias e tradições da linha qualitativa, existe um ponto comum a
todas elas, a VERSTEHEN (compreensão).
A opção por esta linha de pesquisa se pautou na
possibilidade de uma compreensão maior do significado atribuído
pela mãe à doação do filho, uma vez que minha preocupação se
localiza não na relação causa-efeito, mas na atividade “encoberta” do ato, nas definições de situação da mãe face à sua decisão de
doar o filho, e por entender que ela me permite ouvir o que e como as pessoas definem seu mundo e suas experiências, possibilitando a
superação das diferenças inseridas pelas ciências naturais positivistas na relação homem-mundo, quando estas se voltam apenas para a análise dos fatos.
15
A TRAJETÓRIA TEÓRICA
| Precisava, agora, de uma fundamentação teórica que me
| levasse a compreender melhor a realidade do mundo social e sua | complexa interpretação.
| Após a leitura de algumas teorias e de ver que muitas
* delas se adaptavam ao meu estudo, optei pelo INTERACIONISMO
i SIMBÓLICO na perspectiva de HERBERT BLUMER (1969). como
5
i,: abordagem norteadora, uma vez que versa sobre a conduta humana J e a interação social. Tal teoria possibilita-me maior compreensão do
significado que as pessoas dão aos objetos, objetos aqui
compreendidos como tudo o que é possível de ser indicado ou
: referido por uma pessoa, bem como o entendimento da
f transformação deste significado através de uma interpretação. Para LITTLEJOHN (1988), o interacionismo simbólico é
uma perspectiva teórica capaz de reunir várias teorias específicas,
como a teoria de persuação e mudança, a do significado e do pensamento, a de signos etc., dada sua amplitude sobre o papel da
comunicação em sociedade, ilustrando o fato de
as teorias
não
poderem
ser
vistas
como
uma série
de
explicações
independentes de
algum
fenômeno.
As
teorias
interrelacionam-se, sobrepõem-se e
inserem-se
em
padrões.
E
frequentemente
difícil
saber
onde
termina
uma
teoria
e
começa
outra.
Considerada uma perspectiva ou orientação teórica da psicologia social de William James, que se ampliou e solidificou no campo da sociologia, ao final do século XIX, com John Dewey,
Charles Peírce, William Thomas, Charles H. Colley e George Herbert Mead, foi somente com Herbert Blumer, em 1937, que o termo
interacionismo simbólico foi criado. A Mead (1863-1931), professor
de filosofia da Universidade de Chicago, cabe o título de arquiteto do interacionismo, pois que foi ele o principal gerador da
abordagem, influenciado em suas idéias pela filosofia do
pragmatismo, o trabalho de Charles Darwin e o behaviorismo.
Para o pragmatismo, a interação humana é que determina o que é real, define os objetos e conhecimentos consoante suas utilidades, e compreende os seres humanos de acordo com que eles fazem no mundo; já a visão darwiniana, por sua vez, influenciou Mead, ao apresentar o ser humano como parte da natureza, único, e em constante modificação; o behaviorismo, por entender o ato social
como unidade básica de análise do comportamento humano, ato este que, segundo Mead e a perspectiva interacíonista, tem sempre uma ação dissimulada e oculta ao que nós fazemos em relação aos outros
e a nós mesmos (CHARON, 1989).
Na realidade, Mead não publicou uma obra completa e
sistemática sobre o interacionismo. Suas obras The Philosophy of lhe present (1932), Movements of thought in the 19th century (1936),
Philosofhy of the act (1938), e a mais importante delas - Mind, self
and society (1934) foram organizadas a partir de esquemas de aulas, palestras, manuscritos fragmentários etc. e publicados após sua
morte. Dada a falta de intencionalidade de publicação, estas apresentam-se muitas vezes vagas, imperfeitas e desorganizadas. Pode-se dizer que antes da edição de suas idéias sobre
comunicação, a perspectiva interacíonista foi propagada principalmente através da transmissão oral, em especial durante
suas aulas.
KUHN apud LITTLEJOHN (1988) divide o interacionismo simbólico em 2 fases: a primeira - da tradição oral - período em que se desenvolveram as mais importantes idéias sobre a teoria e onde MEAD e outros interacionistas, ao considerarem os seres humanos e
a sociedade como interdependentes e inseparáveis, afastam-se das
perspectivas sociológicas primitivas. Neste período, são enfatizados a importância do desenvolvimento social, os fatores biológicos inatos, o impacto da comunicação sobre os indivíduos e a sociedade,
17
A TRAJETÓRIA TEÓRICA
união na sociedade, A preocupação voltava-se, sobretudo, para o estudo da relação dos seres humanos com a situação social, e a
defesa da impossibilidade do comportamento ser estudado fora do
contexto e da percepção da pessoa sobre seu meio ambiente.
