• Nenhum resultado encontrado

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO UFRJ ESCOLA DE COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA CENA PPGAC NÍVEL MESTRADO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO UFRJ ESCOLA DE COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA CENA PPGAC NÍVEL MESTRADO"

Copied!
161
0
0

Texto

(1)

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA CENA – PPGAC NÍVEL MESTRADO

MARIA LUCAS PEREIRA VALENTIM

DO CÍLIO A NAVALHA: montação na cena carioca

Texto apresentado para qualificação no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Manoel Silvestre Friques

Rio de Janeiro 2019

(2)

Maria Lucas Pereira Valentim

DO CÍLIO A NAVALHA: montação na cena carioca

Aprovada em:

23/12/2019

Aprovada por:

Prof. Dr. Manoel Silvestre Friques (orientador)

Prof. Dr. Samuel Sampaio Abrantes (EBA/UFRJ)

Prof. Dr. Caio Arnizaut Riscado (ECO/UFRJ)

(3)

VALENTIM, Maria Lucas Pereira.

Do Cílio á Navalha: montação na cena carioca / Maria Lucas Pereira Valentim-- Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2019.

161 f.

Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, 2019.

Orientador Manoel Silvestre Friques.

1. Performance. 2. Questões de Gênero. 3. Drag Queen. 4. Montação. I. FRIQUES, Manoel Silvestre. II. ECO/UFRJ III. Artes da Cena IV. Do Cílio á Navalha

(4)
(5)

O século XXI é um século estético. Na história, há eras da razão e eras do espetáculo, e é importante saber em que era você está. Nossa América, nossa internet não é a Atenas antiga. É Roma. E seu problema é que você pensa que está no fórum quando está realmente no circo. (Natalie Wynn, 2018)

(6)

Resumo

Esta pesquisa pretende, a partir da análise de distintas práticas de “montação”, compreendê-las e relacioná-las a fazeres que buscam fugir do binarismo de gênero vigente em nossa sociedade. Configura-se como uma cartografia pautada por espacialidades e corporeidades oriundas da prática do travestimento na cidade do Rio de Janeiro atual. Busca-se, a partir da vivência da pesquisadora como artista que participa da cena local, realizar uma análise não só de seu próprio trabalho, mas também de outros artistas da atualidade. Para isso, recupera também a história da travestilidade no Rio de Janeiro, por meio de espaços físicos e artistas de outrora que pavimentaram alguns caminhos para a cena contemporânea. O processo de criação e execução desta pesquisa se traduz, primeira e principalmente, na prática artística de quem a escreve: uma artista que, a partir da arte do transformismo, passa a se compreender como uma pessoa trans. O conjunto de espaços, artistas e momentos históricos discute questões relacionadas aos conceitos de gênero e de performance como alicerces que caminham na construção e na manutenção de uma cena de contornos marginalizados em relação à cultura dominante e à Academia.

Palavras-Chave: Artes Cênicas, Performance, Estudos de Gênero, Transgeneridade, Travesti, Queer, Cuir, Drag Queen

(7)

Abstract

This research aims to analyse, understand and compare different drag queens’ practices as actions that seek to escape our socienty’s gender binarism. It is a cartography based on spatialities and corporealities arising from the practices of transvestite in contemporary Rio de Janeiro. Based on the experience of the researcher – as an artist who participates in the local scene – this study focuses also on a range of contemporary non-binaries artists. To do so, it also recovers the history of transvestism in Rio de Janeiro, through physical spaces and artists of the past that paved some paths for the present scene. The process of creating and executing this research translates, first and foremost, into the artistic practice of the writer: a drag queen artist who comes to understand theirself as a trans person. The set of spaces, artists and historical moments discuss issues related to the concepts of gender and performance as foundations that lead to the construction and to the maintenance of a scene of marginalized contours in relation to the dominant culture and the Academy.

Keywords: Performing Arts, Performance, Gender Studies, Transgender, Queer, Cuir, Drag Queen

(8)
(9)

Agradecimentos

(após finalizar meu look colando longos cílios postiços, gostaria de agradecer pelo percurso e pela concretização deste trabalho)

À Manoel Silvestre Friques, que chegou, de forma assertiva, horizontal e propositiva, engenhando e coordenando a orientação do meu projeto e garantindo minha permanência no Programa de Pós Graduação em Artes da Cena. Obrigada por ajudar a me entender como um Corpo Estranho, a partir de tantos direcionamentos e inspirações com a força capricorniana de seu ascendente de origem até então desconhecida.

À Beth Jacob, coordenadora do programa de Pós Graduação no qual estou inserida, pelo afeto e pela generosidade em compreender que as questões da vida afetam a academia (e a arte) e vice e versa.

À Caio Riscado, Uma Bicha Miúda, porém potente em sua grandeza teatral contemporânea. Obrigada pelos Esforços nos seus trabalhos pessoais, dos quais sou fã desde tempos remotos, e pela brilhante presença nessa banca composta colorida e diversa como um Sonho TransViado e Alterosa.

À Samuel Abrantes, a.k.a. Samile Cunha, pela sua presença divônica e maravilhosa nessa parte final, e de conclusão, do mestrado. Obrigada pelas Transconexões na arte-vida.

Á presença transdisciplinar de Jaqueline Gomes de Jesus, uma mulher que me inspira por toda sua luta e presença constante em variados âmbitos e meios do transativismo; aprender te ouvindo e te lendo faz sentir-me especial nesse momento, ao saber que você esta em contato com minha dissertação, que se conclui como um diário cartografado e dissertativo. --- Existem vivências não-cisgêneras que fazem com que somente nós possamos compreender umas as outres. ---

À Maria do Carmo, ou D. Carminha, mulher nordestina leonina e guerreira. Colocou-me nesse mundo e sempre busca compreender minha existência fora dos padrões exigidos socialmente.

Ao Padre Luís Corrêa e Lima e ao Grupo Diversidade Católica, pelo amparo e pela força que dão para minha querida mãe.

À Haus of Deboche (Maybe Love, Linda Mistakes & Delirious Fênix), minha família drag que comprova que afetos não sanguíneos podem e precisam ser (e são!) de extrema importância para corpos não normativos. Viva a arte drag e burlesca!

À Maíra Barillo pela amizade conquistada no mestrado e ampliada para outras zonas da/na vida.

À Gênesis, por todo amparo e impulsionamento desde quando o mestrado e o fazer drag eram apenas elocubrações em minha mente (e meu corpo como um todo).

(10)

À Marcio Januário, que, ao ver em mim uma potência na travestilidade, me motivou a jogar-me de cabeça em tal ação.

À Jezebel de Carli e Silvero Pereira: sem ter participado da residência artística de vocês no Teatro Poeira, minha corpa não teria se lançado no caminho da montação. Agradecimento especial também para Ana Luiza Bergmann e Rafael Barbosa, seus apontamentos sobre suas pesquisas, uma na arte da Bufoaria e a outra no campo da Dramaturgia, auxiliaram a plasmar minhas indagações em outras, possíveis, interfaces.

À Luiza Frizzo: pelo computador que me presenteou e onde eu pude ler, escrever e concluir esse processo de escrita. Não seria possível concluir os presentes escritos sem seu sensível e potente apoio.

À Juracy de Oliveira, por me impulsionar dizendo; “vai bicha, a senhora é maravilhosa!”.

À Victor Newlands: a experimentação prática em seu projeto de pesquisa foi de grande importância para minha manutenção e estadia na Pós Graduação, pois para ser uma corpa atuante, é preciso de extremo esforço físico e mental.

À todes artistas da montação – precisamente envolvides nos eventos “Queens O Concurso”, “Rival Rebolado”, “Yés Nós Temos Burlesco”, “Cabaré Diferentão”, “Transformistas Medicadas” – por todas as trocas necessárias para minha vivência artística e para o processo de pesquisa dessa dissertação.

Às tantes que passaram e passam na minha trajetória de vida-academia-arte: Bem Medeiros, Pri Bertucci, Aretha Sadick, Betch Cleiman, Fabiano de Freitas (Dadado), Davi Giordano, Adriano Guimarães, Vanessa Garcia, Júlia Vargas, Mateus Muniz, Leo Paixão, Piton Niza, Larissa Andrade, Betina Polaroide, Miami Pink, Dávila Pontes, Daniel Castanheira, Luciana Bezerra, Laudeci Queiroz, Lucas Gibson, Renata Ferrer, Tata Barreto, Miranda Lebrão, Fábio Ferreira, Marco a.k.a. Efemera, Rafael Bqueer a.k.a. Uhura Bqueer, Dan Venturi a.k.a. A Dita, Cami Carrelo a.k.a. Wendel Cândido e Thadeu dos Anjos a.k.a. Thizy Nebulosa.