O segundo período ou idade da indagação surge após a
publicação de Mind, se/f and society. Nesta fase, apesar das idéias singulares de Mead, duas escolas divergem entre si quanto à maneira de abordar os conceitos da teoria: a Escola de lowa, sob a
orientação de Manford Kuhn, e a Escola de Chicago, liderada por
Herbert Blummer. Estas escolas discordam em relação ao campo metodológico; a natureza do comportamento humano no que se refere a liberdade ou determinação; a concepção do se/f e da
sociedade como processo ou estrutura; e quanto aos níveis da
interação simbólica (HAGUETTE, 1992).
Vale ressaltar que, apesar das divergências, ambos
concordam com os princípios fundamentais do interacionismo simbólico, ou seja, a tríade mente, eu e sociedade, em que
sociedade é vista como consistindo de pessoas em ação, capazes de fazer indicações para si mesmas, dado possuírem um eu. O eu
representa um organismo que responde aos outros como a si e que surge da interação social. Nestes termos, a sociedade precede a
existência do eu e representa o contexto no qual ele surge e se
desenvolve, sendo a mente, por conseguinte, o processo que se
manifesta sempre que o indivíduo interage consigo próprio usando
símbolos significantes.
Contendo um núcleo de premissas comuns sobre
comunicação e sociedade, a abordagem interacionista focaliza a dinâmica das atividades sociais entre as pessoas, ou seja, a natureza da interação, o que nos dá uma imagem mais ativa do ser humano recusando a idéia de organismo passivo, determinado, que
simplesmente responde a ação do outro de forma mecanicista. Para ela, o comportamento humano, cujo fundamento precípuo está no ato
interacional, o que possibilita ao indivíduo programar suas ações em relação ao outro, dando significado aos objetos utilizados na realização de seus planos (IVHNAYO, 1993),
O interacionismo simbólico vê o comportamento humano
como uma construção da pessoa no decorrer de sua ação, uma vez
que cada ator, ao perceber a intenção dos atos do outro, constrói sua própria resposta. Os atos podem ser breves ou concebidos como
um plano de vida. De uma maneira elementar, pode-se dizer que o ato social é uma relação tríade que se inicia com o gesto de um
indivíduo, uma resposta aberta ou encoberta a esse gesto por outro indivíduo e uma resultante do ato - a ação - que é compreendida ou imaginada por esses indivíduos em interação (LITTLEJOHN, 1988).
Esse processo envolve uma atividade mental que vai deste a
percepção à atribuição do significado, passando por uma repetição e ponderação mental que termina com uma definição de situação, que
THOMAS apud HAGUETTE (1992) conceitua como estágio de exame
e deliberação preliminar a qualquer ato de comportamento autodeterminado.
Mead estima que o comportamento humano é uma
resposta às intenções e não as atividades dos outros, e que essas
intenções são repassadas através de gestos passíveis de
interpretação, ou seja, gestos simbólicos. Tais gestos, ao assumirem um sentido comum, ao adquirirem um elemento linguístico, são qualificados como símbolos significantes. A sociedade humana é,
portanto, vista como uma série de interações cooperativas que se
estabelece na base do consenso, de sentido compartilhado sob a
forma de compreensão e expectativas comuns fHAGUETTE, 1992), Símbolos são definidos como objetos sociais usados pelo
ator para comunicar ou representar alguma coisa, e são
estabelecidos através da interação do ator consigo e/ou com outros. Eles envolvem uma compreensão mais do que uma simples resposta
19
A TRAJETÓRIA TEÓRICA
A linguagem é considerada um tipo especial de símbolo, uma vez que é usada para referir ou representar uma parte da realidade. Portanto, símbolos são vistos como significativos,
importantes, arbitrários e convencionais (CHARON, 1989).
Neste sentido, MEAD(1 994) vê o interacionismo simbólico
como a troca de mensagens pelo uso de símbolos, que adquirem
significados através da interação entre membros de um grupo social,
sendo a linguagem o mecanismo básico de desenvolvimento da
Mente e do Eu, bem como nosso sistema simbólico primordial.
As quatro idéias básicas do interacionismo, aceitas por
seus principais teóricos, tomam em consideração o fato de que: sociedades são constituídas de indivíduos em interação; indivíduos são compreendidos como agindo no presente, influenciados não pelo
que aconteceu, mas pelo que esta acontecendo agora; interação não é somente o que acontece entre os indivíduos, mas também com o indivíduo; os indivíduos direcionam suas ações baseados no que percebem e avaliam do mundo que eles definem para agir.
Explicando a aliança entre sociedade e seres humanos,
SHIBUTANI apud CHARON(1 989), diz que:
Seres
humanos id«ntificam-se
com
uma variedade do
mundo
sociais
(grupos de
referência, sociedade),
aprendem
através
da comunicação
(interação
simbólica)
de perspectivas
(simbólica, sistema
conceituai, cultura)
desses mundo sociais,
e
usam
essas
perspectivas
para definir
ou
interpretar as
situações
com
as
quais
se
depara.
Embora relevantes, percebe-se nos estudos clássicos daqueles que representam a tradição intelectual interacionista a ausência de um posicionamento metodológico que explique com clareza o pensamento da abordagem, fato que levou HERBERT
BLUMMER (1969) ao compromisso de ampliar e aperfeiçoar tal idéia.
Fiel as idéias meadianas, ele se propõe a traçar um perfil da natureza do ínteracionismo simbólico, identificar os princípios da metodologia, no caso das ciências empíricas, e a tratar especificamente com a postura metodológica do ínteracionismo simbólico.
Em sua obra Symbolic Interactionism: perspective and
method, publicada em 1969, tem-se uma visão unificada de seu pensamento. Apesar das formulações coerentes com as de MEAD,
ele ressalta
Ftii
compelido
a
desenvolver a minha
própria versão
tratando explicitamente de muitas
questões cruciais
que
estavam
somente
implícitas no
pensamento de
MEAD
e
outros,
e cobrir
tópicos críticos pelos quais
eles
não
estavam
interessado.
Ao dar continuidade à tradição humanista de MEAD, o
autor vê o homem como um ser inovador, criativo, de comportamento
imprevisível e indeterminado, livre para perceber a essência da
relação homem-sociedade; confere ao significado importância
fundamental no comportamento humano e inicia seu pensamento sobre a natureza do ínteracionismo simbólico a partir de três
premissas básicas:
1)
Os seres humanos agem em relação às coisas na base
do significado que as coisas têm para eles, coisas aqui referidas como tudo aquilo que o ser humano percebe em seu mundo, ou seja, objetos físicos, outros seres
humanos, categorias de seres humanos
(amigos/inimigos), instituições guias de idéias
21
A
TRAJETÓRIA TEÓRICAoutras situações que o indivíduo depara no seu dia-a~ dia.
2) Este significado é derivado ou surge da interação social
que o indivíduo estabelece com seus companheiros;
3)Este significado é manipulado e modificado através de um processo interpretativo usado pela pessoa ao tratar
com as coisas que ela encontra.
Nestes termos, faz uma crítica à ciência sociai e à
psicologia pelo fato de esses saberes menosprezarem a importância do significado no comportamento humano, uma vez que, nestas, o significado é compreendido como inerente ao objeto ou como resultado de certas orientações psicológicas da pessoa. Para estas ciências, o comportamento humano é produto da ação de vários fatores como estímulos, percepções, posição e papel social, culturas,
normas, valores etc. sobre os indivíduos. Para o ínteracionismo
simbólico, entretanto, o significado surge da interação entre as pessoas, ou seja, ele se forma e deriva no contexto da interação social. O significado das coisas para uma pessoa surge do modo como outras pessoas agem em relação a estas coisas.
A utilização do significado, todavia, implica uma interpretação que abrange dois momentos: primeiro a pessoa aponta
para si as coisas em direção das quais esta agindo, nomeando as
que têm significado. Ao realizar este ato, a pessoa interage consigo
de forma diferente daquela na qual interagem os elementos psicológicos. Isto representa um processo social de ínternalização no qual a pessoa se comunica consigo. Segundo, em decorrência, a interpretação se torna um problema de manipulação do significado através do qual a pessoa seleciona, confere, suspende, reagrupa e transforma os significados, com base na situação em que se encontra, e da direção de sua ação. A interpretação é, pois, um
Baseado nas premissas propostas por BLUMER (1969) ao procurar apresentar a armação de seu pensamento, o interacionismo simbólico necessariamente tende a desenvolver um esquema analítico acerca de certas idéias básicas relacionadas com a
natureza da vida em grupo ou sociedade, objetos, ser humano como
ator, ação humana e interconexão das Unhas de ação que, juntas,
representam a visão da abordagem interacionista sobre a sociedade
e a conduta humana.