Aos movimentos, grupos e espaços que, de alguma forma, colaboraram para que este trabalho se desenvolvesse: Le Circo de la Drag, Turma OK, Drag-Se, SsexBbox, Marcha do Orgulho Trans da Cidade de São Paulo, PopPorn, Mostra Bosque, Mães Pela Diversidade, Corpos Visíveis, Cabaret da Cecília, Gataria Photography, Piratas de Gênero, Die in the House, Reduto, Miúda – Mostra Esforços.

(11)

Aos espaços onde pude, até o presente momento, conquistar o lugar de estudo acadêmico e ampliar meus conhecimentos nesse espaço de contradições que é a academia: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidad Autonoma de Madrid (UAM), Universidad Nacional de Colombia – sede Bogotá (UNAL) e Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV – Parque Lage). Não poderia deixar de mencionar e agradecer: Projeto FESP, Banco Santander, CCCI - PUC Rio, PET-LET PUC-Rio, Vice Reitoria Para Assuntos Acadêmicos PUC - Rio, sendo estes grupos e instituições que auxiliaram com bolsas de estudo e manutenção ao longo de todo esse largo processo.

Aos grupos de teatro Nós do Morro (Vidigal) e Roça Caça Cultura (Rocinha), onde pude, ainda prematuramente, iniciar meus passos na vida artística.

À tantes outres que, nesse processo de pesquisa e estudo, tomei conhecimento da transviada existência, sendo essas corpas de outros lugares e/ou épocas distintas à minha, mas que, com certeza estão ao meu lado, pois somos anjas-da-guarda umas das outras: Em primeiríssimo lugar, dedico a Luma Andrade e Claudia Celeste, uma sendo a primeira travesti doutora no Brasil e a outra a primeira atriz trans a participar de telenovelas nesse país! Mas também á Hija de Perra, Rose Wood, Claudia Wonder, Susy Shock, Mario Mieli, La Prohibida, Marsha P. Johnson & Sylvia Rivera, Grayson Perry, Herculine Barbin, Cristina Ortíz (La Veneno), Diana Navarro (Diana de Santa Fé), Josecarlo Henriquez (#soyputo), Virgine Despentes (Teoria King Kong), Amara Moira (E Se Eu Fosse Puta), Mara Rita (Tropico Mio), Pedro Lemebel e Pancho Casas (Las Yeguas del apocalipsis) e muites outres que me inspiram mesmo sem ter conhecimento da minha existência.

Á Marcella Maria, MC Xuparina, que tanto me desequilibrou quando eu ainda era uma bicha adolescente; só agora, sendo uma travesty multi indisciplinada, consigo captar a potência do seu corpo-caos em atrito com o meu, ainda muito disciplinado, nas oportunidades que tivemos de dividir palco e cena.

À todes as corpas travestys (transvestigêneres), pessoas trans e não binárias, artistas drags, sapatonas caminhoneiras, bichas bichérrimas e todos os tipos de corpas não normativas. Todas as pessoas queer / kuir / cuir, que abriram caminho para que hoje eu possa existir, além de resistir, e buscar não desistir nunca.

Yemanjá,

Pombas Giras,

Minhas anjas da guarda.

À todas as Deusas e poderes femininos que me acompanham.

À minha navalha que se mantém acuendada, entre livros e maquiagens, de prontidão para Defesa.

(12)

Índice de Ilustrações

Figura 1: Capa Dissertação, realizada pela própria autora. 4

Figura 2: Cílios Love Mistakes 3001 (acervo Ma.Ma. Horn). 22

Figura 3: Tacones do Museo Travesti del Peru (acervo Google Imagens). 25 Figura 4: Cartaz do filme Pink Flamingos (acervo Google Imagens). 32 Figura 5: Folheto de divulgação de Laura de Vison. (acervo Romulo Maduro). 33

Figura 6: Espetáculo Bichas (foto Maíra Barillo). 36

Figura 7: Espetáculo Dona QuiXota (foto Maíra Barillo). 37

Figura 8: Espetáculo Sonho AlteRosa (foto Francisco Costa). 38

Figura 9: Blackyva (foto Karina Abdel). 38

Figura 10: Hija de Perra (foto Zaida Gonzalez). 44

Figura 11: Catálogo exposição Queer Museu (acervo pessoal). 45

Figura 12: Sabine Passareli performando no Queer Museu (foto Marina Benzaquen). 46 Figura 13: Cartaz do filme Priscila, A Rainha do Deserto (acervo Google Imagens). 49

Figura 14: Drag King Rubão (arte Akeminess). 50

Figura 15: Figura de Kathakali no Livro História Mundial do Teatro. 52

Figura 16: Estátua do Hermafrodito (acervo Google Imagens). 56

Figura 17: Hijras na Índia (acervo Google Imagens). 57

Figura 18: Venus Xtravaganza em Paris is Burning (acervo Google Imagens). 62

Figura 19: Adore Delano e Courtney Act (acervo Google Imagens). 64

Figura 20: Rogéria. Foto cartaz filme sobre sua vida. 66

Figura 21: Rogéria no Teatro Rival. Capa do Jornal O Globo de 03/09/2016. 67 Figura 22: Ma.Ma. Horn em oficina de performance no Sesc de Copacabana (foto

Renato Rocha) 69

Figura 23: Silvia Calderoni em MDLSX (foto Renato Mangolin). 72

Figura 24: Ma.Ma. Horn em photoshot para o projeto The Drag Series (foto Fernando

Cysneiros). 73

Figura 25: Drag Queen Pandora Yume (Foto Betina Polaroide). 74

Figura 26: Gays em comemoração na New York dos anos 70 (acervo Google Imagens). 77

(13)

Figura 28: Cindy Sherman ( fonte Site MoMa). 80

Figura 29: Palloma Maremoto performando na festa Mona (foto Maíra Barillo). 81

Figura 30:Palloma Maremoto performando na festa Mona (foto Maíra Barillo). 83

Figura 31: Palloma Maremoto performando na festa Mona (foto Maíra Barillo). 83

Figura 32: Palloma Maremoto performando na festa Mona (foto Maíra Barillo). 84

Figura 33: Anne Sprinkle e a sua Anatomy of a Pin Up (acervo Google Imagens). 87

Figura 34: Diane Torr (acervo Google Imagens). 89

Figura 35: Vicente Van Goth performando no Teatro Rival (foto Tata Barreto/Gataria

Photography). 91

Figura 36: Cartaz do espetáculo Hedwig, versão Brasileira (fonte Google Images). 93 Figura 37: Vicente Van Goth performando no Teatro Rival (foto Tata Barreto/Gataria

Photography). 95

Figura 38: Vicente Van Goth performando no Teatro Rival (foto Tata Barreto/Gataria

Photography). 95

Figura 39: Haus Of Deboche para Calendário Queens 2019 (foto Betina Polaroide). 98 Figura 40: Transformista Divina Aloma performando no palco da Turma Ok (fonte site

Turma Ok). 107

Figura 41: Transformista Meime dos Brilhos performando no palco do Cabaret

CasaNova (fonte Google Imagens). 109

Figura 42: Cartaz Rival Rebolado (acervo Teatro Rival). 111

Figura 43: Dzi Croquettes (fonte Google Imagens). 112

Figura 44: Divinas Divas (fonte Google Imagens). 113

Figura 45: Cartaz The Queen (Página The Queen no Facebook). 114

Figura 46: Capa do site de RuPaul. 115

Figura 47: Bonecas Barbie, modelo RuPaul (acervo Google Imagens). 116 Figura 48: Pabllo Vittar estampando a lata e o comercial da Coca-Cola (acervo Google

Imagens). 117

Figura 49: Ma.Ma. Horn na Lapa (foto Lucas Gibson). 122

Figura 50: Obra Bixinhas de Lyz Paraizo (foto Gabriella Garcia). 123

Figura 51: Mateusa Passarelli (acervo Google Imagens). 124

Figura 52: Marielle Franco (acervo Google Imagens). 124

Figura 53: Dissertação de Maria Lucas (Ma.Ma. Horn) impressa, ao ser entregue para a

(14)
(15)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 16

2 Travestilidade Cartografada 20

2.1 O cílio: o olhar através da Prótese 21

2.2 Gênero e Performance 28

2.3 LGBTQIA e muito mais 34

2.4 Por uma Corpa Cuir 43

2.5 Montação 48

3 Desidentificação: Corpos em Performatividade 69

3.1 Desidentificando uma Corpa 70

3.2 A Flâneuse Perversa 76

3.3 A corpa e suas variadas interfaces ou As múltiplas faces de uma drag 81

4 Desterritorialização: Construindo coletividades 99

4.1 Encontrando aliados: novos territoriós a serem explorados 100

4.2 Origem dos Drag Spaces e os Palcos da Montação 103

5 Afrontamento: A Prótese como Defesa. 123

5.1 Navalha: a montação cortante 124

Referências Bibliográficas 131

(16)

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa, a partir da análise de distintas práticas de “montação” questionar o que se sucede no corpo e na sociedade em volta de quem se monta. Começamos então a mapear uma estética com o objetivo de destrinchar quais éticas são criadas e vivenciadas a partir da mesma. A partir da análise da ação de agregar um cílio postiço, a pesquisa analisa o mesmo o entendendo como prótese e, assim, como princípio da montação. A partir dessas noções de prótese e de montação, é realizada uma viagem pela Rio de Janeiro atual e de outrora, para revelar uma variedade de corpos e espacialidades relacionados, de distintas formas, à arte da montação.

Toda a pesquisa é construída por uma estudante de artes que há três anos atua como performer drag queen. Tal vivência conduziu a um questionamento dos padrões de gênero imperantes em uma sociedade heteronormativa, levando à compreensão de seu próprio corpo como uma corpa trans. Esta pesquisa talvez seja uma forma de plasmar criticamente os lugares em que tal ato se deu: os espaços da performatividade (do corpo, do encontro) e da performance. O esforço aqui é o de elaborar um estudo que ainda governa o entendimento do fazer drag – um homem que se veste de mulher. A valorização da cena carioca atual busca privilegiar as diferentes formas do fazer drag. Para isso, busca-se suporte em falas que destrincham a performatividade de corpos que fogem da normatividade compulsória atribuída a todos nós quando no nascimento, tais como o “Manifesto Contrassexual”, de Paul B. Preciado, e os escritos de artistas cuirs como Jota Mombaça e de Hija de Perra.

Como principal suporte teórico, busca-se utilizar o texto “Cartografias ‘Queer’: o ‘flâneur’ perverso, a lésbica topofóbica e a puta multicartográfica, ou como fazer uma cartografia ‘zorra’ com Annie Sprinkle”, de Paul B. Preciado, além de uma variedade de outros escritos do autor. Pontos relevantes em tal texto são as definições das bichas da cidade como flanêurs perversos que ocupam os espaços urbanos revertendo seu uso cotidiano. A partir daí, surge nesta pesquisa, a figura da Flâneuse Perversa. A dissertação busca trazer essa leitura, da Flânêuse Perversa, para definir toda e quaisquer corpa que se monte: figuras travestidas que transitam por espaços noturnos, perigosos, caóticos e urbanos.

Em um segundo momento, Preciado recorre aos cursos de Drag Kings de Diane Torr e às performances de arte pós-pornô com Anne Sprinkle como táticas de

(17)

questionamento da condição da “lésbica fantasmagórica”. Ele observa um movimento de ocupação, por estas artistas, do espaço urbano dominado até então pelo flanêur perverso. Daí a importância de pesquisar a presença de duas mulheres que se travestem na atual cena drag carioca. Buscando remediar o severo apagamento histórico de que foram alvo, esta pesquisa pretende focalizar o fazer drag de mulheres.

Busca-se também refletir sobre, a partir da lógica dos “drag spaces” concebida por Preciado, a criação dos locais de encontro das drags queens e suas variantes, sejam os recônditos das boates (que remetem aos lugares ermos e escondidos onde se realizavam concursos na época da ditadura militar) ou ao glamour teatral proporcionado pelo Teatro Rival, resquícios de uma Lapa e do centro da cidade que primavam pelo glamour de outras épocas. Quando se dirige o foco ao presente, é também necessário refletir sobre um dos principais lugares de atuação do fazer drag na atualidade: as telas. Em grande maioria, as drag queens da atualidade se inspiram no Reality Show estadunidense RuPaul’s Drag Race e utilizam suas redes sociais para se promoverem e falarem diretamente com seu público, divulgarem seus trabalhos. Surge então um palco virtual, um outro aparato para a performatividade das artistas da montação.

Para dialogar com a dimensão cartográfica desta pesquisa, elege-se como inspiração os escritos e o trabalho do Museo Travesti del Peru, de Guiseppe Campuzano. A partir de “Cartografia Sentimental”, de Suely Rolnik, busca-se, na lógica dos afetos proposta pela autora, construir a presente pesquisa como um exercício cartográfico onde a ancestralidade se mescla com os atuais encontros na urbes. A partir dos escritos de Preciado, esta pesquisa focaliza os corpos em performatividade, pois são todos, independente do gênero do performer ou da persona construída, “trabalhadores do ânus”. Compreende-se assim a cena drag como um ato performático, entendendo performance como não só apenas os minutos em que a drag sobe no palco para realizar um número, mas sim toda o conjunto de processos e interações sociais que relacionam corpos, espacialidades, memórias e apagamentos.

Para isso, busca-se, no primeiro capítulo, a partir da noção de Preciado a cerca do que vem a ser prótese, compreender o que seria a montação, como elementos manufaturados para a transformação de corpos. Busca-se uma diversidade corporal ao longo da trajetória da história da humanidade, com foco nas artes cênicas, concluindo

(18)

com um exercício de definição de termos que serão de profundo auxílio na leitura que segue.

No segundo capítulo, busca-se compreender o conceito de Flâneur, trazido por Walter Benjamin e reutilizado por Preciado como Flâneur Perverso. Ao nos apropriarmos dele, passamos a utilizá-lo no feminino para denominar as artistas trazidas nessa pesquisa. A noção de desidentificação, trabalhada tanto por Preciado quanto José Esteban Muñoz, também é mobilizada para a análise de duas performers contemporâneas: Palloma Maremoto, uma das primeiras mulheres cisgênera a performar como drag queen no Rio de Janeiro; e Vicente Van Goth, Drag King burlesco criado e vivenciado pela escritora Priscilla Matsumoto, também mulher cis. Duas performances, uma de cada drag, serão utilizadas como eixos da análise artística. Para trazer subsídios para as análises são realizadas referências ao passado do travestismento carioca e mundial, buscando daí retirar permanências e transformações.

No terceiro capitulo, buscamos analisar o conceito de desterritorialização proposto por Preciado. O foco aqui recai naqueles espaços que fomentam a arte transfosmista, tanto antes quanto agora, passando por boates, teatros e telas. Na era das telas, da internet e da comunicação de massa, o grande expoente será o programa RuPauls’ Drag Race.

No último capítulo, chega-se à conclusão de que esse corpo montado, transformado e diferente de como começou a pesquisa, precisa defender-se, utilizando da metáfora da navalha para contrastar com o cílio, que auxiliou no início da montação do primeiro capítulo da dissertação. Para construção desse corpo em defesa, busca-se respaldo nos escritos de Jota Mombaça sobre estudos decoloniais e redistribuição de violência.

A presente pesquisa não visa explicar de forma analítica e didática o que vem a ser a arte drag-transformista ou a problemática da diversidade sexual, suas siglas, nomenclaturas e divisões quanto à classe social, mas sim analisar a potência performática desses corpos (na cena e fora dela). Para tanto, são necessárias pequenas aproximações a artistas de outros fazeres no campo das artes, na maioria das vezes performers mais relacionados com a performance art, traçando paralelos e caminhos possíveis para um entendimento da performatividade drag. Após apropriar-se da Teoria Selvagem (Wild Theory) de Jack Halberstman, são mobilizadas também citações,

(19)

imagens e todo e qualquer aparato que auxilie nesse movimento constante de análise e de construção de pensamento, tais como: falas das próprias drags, vídeos do Youtube e também de leituras e escritas de teóricos queers.

Por fim, é preciso ressaltar que esta pesquisa configura-se como um caminho que mais indica do que avalia, mais expõe do que configura, mais esboça uma cartografia do que desenha um mapa, com suas legendas e especificações, que serviria para coordenar não iniciados e expor quem vive tal cena. Não é um trabalho didático, mas afetuoso e performático: é uma escrita que ressalta traços vivenciados por e em quem a escreve. Porém, não é apenas um simples diário de bordo, mas uma escrita que propõe exercícios críticos e analíticos sobre estes (meus) modos de (sobre)vivência.