Sociedade ou vida humana em grupo consiste de indivíduos engajados em ações, definidas como as múltiplas atividades desenvolvidas pelos indivíduos em suas vidas quando encontram uns com outros e como eles lidam com as sucessivas situações com que se confrontam. Sociedades existem em ação e
são vistas em termos de ação; logo, sociedade ou vida humana em grupo nasce de interações individuais cujas atividades de seus
membros consistem na resposta de um ao outro ou em relação ao
outro.
Os indivíduos podem agir individualmente, coletivamente,
em benefício de alguma coisa, como representante de algo, como
organizações ou grupos, e ao interagir uns com os outros, têm que levar em conta o que o outro está fazendo ou prestes a fazer,
dirigindo sua conduta ou lidando com as situações em termos do que
levam em consideração. Em face das ações do outro pode-se
abandonar, revisar, cotejar ou suspender, intensificar ou substituir uma intenção ou propósito.
Outro aspecto do pensamento de MEAD diz respeito à
necessidade de as partes interagentes assumirem o papel um do
outro (taking the role of other). Para apontar a outro o que ele está fazendo, o indivíduo tem que fazer a indicação do ponto de vista deste outro. Ele imagina a perspectiva do outro, comunica essa
perspectiva para si baseado no que ouviu e viu do outro. O role
taking é parte integrante de toda interação e comunicação efetiva de
23
A
TRAJETÓRIA TEÓRICAcompreendido pelo outro. Ao fazer indicações a outro, o indivíduo o
faz indicando objetos significativos para ele e que fazem parte do seu mundo.
O mundo das pessoas consiste de objetos. Objeto, no
sentido de seu significado, são as criações sociais formadas a partir da definição e interpretação realizadas através da interação humana.
Tomando em consideração que objeto é qualquer coisa que pode ser
indicada ou referida, BLUMER(1969) o classifica em três categorias.
Os objetos são: físicos (coisas), sociais (pessoas) e abstratos (idéias). A natureza dos objetos consiste do significado que estes
têm para a pessoa no qual é um objeto, tendo significados diferentes
para pessoas diferentes. Os objetos não tem status fixo, exceto
quando seu significado é mantido através das indicações e
definições feitas pelas pessoas. Desta maneira, a vida de um grupo
humano, na concepção interacionista, é divisada como um grande sistema de formação, sustentação e transformação de objetos, que, na medida em que alteram seu significado, modificam o mundo das
pessoas.
Dada a sua capacidade de interagir consigo, diz-se que o ser humano tem um Eu (se/f), significando que ele pode agir em
relação a si, tal como pode agir em relação a outro. Deste modo, o
indivíduo pode ser objeto de sua ação e como auto-objeto emerge
também da interação social, em cuja realização as pessoas o definem para si. Para ver-se (a si) o indivíduo deve colocar-se no
lugar do outro (role taking) ou no lugar de outros (generalized other),
vendo-se e agindo através desta posição. Percebemo-nos da mesma
forma que os outros nos vêem ou nos definem.
De acordo com BLUMER(1969), o ser humano é um
organismo que lida com o que observa e não apenas responde aos
fatores que sobre ele atuam. Seu comportamento em relação ao que
observa é uma ação que surge da interpretação feita através da auto-indicação, ou seja, ele percebe, internaliza, interage, avalia e
A ação humana consiste, pois, em levar em consideração
as várias coisas que se percebe e construir uma linha de conduta na base de como foram interpretadas. As coisas levadas em
consideração incluem desejos e vontades, objetivos e meios
disponíveis para sua consecução, ações previstas de outros, a
própria imagem etc. Com efeito,
Dadas
linhas
de
ação
podem
ser iniciadas, ou
estacionadas,
elas
podem
ser abandonadas
ou
adiadas,
elas
podem
ser reduzidas a
um
simples planejamento,
ou
sonho
de
vida
interior, ou
se
iniciada, elas
podem
ser transformada.
Em síntese, com relação à natureza da ação, ele diz:
...
devemos
reconhecer
que
as
atividades
dos
seres
humanos
consistem
no
enfrentamento
de
uma
sequência de
situações
nas quais
eles devem
agir, e
que
suas ações
são
construídas na base
do
que
eles
notam,
de
como
eles
avaliam
e
interpretam
o que
eles
notam,
e
do
tipo
de linha
de ação
projetadas
que eles
planejam.