(20)

2 Travestilidade Cartografada

No princípio o cílio. O cílio antecede ao olho, e o olhar.1

1 Referencia a frase “no princípio era o dildo. O dildo antecede ao pênis.´de Paul Preciado em Manifesto

(21)

2.1 O cílio: o olhar através da Prótese

Promover o acesso e a promulgação de conhecimento, talvez seja esse o propósito das instituições de ensino. Ao adentrar em tal espaço, esboço um estudo que se dá pelo meu olhar: talvez seja sempre sobre lançar nossos olhares no mundo e buscar um diálogo com o ensino acadêmico. Torna-se necessário então, nessa presente dissertação, a busca por um olhar atento que não só observa a cena de uma cidade grande, mas que também é atravessado por ela. Ampliar: alargar o olho para arregaçar o olhar. Promover um campo que potencializa a absorção de sensibilidades: as artes da cena. A academia traz uma estrutura, nosso corpo traz a sensibilidade, adquirida nos estudos anteriores e para fora dos muros mórbidos do campus universitário. Pensar sobre arte e sobre a cena, com a consciência de que assim também estou fazendo uma cena. Confesso que estou pensando e absorvendo a partir da minha vivência, para além desses muros que citei anteriormente, para uma vivência que está se fazendo no minuto que escrevo esse texto no computador e que, mesmo plasmado na escrita que agora chega aos seus olhos, continua seu caminho além-muros. Mas foquemos no objeto que observa, o meu corpo. Coloco meu olho em questão, mas não apenas o olho. O olhar.

Desde criança, me questionavam se eu utilizava uma máscara de cílio nos olhos. Máscara nos cílios eu não usava, demorei para me permitir utilizar maquiagem. Esses cílios enormes e grossos ocupavam um corpo inconformado, um corpo que, desde antes de saber o que seria ser uma bicha (e falarei mais sobre essa identidade proximamente nesse primeiro capítulo), já recebia essa palavra de forma jocosa ou raivosa em todas as instituições que frequentava: família, escola e igreja. Esse olhar atento buscava nos contornos do seu feminino corpo infantil qual era o erro que o fazia sofrer as agressões sempre decorrentes da palavra gritada: Bicha! Esse olho que passou a absorver o mundo e a compreender que quanto menos bicha fosse, mais o corpo se manteria intacto ao vexame público. Mas a vitória de quem a violenta não empodera quem é oprimido. Esse corpo, ao longo de muitos anos, foi alargando o olhar e, com isso, ampliando-se em uma imensidão de possibilidades que deturpam o seu próprio olhar, dando um salto (alto) nos padrões sociais inscritos nos olhares daqueles que o observavam. Trazer poder ao meu corpo foi um ato de vitória e de enfrentamento às violências vividas.

(22)

Figura 2: Cílios Love Mistakes 3001 (acervo Ma.Ma. Horn).

Na vida adulta, pela primeira vez, esse olho não só passou a utilizar máscara de cílio nos cílios, como colar pestanas imensas com múltiplas cores e tamanhos. Às vezes, é necessário o exagero para que duvidemos de nós e criemos as nossas próprias normas. Hoje, tenho utilizado apenas uma quantidade bem pequena de máscara na região das celhas da parte superior de onde sai o meu olhar. Mas, foquemos nesse primeiro ato, o de colorir os pêlos da área pela qual eu (você) absorvo(e) imageticamente tudo que estará contido nas próximas páginas.

Esse olho passa a enxergar de uma outra forma o mundo e o corpo no qual está alocado. Uma corpa, no caso. Tomo licença para utilizar a palavra corpo no feminino, talvez um dos primeiros visíveis atos de rebeldia na escrita desse trabalho. Uma rebeldia “a olhos nus”, pois outras rebeldias foram injetadas na corpa da pesquisadora para que a mesma estivesse em vida vos escrevendo. Esse cílio, antes envergonhado, agora se torna parte constituinte da personalidade dessa corpa, auxiliando inclusive na transformarção do corpO em corpA.

A corpa que observa e escreve, que estuda e se auto-inscreve, é uma corpa que tem o cílio como uma parte atuante nesse ex-corpo, como uma prótese. Podemos entender prótese, segundo um autor que vem chamando atenção objetiva dessa corpa- cílio, por diversas questões nesse contínuo movimento de desestruturar-se (onde termina e começa a corpA, onde termina e começa o cílio?): Paul B. Preciado. Filósofo, ativista e pós-estruturalista, é um dos autores representantes dos Estudos Queer que me foi indicado por toda e qualquer pessoa acadêmica após o ato de agregar a prótese-cílio em minha então corpa. Recebi com dúvidas o queer, o olhava de soslaio. Até que entendi que o queer ao qual os intelectuais se referiam era a bicha que permeou, desde os primeiros anos de vivência, a existência dessa corpa. Queer era o termo utilizado para

(23)

desginar as corpas bichas, assim como a minha, em países de lingua inglesa. Após as corpas queers tomarem poder sobre si mesmas, se apropriam do termo que antes lhes era utilizado para o ultraje, e começam a produzir na instância acadêmica uma infinidade de saberes para pensar e trabalhar sobre suas vivências. Acontece que, em terras latino-americanas o queer chega através, e dentro, dos muros da universidade para uma população majoritariamente de elite, branca e burguesa. Na favela em que eu cresci, era sobre ser bicha mesmo. Bicha, Sapatão e Travesti: é então sobre isso que estudo, escrevo e vivencio.

Ao aproximar-me de Preciado, descubro autoras como Julia Serrano, Guacira Lopes e Judith Butler, compreendendo o quanto as bandeiras feminista e queer se aproximam e distanciam em variadas instâncias. Para além do feminismo, já mais amplamente contemplado e discutido em contextos acadêmicos, descubro também o transfeminismo, onde observo uma aproximação maior das teorias queers e dos estudos que perpassarei na minha corpa e nesta dissertação. Pesquisadoras como Megg Rayara e Jaqueline Gomes de Jesus parecem-me de interessante aproximação, não só pela excelência em suas pesquisas no âmbito acadêmico a respeito das corpas trans, mas, sobretudo, pela tarefa de serem suas próprias corpas detentoras das vivências das quais elas se debruçam a produzir.

Neste caminho, surge o potente trabalho da bicha Jota Mombaça a partir do qual surge uma série de identificações que ocorrem ao depararmos com corpos que perpassam caminhos parecidos aos nossos. Neste caso, duas bichas estranhas no espaço da academia. Constato que pode ser de produtivo contestar os espaços, inclusive o acadêmico, a partir de nossa vivência como corpos estranhos, ou queers, americanizando de forma debochada este nosso texto (a tradução literal para queer seria estranho e, nesse caso, aqui no Brasil, de onde escrevo e vivencio a pesquisa, prefiro ser um corpo estranho a ser um corpo queer. Apesar de, com muito custo, concluir esse meu estudo sem bolsa e em universidade pública, eu não faço parte da elite acadêmica e social, eu estou apanhando e sobrevivendo nas ruas da Rio de Janeiro atual, pelo simples fato de ser estranha à norma). A partir de leituras atentas de Mombaça, deparo- me com a Teoria Selvagem, de Jack Halberstam, que “tende a sobrepor a um certo referencial canônico uma multiplicidade de referências estranhas ao cânone” (Halberstam, 2013). Minha pesquisa necessita de uma multiplicidade de referências acadêmicas, cartográficas e de uma grande gama de possibilidades e recortes para que a

(24)

mesma seja plasmada nessas folhas, como produção de um Programa de Pós Graduação. A Teoria Selvagem é, sobretudo “embalada por séries de descontinuidades” (Jota Mombaça, 2016) que garantem que a vida além dos muros acadêmicos tenha a mesma importância que os ideais canônicos: programas de internet, reality shows, matérias jornalísticas, palestras. Toda e quaisquer produção viva é material potente para a construção da dissertação. A Teoria Selvagem (Wild Theory) permitiu-me, e permite, agregar aos referenciais canônicos uma enorme gama de referenciais estranhos ao mesmo, construindo assim um Arquivo Selvagem (Wild Archive).

Após essas primeiras tessituras no campo da leitura e da teoria, acerco-me – primeiro, de maneira a me inspirar; depois, para tentar aproximar-me como fonte de estímulo e de conhecimento –, do trabalho Museo Travesti del Peru, de Guiseppe Campuzano. Através de uma grande quantidade de acervos que remetem à travestilidade ancestral no Peru, a artista busca trazer a história de seu país de uma maneira interseccional, ressaltando uma parcela ainda muito estigmatizada e marginalizada – figuras trans e drag queens – pela população majoritária e pela história hegemônica e eurocêntrica compartilhada nos ambientes institucionais. Em um mesmo ambiente, escrito ou geográfico, mesclam-se objetos e arquivos que remetem à ancestralidade peruana, assim como os sapatos de salto alto de uma travestí de Lima que foi viver na Itália. Também são expostos documentos legais ou escritos canônicos, borrados com manifestações artísticas que dispensam o caráter de ficcionalidade. Descartando inserir minorias em um contexto não horizontal e autoritário, este museu nômade “desarticula o sítio privilegiado da subjetividade heterossexual – uma subjetividade que converte toda a diferença em um objeto de estudo e torna invisível sua própria contingência e os processos sociais que resultaram em suas construções” (catálogo 31* Bienal de Arte de São Paulo, 2014.)

(25)

Figura 3: Tacones do Museo Travesti del Peru (acervo Google Imagens).

Dentre a grande variedade de material bibliográfico nos quais mergulhei para

essa “construção selvagem”, a dissertação de mestrado

“M0N5+_S:FOTOGRAFIA/MONTAÇÃO”, de Maíra Barillo – contemporânea minha neste Programa de Pós Graduação –, que registrou fotograficamente as artistas da noite no Rio de Janeiro da atualidade. Esta investigação conversou diretamente com meu material de pesquisa, tanto de forma prática quanto acadêmica. Outras publicações paralelas, como a dissertação “Veio À Tona, Foi K.O.: Pabllo Vittar e a Cultura Drag na Mídia Brasileira”, de Rafael Ribeiro, sobre a cena drag queen na mídia atual, e a “Tese Bicha” de Caio Riscado, foram de impacto edificante e tonificador: na primeira, observo um artista que logra produzir sobre tal arte dentro e fora dos muros; e, no outro, observo infinitas possibilidades do devir-bicha em cena, apesar de não considerar tal identidade mais como pertencente, ou não totalmente, ao meu corpo, mas falaremos disso em breve. No mais, encontrar a dissertação “Da Abertura à Despossessão: uma performance em cinco movimentos”, de Miro Spinelli, no site da universidade na qual estudo, elevou meu olhar de alegria, devido ao fato de o recente Programa de Pós Graduação já ter tido uma pessoa trans pesquisando e escrevendo sobre e a partir de suas vivências. Mas também me entristece quando pergunto; porque corpas trans ainda são sempre minorias nos espaços de poder?

Após abrir um pouco os caminhos de referências que pretendo seguir nas próximas páginas, voltemos ao elemento inicial de despontamento para a aventura selvagem que faremos pela Rio de Janeiro: os cílios-próteses. Tenho atrasado a explicação sobre o que vem a ser o mesmo, acercando-me de Paul B. Preciado, pois confesso que tenho desconfiado de toda e qualquer tessitura do saber advinda do combo homem-branco-europeu. Mesmo Preciado sendo transgênero, ele se aproxima um tanto do espectro “macho” e, desde que iniciei meu processo de me tornar corpa, não foi

(26)

apenas o meu masculino que comecei a negar, mas tudo que se aproxime dele: me tornei um tanto misândrica. Tudo isso talvez apenas para lembrar, e retificar, que sou, no momento atual, uma ex-homem.

Para entendermos o que Preciado entende como prótese, precisamos descalçar o salto alto e dar um passo para trás, não recuando nos escritos deste trabalho, mas impulsionando-nos para avançar em maiores complicações. Torna-se necessário compreender que esse ato de ser uma ex-homem, uma ex-corpo e atual corpa, mais expande os limites corporais do que perde algo intrínseco à sua natureza. A natureza aqui está ligada ao corpo biológico, ao que já possuímos no mesmo quando do nascimento. Tem mais ligação com expandir-se, ou melhor, se tornar, do que limitar-se pelo que já nos foi imposto como dado quando no nascimento, pois se “não se nasce mulher, torna-se” (Beauvoir, 1966.), uma corpa bicha também se torna assim ao longo de sua existência: pode-se escamotear seu andar rebolativo para melhor viver em sociedade, com menos perigos e mais privilégios, ou pode-se agregar a prótese cílios para se tornar cada vez mais viada e afrontar o meio social.

Nesse momento de indagação, observo que os mesmos olhares academicistas que me associavam às teorias bicha dos E.U.A e Europa, no caso os estudos sobre o queer, apontavam a minha pesquisa e meu trabalho artístico como sendo relacionado a gênero. Eu negava insistentemente, e a negação do olhar pode esconder preconceitos sobre o desconhecido, dizia eu estar pesquisando sobre performance drag queen. Foi por esse viés que cheguei aqui: a arte drag foi uma plataforma que me impulsionou a realizar todas essas pesquisas e experiências que tive em minha vida nos últimos anos. Nesse momento, eu deixei de ser apenas uma bicha e sim uma bicha com cílios gigantes, uma artista drag queen. Mal sabia eu que o salto que me faria caminhar pelo mundo drag era uma plataforma poderosa e de altíssimo cano. Mal sabia eu da potência do fazer drag em tensionar conceitos muito engessados em nossa sociedade, como, neste caso, o de gênero. Entendo isso de forma mais efetiva e afetiva, ao lançar meu olhar para o que uma drag queen carioca contemporânea dissertou em um vídeo no Youtube:

Pra mim, Drag é uma performance baseada numa persona que tem como tema o gênero. Esse tema pode ser usado de várias formas, a drag pode burlar o gênero, alterar o gênero, inverter o gênero, descaracterizar o gênero, reforçar o gênero. O que importa é que ela precisa pegar esse conceito de gênero e brincar com ele (L’ORANGE, 2018).

(27)

Com essa indagação, passo a compreender esse corpo no qual pertenço como um campo onde eu possa problematizar questões relacionadas a gênero. Nesse momento, observo que, antes de analisar e compreender a prótese como algo que está para fora do corpo biológico, é necessário compreender que corpo é esse. Seria o gênero também uma prótese acoplada à matéria? Compreendo então que, para utilizar o gênero como um tema central na pesquisa, é preciso, antes de qualquer coisa, compreender como a nossa sociedade entende, e impõe, ele.

(28)

2.2 Gênero e Performance

Em 1947, o psiquiatra estadunidense John Money, pesquisando casos de crianças intersexuais2, cunha o termo gênero, o diferenciando de “sexo”, para nomear o pertencimento de um indivíduo a determinado grupo social masculino ou feminino. A discussão sobre a categoria de gênero desponta socialmente, sobretudo no âmbito acadêmico e político, no debate sobre a história das mulheres e com o avanço dos movimentos feministas dos anos 1960 e 1970. Poderíamos focar a análise em nomes importantes de tal desenvolvimento, como Joan Scott, Margaret Rago ou Donna Haraway. Mas olhemos com atenção para o que Judith Butler, em seu Problemas de Gênero, entende como performatividade de gênero.

A performatividade de gênero seria, em nossa sociedade, um campo de disputa de poder, onde o masculino está no topo da cadeia social e tudo que é tido como feminino, quando se empodera, “retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar de autoridade da posição masculina” (Butler, 1990, p. 07). Sendo assim, podemos compreender que, o que nossa sociedade produz como gênero e como desejo, são objetos estruturantes de uma cultura binária e heteronormativa. Butler problematiza o que acontece com o sujeito, e com a estabilidade das categorias de gênero, quando se desmascara o sistema binário vigente que vivenciamos e experienciamos em nossa sociedade. Sendo assim, Butler coloca que, para o feminismo, é necessário rir das categorias impostas e de como nossa sociedade compreende e molda o “ser mulher”. Compreendendo que a categoria gênero subdivide a nossa sociedade ente masculino e feminino, homem e mulher, se faz necessário compreender também que a palavra gera poder e que o gênero se constrói também através do discurso. Para tanto, Butler analisa o último capítulo da História da Sexualidade, de Foucault:

Para Foucault, o corpo não é sexuado em nenhum sentido significativo antes de sua determinação num discurso pelo qual ele é investido de uma ideia de sexo natural ou essencial. O Corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de poder. A sexualidade é uma organização historicamente específica de poder, do discurso, dos corpos e da afetividade. Como tal, Foucault compreende que a sexualidade produz o sexo como um conceito artificial que efetivamente amplia e mascara as relações de poder responsáveis por sua gênese (BUTLER, 1990, p. 137).