Esta óptica de ação humana aphca-se tanto para a ação individual como para a ação conjunta ou coletiva (Joint action) que
consiste em indivíduos adaptarem, combinarem, suas linhas de ação
às de outros membros do grupo, sem perder tal comportamento
conjunto o caráter de ser construído através da interpretação no encontro de situações nas quais a coletividade é chamada a agir. A
ação conjunta resulta na interação dos diversos processos
25
A trajetória teórica___________________________________________________________
os outros. Este movimento conjunto é composto da atividade de linhas diversas de ação dos indivíduos que têm a qualidade de
tornar a união das ações individuais distinta do somatório destas
ações; embora exiba aparentemente formas estáveis e repetitivas de
ação social, cada uma de suas etapas tem que ser formada novamente, há de ser operada através de nova formação. Isto
permite aos indivíduos dividir significados comuns e predeterminados sobre as expectativas de ação dos participantes, sendo que cada participante tem condições de, à luz destes significados, direcionar o próprio comportamento.
Em paralelo a esta análise, BLUMER (1969) formula três observações básicas a respeito das interconexões que constituem a ação conjunta. A primeira adverte-nos sobre a tendência das visões
dominantes na literatura das ciências sociais de achar as formas
repetitivas desta ação como a essência da vida humana em grupo, acreditando que a sociedade humana existe na aderência a um
conjunto de regras, sanções, valores e normas, que especificam as
ações do indivíduo frente a determinadas situações.
As novas situações decorrem frequentemente de
problemas presentes, que exigem redefinições e ajustamentos, uma vez que os significados que mantém esta ação têm vida própria. É o
processo social na vida em grupo que cria e sustenta as regras, não
as regras que criam e sustentam a vida em grupo.
A segunda consideração refere-se á ampla natureza das
interconexões, sendo que ~ e isto é importante - instituições ou redes não funcionam automaticamente por causa de certas
dinâmicas ou sistemas de requerimento; funcionam porque as pessoas, em diferentes momentos, fazem alguma coisa, e o que elas fazem é resultado de como definem a situação na qual são chamadas
a agir.
A terceira nota diz respeito à importância do background
das pessoas para formar a ação conjunta. Uma nova ação nunca
esquemas de interpretações que o indivíduo possui. A nova forma
de ação conjunta emerge e está sempre conectada ao contexto da ação conjunta anterior, porquanto ela não pode ser compreendida à
parte deste contexto.
Um último aspecto a ser abordado por BLUMER(1 969) refere-se à metodologia através da qual mostra a luta do
ínteracionismo simbólico pelo respeito à natureza do mundo empírico
e pela organização de procedimentos metodológicos que exprimam este respeito, uma vez que sustenta estar a própria natureza do ínteracionismo simbólico contida em seu método.
O autor lembra que está lidando com o ínteracionismo
simbólico dentro de uma perspectiva de ciência social e empírica destinada a fornecer um conhecimento verificável da vida humana
em grupo e sobre a conduta humana, e não com uma doutrina filosófica. Para ele, o básico para a ciência do comportamento deve
ser o mundo empírico, disponível para observação, estudo e análise, ponto central de preocupação do pesquisador, fonte de partida e
locus de chegada da ciência empírica.
Nesse mundo empírico se encontra a realidade e somente nele ela pode ser procurada e verificada. Coerente com as ideações interacionistas é o postulado idealista de que o mundo da realidade
só existe através da experiência humana e que aparece somente sob a forma de como os seres humanos veem este mundo. A ciência empírica objetiva apreender imagens do mundo empírico sob estudo
e testá-las por meio do minucioso exame do próprio mundo empírico. A metodologia compreende preceitos ocultos que
orientam o processo total do estudo de caráter persistente de um
dado mundo empírico, e não apenas de alguns aspectos
selecionados deste estudo. Os métodos de estudo são subservientes a este mundo e por ele testados; a última e decisiva
resposta a este teste deve ser dada pelo mundo empírico e não por alguns modelos de investigação científica.
■? 7
A TRAJETÓRIA TEÓRICA
O método da ciência empírica envolve o aprofundamento do ato científico, incluindo as premissas iniciais, bem como todos os passos dos procedimentos incluídos naquele ato. Deste modo, a
investigação em sua forma ideal deve consistir de seis aspectos
indispensáveis à ciência empírica, quais sejam:
1) a possessão e o uso de uma visão prévia ou esquema do mundo empírico sob estudo;
2)a elaboração de questões do mundo empírico e a conversão das questões em prob/ema;
3) a determinação dos dados a serem co/etados e os
meios que serão utilizados para fazê-los;
4) a determinação das relações entre os dados;
5)a interpretação dos resultados; e 6) o uso de conceitos.
Após esse delineamento das bases teóricas das idéias interacionistas, enfatizadas nas concepções de BLUMER(1 969), não
será demais acrescentar que essa é uma abordagem realística da
conduta humana, segundo a qual indivíduos em interação contínua consigo e com os outros constroem o significado como fonte orientadora de suas ações, subsídio valioso para meu estudo.
Ao finalizar este capítulo, é essencial que se tenha em
mente a visão interacionísta sobre vida em grupo e ação social,
sintetizada pelo autor em quatro conceitos principais:
1) as pessoas, individual ou coletivamente, estão
preparadas para agir à base dos significados
dos objetos que compreendem seu mundo;
2) a associação das pessoas se dá,
necessariamente, sob a forma do processo no
qual elas estão fazendo indicações uma à outra e interpretando as indicações uma da outra;
3) os atos sociais, não importa se individuais ou
coietivos, são construídos através de um
processo no qual os atores percebem, interpretam e avaliam as situações com as quais
se deparam;
4) a interconexão complexa dos atos que
compreendem organizações, instituições, divisão de trabalho e redes de interdependência, são questões móveis e não-estáticas.
Assim sendo, inúmeros pontos obscuros do significado
podem ser compreendidos através das novas perspectivas abertas pela maneira como o interacionismo simbólico nos ensina a pensar. Por esta razão, esta teoria norteou minha trajetória na análise dos
dados para descoberta e entendimento cristalino do que significa
3. TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
A significação
é
vivência
pessoal de
um
sujeito,
pois
é
por
eie
experi
mentada,
mas é
ao mesmo
tempo de
valor universal,
pois
pode
ser
vivenciada
por
outros sujeitos.
CAPALBO
Decidido o tema, iniciava-se agora o longo caminho de
busca às respostas para as tantas questões que me afligiam, visto ser a indagação, segundo BUSSINGUER (1990), parte que emerge,
não apenas em um ponto inicial da caminhada, mas que permanece, mesmo à medida que se avança em amplitude e profundidade.
Esse trajeto começa quando me posiciono interrogativa frente ao significado, para a mãe, da doação de filho e procuro na literatura pertinente encontrar outros autores que dividam comigo as mesmas inquietações. Após exaustiva pesquisa nos sistemas de
busca da Universidade (COMUT, LILACS, MEDELINE, ABSTRATS, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, PRODASEN...) descobri a enorme lacuna existente no que concerne ao problema da doação de filhos.
Nesta fase exploratória, investigativa da doação, para
que tivesse uma visão geral do problema considerado, busquei
matérias em jornais e revistas, realizei entrevistas com juizes,
profissionais especialistas na área, antropólogos, sociólogos;
contatei enfermeiras, médicos e assistentes sociais que convivem com situações de doação; recorrí a processos jurídicos relacionados
í?
31
TRAJETÓRIA METODOLÓGICA 3
1
l ao problema, visitei instituições como o S.O.S. Criança, Delegacia
da Mulher e Juizado da Infância e Juventude,
Nesta época, busquei contatar mães doadoras,
objetivando a construção do mundo empírico proposto por
BLUMER(1 969), bem como possíveis colaboradoras quando da coleta de dados, Para isso, realizei um levantamento nos processos
de doação do Juizado da Infância e Juventude, registrados no
período de junho de 1994 a junho do ano seguinte, tendo identificado 31 mães doadoras.
Reunidas, analisadas e organizadas todas as informações
em um dossiê, mais uma vez constatei que os raros dados encontrados, em sua essência, estão relacionados à sua
contrapartida, a adoção, apreendendo o conhecimento do todo de forma imprecisa e inacabada, como referido de antemão.
Entretanto, precisavamos de mais dados para subsidiar a
construção do mundo empírico vivido pela mãe doadora, fato que me levou a optar pela revisão de literatura de três temas que, na minha
percepção, se relacionam com o estudo como causas e
consequência ~ gravidez indesejada, gravidez na adolescência e
adoção.
Agora, minhas preocupações se voltavam para a necessidade de conseguir amostras de mães adolescentes, visto ser
do conhecimento comum serem estas as que mais doam, fato que me ievou, em um primeiro momento, a fazê-las sujeito único de meu estudo. Posteriormente, como não se comprovou na prática este a
priori, adotei como sujeitos do estudo mães que haviam doado filhos
em algum momento de suas vidas, ou estavam prestes a fazê-lo, uma vez que algumas ainda se encontravam internadas na maternidade.