2 “Pessoa cujo corpo varia do padrão de masculino ou feminino culturalmente estabelecido, no que se

refere a configurações dos cromossomos, localização dos órgãos genitais (...) A intersexualidade se refere a um conjunto amplo de variações dos corpos tidos como masculinos e femininos.” ( JESUS, Jaqueline Gomes de. 2012 p. 26)

(29)

Desta forma, podemos pensar no discurso como ação, como gerador de significados múltiplos, de propriedade, de poder e, porque não, de performatividade. O que Butler propõe é que, para além da natureza e da biologia dos corpos, existe todo um constructo social que gerencia e dita padrões já desde antes de nossos nascimentos, quando nos é especificada a genitália e/ou as características biológicas compreendidas como macho ou fêmea. A partir do nascimento, o ser humano passa a aprender e executar uma série de performances cotidianas aliadas ao que a sociedade compreende com o ser masculino ou o ser feminino, sendo o primeiro atribuído aos corpos com pênis e o segundo àqueles com vagina. A autora entende o gênero como uma performance: através de atos apreendidos e ditados socialmente, repetimos o que a cultura entende como gênero, partindo de um ponto binário do que se compreende como masculino e feminino.

Ao longo destes inícios da minha escrita, o seu olho e seu olhar atentos podem observar que, ao trazer o conceito de gênero sendo compreendido como performance, pretendo não me abster apenas da performance dessa corpa em si, mas dos atos de performatividade. Isso implica em apropriar-se do cílio, do colar e do descolar/deslocar. Não apenas em como essa corpa utiliza o cílio enquanto o mesmo se mantém colado como artefato protético. A partir disso, discorrerei, tanto com relação à minha corpa ou às outras trazidas nesse trabalho. Não me interessa apenas os cinco minutos de uma performance drag, sua dublagem, número corporal ou musical, mas o que ocorre com essa corpa e como ela se relaciona com o mundo ao seu redor. Nesse sentido, passo a entender que essa minha corpa passa atuar como performer, recodificadora de signos sociais e que negocia sua arte, sua vida e sua existência. Para tanto, parece-me de grande valia a definição de Richard Schechner para um “comportamento restaurado”. O estudioso dos estudos da performance menciona o exemplo de uma mãe que, levando uma colher de cereal à sua própria boca e depois a boca do bebê, faz com que o mesmo aprenda que precisa abrir sua boca e ingerir a comida. Esse ato, segundo Schechner, é uma performance que lida com o conceito de “comportamento restaurado”. Mas não só esse simples ato. Dalí a algumas décadas, o bebê, já uma mulher adulta, mostra um registro, foto ou vídeo, de tal ato para o seu filho, ensinando-o assim como deve se portar. Sendo assim, “performances são feitas de comportamento restaurado, mas cada performance é diferente de qualquer outra” (Schechner, 2006, p. 4). Nesse sentido, podemos observar que a corpa que se apropria de artefatos sociais relacionados ao

(30)

gênero que não lhe foi designado no nascimento promove uma quebra dos códigos sociais. É quando os outros, ao me verem agora como uma corpa-cílio se interrogam: é ele ou ela? Com esse ato performático executado na minha corpa, os outros, com quem interajo cênicamente, ou na vida, desaprendem como devem tratar a minha pessoa. Eu restauro o comportamento esperado para com o meu ex-corpo e atual corpa e crio questionamento no meu convívio social. Os outros, nesse caso, são como a criança que, através do ato da mãe, no caso meu cílio-corpa, aprendem a como lidar com um corpo que foge do binarismo de gênero.

Assim como a criança que aprende a levar a colher à boca, podemos deslocar o olhar para o que Butler discorre sobre o quão a nossa sociedade nos molda e nos ensina como devemos agir com relação ao corpo biológico que possuímos quando no nascimento. Seria necessário “localizar o mecanismo mediante o qual o sexo transforma-se em gênero e pretender estabelecer, não só o caráter de construção do gênero” (Butler, 1990, p. 167). Com isso, podemos compreender que a prótese está para o corpo como uma artefato que impulsiona e gerencia a performatividade de gênero:

Imaginemos que a sedimentação das normas de gênero produza o fenômeno de um sexo natural, uma mulher real, ou qualquer das ficções sociais vigentes e compulsórias, e que se trate de uma sedimentação que ao longo do tempo, produziu um conjunto de estilos corporais que, em forma retificada, aparecem como a configuração natural dos corpos em sexos que existem numa relação binária uns com os outros. Se esses estilos são impostos, e se produzem sujeitos e gêneros coerentes que figuram como seus originadores, que tipo de performance poderia revelar que essa causa aparente é um efeito? (BUTLER, 1990, p. 201).

Quando a autora coloca a “causa aparente” como um efeito, podemos atentar para a performance drag como um importante exemplo de como os artefatos relacionados ao gênero são constructos sociais, ou seja, artificiais e cênicos. Os cílios são então nada mais do que artifícios sociais que, acoplados a um corpo, moldam sua leitura social. Para Butler (1990, p. 37), “a drag expõe a estrutura imitativa do gênero”. Podemos, portanto, trazer a figura da drag queen como um importante expoente, um significativo símbolo do “problema” que é o gênero para nosso convívio em sociedade. Uma drag queen se constrói utilizando símbolos e clichês significativos da nossa sociedade para criar uma performatividade cenicamente artificializada. É interessante olhar atentamente para a fragilidade do gênero, assim como ele é imposto socialmente. Pois, nesse momento, estamos, a título de exemplificação, colocando no centro do texto uma série de experiências corporais onde o que impera é o adorno, é como a pessoa

(31)

presente no corpo ou corpa o adorna e o resignifica. Nesse momento, o que importa é “que agora é bem menos biológico e muito mais cultural” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36).

Após compreender que tal fragilidade de gênero é exposta, quebrada e questionada com a figura de uma drag queen, um importante nome é trazido por Butler para mergulhar no cerne da questão. Trata-se da drag queen Divine. Butler então discorre sobre seu trabalho no filme “Female Trouble”:

A performance dela / dele desestabiliza as próprias distinções entre natural e artificial, profundidade e superfície, interno e externo – por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre gênero. Seria o drag uma imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o gênero se estabelece? Ser mulher construiria um “fato natural” ou uma performance cultural, ou seria a “naturalidade constituída mediante atos performáticos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas? Contudo, as práticas de gênero de ‘Divine nos limites’ das culturas gay e lésbica tematizam frequente “o natural” em contextos de paródia que destacam construção performativa de um sexo original e verdadeiro. Que outras categorias fundacionais da identidade – identidade binária de sexo, gênero e corpo – podem ser apresentadas como produções a criar o efeito do natural, original e inevitável? (BUTLER, 1990, p. 8-9).

Nesse ponto, podemos retomar uma vez mais o exemplo da mãe que alimenta o bebê, aliando à performatividade de Divine. Divine é Divine, mas também é Harris Glenn Milstead, ator que dá vida a essa drag queen e que, também como ator e não apenas como sua famosa persona drag queen, atuou em uma grande quantidade de filmes e peças de teatro, realizou ensaios fotográficos, performances e gravou músicas autorais. Sua feminilidade é construída. Aprendemos, ao vê-la, que sua figura é feminina.

(32)

Figura 4: Cartaz do filme Pink Flamingos (acervo Google Imagens).

Mais interessante que aprendermos com sua figura e sua performatividade de gênero, é o fato de que, na grande maioria de filmes que fez em parceria com o cineasta John Waters, suas personagens são sórdidas e representam a escória da sociedade. Em Pink Flamingos, ela busca ser a pessoa mais imunda do mundo, realizando atos grotescos como comer as fezes de um cachorro. Sendo assim, ele/ela não só se apropria de signos aliados ao gênero divergente do qual lhe foi incumbido ao nascer, como deturpa o papel da mulher, o que se espera de uma figura feminina em um meio social. O mesmo se pode observar na artista chilena Hija de Perra, que, em parceria com o cineasta Edwin Oyarce, participa do filme Empaná de Pino e realiza todo um trabalho onde se deconstroem padrões normativos com relação a gênero e sexualidade, sendo, por diversas vezes, lida como uma espécie de Divine sul-americana. Na Rio de Janeiro, tivemos, entre as décadas de 1980 e 1990, a artista Laura de Vison, tida como a “musa do undergorund carioca”, também comparada a Divine. Laura, que performou marjoritariamente no Bar Boêmio, no centro do Rio, realizava uma infinidade de performances incomuns e bizarras.

(33)

Figura 5: Folheto de divulgação de Laura de Vison (acervo Romulo Maduro).