Após a alta hospitalar, voltava a manter contato com estas mães que
me confirmavam a doação, exceto uma, que reverteu a intenção de
doar após ter o aceite dos patrões para criar o filho, sendo, portanto,
excluída do estudo. É importante salientar que encontrei mães que
diferença relevante quanto às reações e significados no trato do
tema em relação às doadoras recentes.
Quanto à coleta de dados, a proposta inicial era de realizá-la em três cenários distintos: o Hospital Geral de Fortaleza,
Juizado da Infância e Juventude, e Maternidade-Escola da Universidade Federal do Ceará. O primeiro justificava-se por ter
sido cenário preliminar de meu estudo e pela possibilidade de rápida locomoção até lá. Em relação ao Juizado da infância e Juventude, a
decisão decorreu por acreditar que, sendo o órgão especializado,
inclusive referido em entrevistas por profissionais locais, a
instituição apresentaria registro de razoável demanda.
Posteriormente, os dois foram descartados: O Hospital,
por se encontrar em reforma de instalação, com reduzido número de leitos, atendendo apenas os casos de urgência, enquanto o Juizado
da infância e Juventude não referendou as informações das
entrevistas, tendo registrado, contrariamente, pequena demanda, dado que a maioria dos casos era de crianças abandonadas em
residências de terceiros, ou em decurso de adoção.
Ainda assim, realizei a tentativa de contatar as 31 mães
identificadas no levantamento inicial, o que foi realizado apenas duas, porquanto as outras haviam mudado de endereço, a instituição que as abrigava fechara, as patroas não permitiram a entrevista ou o
endereço não conferia. No entanto, estas duas não fizeram parte do trabalho porque se recusaram a conceder entrevista.
A Maternidade-Escola, por sua vez, fundamentava-se pela média de mil(1000) partos mensais, absorção de 163 leitos de
maternidade (dos 300 existentes em Fortaleza destinados à
população carente), e o grande número de atendimento externo:
aproximadamente 28.000/mês.
Além destes dados, pesava o fato de ser a Maternidade- Escola Assis Chateaubriand a instituição onde desenvolvo minhas atividades de docente e, por conseguinte, ter maior facilidade de
33
trajetóriametodológica
Num primeiro momento desta coleta, tomei contato com
os profissionais da Maternidade-Escola, explicando-lhes os objetivos
do estudo, oportunidade em que solicitava a cooperação deles no
sentido de se comunicarem comigo tão logo alguma mãe expressasse o desejo de doar o filho. Para que esta comunicação
fosse realizada, afixei cartazes em todos os setores, indicando
telefone e local onde poderia ser encontrada, além de realizar
visitas diárias, nos dois turnos, a todos os setores da Instituição. Em razão da receptividade e divulgação do trabalho, aos
poucos começaram a surgir os primeiros sujeitos do estudo. Após
me apresentar e convidá-las a participar da entrevista, explicava de
forma sucinta o objetivo do trabalho, demonstrando meu interesse em escutar suas experiências e vivências, como mãe que doou ou doaria o filho, numa expectativa de ajuda a outras mães que
porventura viessem a passar por semelhante situação.
Em seguida a essa abordagem era ressaltada à
informante meu respeito à sua autonomia e livre arbítrio na aquiescência ou não á entrevista, garantindo, por conseguinte, o
sigilo e o anonimato das falas em deferência aos aspectos ético-
legais dos direitos humanos, bem como que não seriam submetidas a
julgamentos ou censuras.
Vale ressaltar que, a príori, não houve o estabelecimento de um número fixo de participantes, dado ser a convergência das
falas indicando o desocultamenío do significado em questão, características próprias da abordagem qualitativa, a condição básica
determinante da amostra.
Nestes termos, a inclusão na amostra foi se fazendo à medida que eu ia identificando e contatando essas mães,
pessoalmente ou através de indicações feitas por enfermeiras,
auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, médicos, outras mães doadoras, alunos, amigos e líderes da comunidade. Este fato me
levou a ampliar o cenário para domicílios, centro comunitário e meu próprio loca! de trabalho (Departamento de Enfermagem do Centro
de Ciências da Saúde da Universidade Federai do Ceará), já que
algumas mães assim preferiram.