Voltando para a persona de Harris Glenn Milstead, e indo além de sua performance drag, temos que Divine

Se confundia com quem era montada ou desmontada... era uma drag queen montada construída artisticamente, mas que era performada mesmo sem a montação. Ou ainda, vivenciava a montação em situações cotidianas, onde uma personagem não seria considerada a forma mais apropriada de se estar, como, por exemplo, restaurantes. Divine foi, então, pelo que sabemos, performance artística e performatividade de gênero ao mesmo tempo. Dando lugar ainda às vezes à performatividade bixa de Harris Glenn Milstead, que desmontado, estrelaria na televisão estadunidense poucos dias antes de sua morte (BARILLO, 2019, p. 65-66).

Nesse sentido, o quesito da performatividade, trazido anteriormente, me parece mais uma vez tão interessante quanto a performance em si: a performance se traduz no papel Divine desempenhado nos filmes; a performatividade, em tudo que ocorre com Harris / Divine ao longo de sua vida artística e pessoal. Um olhar mais normativo poderia insinuar uma dicotomia entre arte e vida, ou ator e personagem, mas prefiro que lancemos nossos olhares para o caráter de identificação desse corpo ao vivenciar o seu ser “bicha” para além do que era sua drag nas telas.

(34)

2.3 LGBTQIA e muito mais

Nesse momento, e como já prometido anteriormente, precisamos de alguns instantes para retocar a cola dos cílios gigantes e atentarmos para o que seria a identidade bicha. Mais precisamente, utilizando nosso português latino-americano, de onde nos comunicamos e com o idioma no qual é escrita essa dissertação, para adentrarmos nessa identidade. Se, em inglês, temos a Nancy, em espanhol, a Marica e, em italiano, a Checca, precisamos pensar que, diferente dessas outras línguas, no nosso português, o adjetivo e xingamento para designar homossexuais masculinos não é o diminutivo de um nome de mulher, mas sim o feminino de bicho: a bicha. Tal nomenclatura já ressalta a falta de humanidade colocada em figuras que possuem uma sexualidade desviante daquilo que a sociedade estabelece como correto e normal. Meu olho atento e curioso para todo e qualquer detalhe sobre sexualidade e gênero, sobretudo no fazer desse trabalho, encontra um significado no livro Aurélia (2006, p.03), onde bicha é “homossexual masculino; gay; homem efeminado”. A definição e o livro em conjunto com Babado Forte (1999) são de caráter utilitário para o desenvolvimento do presente trabalho. Porém se parecem com leituras datadas que não esboçam como a comunidade se comporta e se manifesta no presente momento. Percebo também que a chamada “diversidade” sempre se executa, se identificando e se expressando, de formas bastantes volatéis, deixando escritos e pesquisas datadas e ultrapassadas com o passar dos tempos, assim como essa minha dissertação pode ser daqui a bem pouco tempo.

O termo bicha, ao longo dos anos, deixou de ser apenas uma forma xula, assim como a palavra baitola3, de se tratar um homossexual masculino, passando a ser quase uma identidade de gênero para corpos que, designados masculinos quando nascem, expressam uma infinidade de possíveis feminilidades, sem necessariamente se compreenderem e se reivindicarem como mulheres trans ou travestis.4 Nos idos dos anos 1970, além da palavra gay, de origem americana e que significa “feliz”, as bichas

3 Bitola significa a distância entre os trilhos dos trens. Uma história que configura o imaginário popular

diz que, em meados de 1913, chega ao Ceará o inglês Francis Reginald Hull, homossexual assumido, e que foi encarregado de fazer um levantamento topográfico na construção de linhas de trem no Brasil daquela época. Ao viver no Nordeste do Brasil, mais especificamente no estado do Ceará, ficou vulgarmente conhecido como “Baitola”, por ser essa a maneira com que dizia Bitola, de acordo com seu sotaque britânico. Como se deu de forma muito ampla a imigração de cearenses para o Rio de Janeiro, tal palavra foi alocada ao imaginário popular, servindo, assim como “bicha”, como um popular xingamento à população homossexual.

4 No caso, as mulheres trans e travestis são pessoas que foram designadas como do gênero masculino ao

nascer e que se identificam com um gênero divergente desse associado ao seu corpo biológico quando no nascimento.

(35)

cariocas se definiam como entendidos5. Essa nomenclatura vem da época da ditadura militar onde, aqueles que eram entendidos dos assuntos das bichas, podiam frequentar os guetos, as “turmas”, de forma escondida, algo sobre o qual falaremos mais adiante. Esse termo, entendidos, ainda é usado em alguns grupos, sobretudo na Zona Norte carioca, e também é, e foi, utilizado pelas lésbicas, sendo elas as entendidas. O termo bicha pode ser compreendido como o oposto a entendido, que “refere-se a uma identidade específica alusiva à orientação sexual, que tem seu surgimento e significado atribuído ao ideal igualitário da classe média paulista e carioca entre as décadas de 1960 e 1970” (Fry, 1982, p.18). O similar a bicha, com relação às lésbicas ou entendidas é o termo Sapatão. Tanto a bicha quanto o sapatão são termos que, no decorrer da minha vida, foram amplamente reapropriados pela juventude gay e lésbica carioca, servindo como bandeira de empoderamento para definir corpas que ocupam lugares que antes lhes eram negados. Nesse movimento, observa-se a quantidade de trabalhos em uma grande variedade de meios, que utilizam desses termos para se auto-definirem, tendo como exemplos o canal do Youtube Sapatão Amiga, de Ana Claudino, e o espetáculo Bichas, de Gabriel Pardella.

Os termos bicha e sapatão podem ser compreendidos como veículos empoderadores, no sentido de que esses corpos expressam e utilizam performatividades que deturpam os padrões binários de gênero colocados como norma em nossa sociedade. O mesmo pode ser observado no fazer drag: quando uma corpa como a minha, cansada de ser hostilizada com a palavra bicha, antes de se apropriar e se empoderar da mesma, resolve assumir e tomar para si um xingamento, o transformando em bandeira e causa social. Para algumas corpas, é um lugar de passagem, uma prótese constituinte do guarda-chuva da diversidade que auxilia nos processos de reconstrução de gênero e de identificação pessoal. Ao se apropriar de tal identidade, a corpa pode também se colocar numa linha muito tênue: quebra os padrões sociais e constata, pela experiência, até onde a prótese leva o corpo, podendo auxiliar o mesmo na transição, na transformação de corpO em corpA. A performatividade que vai em contra o padrão social permite a expressão livre do corpo, o adentramento em outras possíveis identidades e sexualidades, quebrando o adestramento social dos atos compulsórios e compulsivos que nos moldam, apenas, como Homem ou Mulher.

5 Entendido é um termo cunhado de forma informal pelo artista performático Edy Star, que veio a se

(36)

O espetáculo teatral Bichas, mencionado anteriormente, assim como a identidade bicha, é um lugar de apropriação de uma palavra que remetia inicialmente a atos vulgares e desprezíveis, de apenas um espectro da diversidade sexual: os homossexuais masculinos. Acontece que o guarda-chuva queer e transgênero da atualidade, mais especificamente, os estudos queer pode ser muito bem representado pelo que Preciado chama de Corpos Falantes:

En el marco del contrato contra-sexual, los cuerpos se reconocen a si mismos no como hombres o mujeres, sino como cuerpos parlantes, y reconocen a los otros como cuerpos parlantes. Se reconocen a si mismos la posibilidad de asceder a todas las practicas significantes, así como a todas las posiciones de enunciación, en tantos sujetos que la historia a determinado como masculinas, femininas o perversas (Preciado, 2002, p.13 )

Munidas da noção de corpos falantes, podemos mergulhar em algumas performances que promovem exercícios de des-identificação em relação ao gênero e à sexualidade.

Figura 6: Espetáculo Bichas (foto Maíra Barillo).

Na peça de Gabriel Pardella, por exemplo, vemos bichas-drags queens mas, em um segundo momento, as possibilidades corporais se ampliam: vemos corpos de gêneros distintos, negras, gordas, cabeludas. É um convite para que o corpo desviado da norma, seja ele qual for, se aproprie de termos que antes lhes eram utilizados como xingamentos para agora se auto-construirem, problematizarem a apropriação dos mesmos e propiciarem outras variações de manifestações identitárias. O mesmo se pode observar no espetáculo Dona quiXota, onde se fala de buceta de variadas formas e, cenicamente, o elenco é, em sua maioria, de mulheres cis, tendo um homem trans e apenas dois homens cisgênero, um interpretando a personagem da Bicha. O espetáculo, que é realizado de forma itinerante e similar a um cortejo, vangloria as corpas com vagina e faz uma verdadeira ode à xota.