Para captação das falas, fiz uso de gravador por entender ser este o melhor meio de garantia de fidedignídade de reprodução do pensamento e por me possibilitar maior atenção à entrevistada,
porquanto estaria livre de anotações durante o diálogo. Entretanto, sabedora de sua limitação como agente inibidor, não fiz de seu uso
condição imprescindível ao meu trabalho. Caso não houvesse
concordância com o emprego desse equipamento, a entrevista, ainda
assim, se realizaria, sendo as falas registradas logo após o término da conversa.
Para quebrar um pouco o gelo, deixando-as mais à
vontade e confiante frente ao gravador e a mim (uma vez que quase todas aceitaram ser entrevistadas no mesmo dia do contato, já que
não gostariam de retomar o assunto posteriormente, em seus lares ou empregos), fiz crer a elas que a entrevista seria na verdade uma conversa sobre seu cotidiano, suas alegrias, angústias e preocupações.
Como instrumento para coleta sistemática dos dados, pratiquei observações livres, diário de campo e uma entrevista semi-estruturada (anexo), fundamentada em três itens básicos -
identificação, gravidez e doação - no qual procurei explorar todas as possibilidades exprimidas com relação ao tema em estudo, considerando que o que se encontra na consciência da mãe só pode
ser captado a partir da análise e interpretação de sua fala, da sua
visão de mundo.
De acordo com KAHN e CARNNEL apud MINAYO (1993),
entrevista em pesquisa consiste de
conversa a
dois,
feita
por iniciativa
do
entrevistador,
designada
a
fornecer
informações
pertinentes
para
um
objeto
de pesquisa,
e
entrada
(pelo entrevistador)
35
TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
em
temas igualmente
pertinentes
com
vistas
a
esse
objetivo.
Nestes itens, busquei saber seu nível de escolaridade,
profissão, procedência; de que modo foi sua infância e adolescência,
como é seu dia-a-dia; de que maneira é composta sua família e de
que forma se relaciona com seus membros; com quantos meses descobriu a gravidez; qual a reação do companheiro, família e ciclo de amizade frente a esta gravidez; quando e como surgiu a idéia de
doar o filho; o que a doação significou para ela etc.
A preferência por este instrumento para obtenção das
descrições fundamentou-se em MARTINS a BICUDO (1989), que afirmam:
Sempre
que
se
desejar desocultar
a visão
que
uma
pessoa possui
sobre uma determinada
situação,
é
preciso que
se
lance
mão
de
recursos
que
a entrevista
fornece.
Ela é
a
única
possibilidade
que
se
tem
de
obter dados relevantes
sobre
mundo-vida
do
respondente.
Durante a realização das entrevistas, procurei constantemente atingir um clima de cooperação, colocando-me no lugar do outro, não assumindo qualquer postura de distanciamento ou dispersão do assunto que viesse a fragmentar ou cessar o
pensamento, a fala. Para isto, recorria, sempre que possível, a
ambientes que me garantissem liberdade, privacidade, conforto e
redução de sons externos.
Nesta etapa, uma dificuldade encontrada como entrevistadora foi de conter minha ansiedade frente às situações de
choro, silêncio e questionamentos. Tinha que estar atenta aos
gestos, mutismo, posturas e expressões, símbolos não verbais da linguagem, que apesar de não serem objeto de nosso estudo, muitas
vezes nos dizem mais que as palavras. Intervenções eram feitas, quando necessárias, de forma a esclarecer a compreensão de certas
expressões e/ou colocações, sem, contudo, perder-se o respeito à
individualidade do entrevistado.
De acordo com CARVALHO (1987):
Compreender
o
pensamento do outro em uma
entrevista é
também
entender o
silêncio
que
se
faz
comunicação e
que é
discurso e estilo, presença e
engajamento, e que
faz
germinar a
reflexão
profunda
desde
o
interior
e
que
se
abre para
o mundo.
Esse
silêncio
não
é
cassação
da
palavra,
mas imersão
no
ser. Não indica
a
incapacidade do
discurso
ou
de
discursar,
mas
a
possibilidade
de
efetuar
a
fissura no
tempo
e
reaprender
a
vida para se
decidir
de outras
maneiras,
recriar
novas
formas de
existência,
reaprender
a visão
do
passado
e trazê-la
no presente
de
tal sorte
que reelabore
seu
futuro
com
um
desenho
novo
do
passado.
Deste modo, tentei, na medida do possível, manter uma
atitude compatível com um investigador cientifico, dado que a
abordagem qualitativa me dá oportunidade de construir e refazer a
trajetória da descoberta do significado.
A coleta dos dados foi procedida no período de março a junho de 1995, tendo sido o estudo realizado com 19 mães, uma vez
que a quantidade de depoentes na pesquisa qualitativa não se