(37)

Figura 7: Espetáculo Dona QuiXota (foto Maíra Barillo).

Podemos compreender que a peça Bichas, assim como Dona QuiXota, são possibilidades de distintos convites para que as identidade Sapatão e Bicha se reconstruam em outras possíveis construções de identidades sexuais e de gênero. Ainda sobre a identidade bicha e as artes da cena na Rio de Janeiro atual, podemos observar o SonhoAlteRosa de Caio Riscado. Este espetáculo teatral busca trazer humanidade à figura da bicha, utilizando de ferramentas do teatro contemporâneo para criar imagens e memórias da vivência da bicha-performer. É lógico que esse trabalho, assim como qualquer outro e de qualquer instância, não se traduz na variedade total do que vem a ser bicha na cidade do Rio de Janeiro. Essa subjetividade tem a ver com a vivência da Bicha-Caio que, com seus recortes sociais, é branca e moradora da Zona Sul da cidade.

(38)

Figura 8: Espetáculo Sonho AlteRosa (foto Francisco Costa).

Um trabalho que traz à tona outros possíveis recortes sociais do ser bicha nessa cidade é aquele de Blackyva: bicha não binária e preta, favelada e que, com sua investigação performática no funk, propõe não só um aprofundamento em sua condição de sexo e gênero, como também na violência policial que qualquer moradora das zonas de maior vulnerabilidade social na cidade vivencia cotidianamente.

(39)

Revertendo o olhar para o espectro bicha, e não só para a individualidade de determinados artistas bichas nessa cidade, podemos pensar que, na atualidade, o mesmo se distancia muito do ideal das bichas de outras décadas, quando desde os anos 1970 importávamos a cultura gay dos EUA, com o ideal do “macho man”6: bichas peludas,

fortes e muito masculinizadas. As bichas de hoje valorizam sua feminilidade e a aproximação da identidade travesti. Estampa-se com orgulho o ser “afeminada”, em contrapartida do “gay padrão”, que seria aquele que se aproxima mais do ideal de homem heteronormativo, aquela bicha que nem parece que é. Um termo recente e utilizado, e despontado, pela funkeira Linn da Quebrada é o Bixa-Travesty, sendo interessante trazer para esse estudo queer como um Corpo Falante, ou uma corpA, se auto-define: “Quando eu fui inventar esse lance da Bixa Travesty, foi porque eu acho que nesse espectro entre o masculino e o feminino me parece que eu sou uma falha” (Linn, 2018). Sendo assim, retomando o primeiro exemplo da peça Bichas e sua abertura para uma variedade das possibilidades do ser bicha, o que Linn propõe com essa construção de um novo nome para sua identidade de gênero é também uma apropriação de nomes que eram utilizados como insultos, ressignificando-os. Este corpo falante é antes de tudo um corpo se auto-definindo. Conclui-se daí que a sigla LGBTQIA+ não se traduz em um conjunto de caixinhas estáveis, passando ela mesma por um processo volátil, fluido e incessante de redefinições.

O termo LGBTQIA+ significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexo, Assexuais e a infinidade de possibilidades de expressões de gêneros e sexualidades, como a Pansexualidade e muitas outras. O termo já foi, por muitos anos, utilizado como GLS, sendo acrônimo para Gays, Lésbicas e Simpatizantes. Antes, era apenas referido à comunidade Gay, ou Homossexual. Ao longo da história, o protagonismo dos homens gays foi sendo desconstruído e dando vazão a uma série de outras possibilidades de corpas, incluído as mulheres, as travestis, as pessoas bissexuais etc. Nos últimos anos, a sigla, que já foi colocada por um tempo apenas como GLBT (ou GLBTT) e, posteriormente como LGBTQ, foi ganhando novos contornos, buscando legitimar outras formas de sexualidades e identidades de gênero. A atual sigla já não coloca o G, de gays, na frente, dando protagonismo para as lésbicas, o L. Atualmente,

6 Ideal das bichas dos anos 1970, que tinham como ícone o Village People, grupo de música disco

americana. A expressão “Macho Man” se tornou amplamente conhecida nesta década pela música homônima lançada em 1978, integrando o álbum San Francisco.

(40)

algumas pessoas e coletivos, em sua maioria nos EUA, já utilizam a sigla TLGB+, buscando trazer o T, de Transgêneros, para o topo da sigla, sendo essa a parte da comunidade em maior número de vulnerabilidade social e com carência de diversos direitos ao redor do mundo.

Podemos compreender que essa grande questão, a sigla T, de Trangêneros, ainda sendo como a faixa da sigla LGBTQIA+ que apresenta maior índice de falta de melhores condições sociais. Muito se especula sobre as especificidades inerentes ao corpo transgênero, mas, me parece que é necessário sempre saber e pesquisar através dos escritos e das vivências de quem vive a letra T em sua própria pele, como uma corpA falante.

O termo Trans, assim como o termo homossexual, é cunhado por de fora da sigla LGBTQIA+. Cria-se o termo homossexualidade para designar “os outros”, e só aí o termo heterossexual é criado por “nós”, em resposta. Conforme esclarece Butler (2000, p. 100-101):

Sin la homosexualidad como copia, no habría una construcción de la heterosexualidad como origen. Esta presupone en este caso a aquella. Si el homosexual como copia precede al heterosexual como origen, parece razonable conceder que la copia viene antes que el origen, que la homosexualidad es el origen y la heterosexualidad, la copia. Pero estas simples inversiones no son realmente posibles [...] toda la estructura de la copia y el origen se revela como extremadamente inestable ya que cada posición se invierte en la otra y confunde la posibilidad de una forma estable que localice la prioridad lógica o temporal de cada término. [...] Si la heterosexualidad es una imposible imitación de sí misma, que se constituye de un modo performativo como el original, entonces su parodia imitativa – cuando y donde existen en las culturas gays – es solamente una imitación de una imitación, una copia de una copia pues no hay original.

A partir da observação de Butler, nota-se que a construção de alguns termos são respostas nossas (corpAs falantes LGBTQIA+) à denominação que pessoas não pertencentes a essa comunidade nos deram, nos cunharam. O termo Transexual é trazido ao idioma inglês por David Oliver, em 1949, e popularizado pelo doutor alemão Harry Benjamin na década de 1960, em conjunto com o termo Transgênero. Porém,

Compreendiam-se esses indivíduos como incluídos no denominado “travestismo fetichista”, entendido na época, especialmente por psicanalistas, como uma patologia, um tipo de psicose, de acordo com a visão de que o gênero identificado pela pessoa “normal” estaria submetido ao seu sexo biológico. Essa concepção reduz a transexualidade a uma patologia e as pessoas transexuais a pessoas para as quais procedimentos cirúrgicos trariam uma “cura” (Jesus, 2018, p.01).

Muito se discute a respeito da diferença entre os dois termos, um mais ligado ao sexo e outro mais ligado ao gênero, sendo que ambos já orientam leituras e

Referências

Documentos relacionados

Tem leccionado nos cursos de Gestão e Produção das artes do espectáculo organizados pelo Forum Dança, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa -Estudos de Teatro - Programa

a) Execução do programa integral do Teste de Habilidade Específica do Bacharelado em Música referente ao instrumento de sua escolha ou Canto. b) Execução ao piano de uma peça de

Para solucionar ou pelo menos minimizar a falta ou infrequência dos alunos dos anos finais inscritos no PME, essa proposta de intervenção pedagógica para o desenvolvimento

A presente dissertação é desenvolvida no âmbito do Mestrado Profissional em Gestão e Avaliação da Educação (PPGP) do Centro de Políticas Públicas e Avaliação

de professores, contudo, os resultados encontrados dão conta de que este aspecto constitui-se em preocupação para gestores de escola e da sede da SEduc/AM, em

O Programa de Avaliação da Rede Pública de Educação Básica (Proeb), criado em 2000, em Minas Gerais, foi o primeiro programa a fornecer os subsídios necessários para que

Conclusão: o ultrassom não invasivo aplicado em conjunto com a lipoaspiração auxilia na ocorrência de uma quantidade menor de sangramento no conteúdo aspirado, assim como no

FACULDADE DE ENGENHARIA DE ILHA SOLTEIRA - UNESP - DEPARTAMENTO DE FITOSSANIDADE, ENGENHARIA RURAL E SOLOS ÁREA DE ENGENHARIA RURAL - HIDRÁULICA e IRRIGAÇÃO FONE: 0xx18 3743 -1180