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Nesse momento, e como já prometido anteriormente, precisamos de alguns instantes para retocar a cola dos cílios gigantes e atentarmos para o que seria a identidade bicha. Mais precisamente, utilizando nosso português latino-americano, de onde nos comunicamos e com o idioma no qual é escrita essa dissertação, para adentrarmos nessa identidade. Se, em inglês, temos a Nancy, em espanhol, a Marica e, em italiano, a Checca, precisamos pensar que, diferente dessas outras línguas, no nosso português, o adjetivo e xingamento para designar homossexuais masculinos não é o diminutivo de um nome de mulher, mas sim o feminino de bicho: a bicha. Tal nomenclatura já ressalta a falta de humanidade colocada em figuras que possuem uma sexualidade desviante daquilo que a sociedade estabelece como correto e normal. Meu olho atento e curioso para todo e qualquer detalhe sobre sexualidade e gênero, sobretudo no fazer desse trabalho, encontra um significado no livro Aurélia (2006, p.03), onde bicha é “homossexual masculino; gay; homem efeminado”. A definição e o livro em conjunto com Babado Forte (1999) são de caráter utilitário para o desenvolvimento do presente trabalho. Porém se parecem com leituras datadas que não esboçam como a comunidade se comporta e se manifesta no presente momento. Percebo também que a chamada “diversidade” sempre se executa, se identificando e se expressando, de formas bastantes volatéis, deixando escritos e pesquisas datadas e ultrapassadas com o passar dos tempos, assim como essa minha dissertação pode ser daqui a bem pouco tempo.

O termo bicha, ao longo dos anos, deixou de ser apenas uma forma xula, assim como a palavra baitola3, de se tratar um homossexual masculino, passando a ser quase uma identidade de gênero para corpos que, designados masculinos quando nascem, expressam uma infinidade de possíveis feminilidades, sem necessariamente se compreenderem e se reivindicarem como mulheres trans ou travestis.4 Nos idos dos anos 1970, além da palavra gay, de origem americana e que significa “feliz”, as bichas

3 Bitola significa a distância entre os trilhos dos trens. Uma história que configura o imaginário popular diz que, em meados de 1913, chega ao Ceará o inglês Francis Reginald Hull, homossexual assumido, e que foi encarregado de fazer um levantamento topográfico na construção de linhas de trem no Brasil daquela época. Ao viver no Nordeste do Brasil, mais especificamente no estado do Ceará, ficou vulgarmente conhecido como “Baitola”, por ser essa a maneira com que dizia Bitola, de acordo com seu sotaque britânico. Como se deu de forma muito ampla a imigração de cearenses para o Rio de Janeiro, tal palavra foi alocada ao imaginário popular, servindo, assim como “bicha”, como um popular xingamento à população homossexual.

4 No caso, as mulheres trans e travestis são pessoas que foram designadas como do gênero masculino ao nascer e que se identificam com um gênero divergente desse associado ao seu corpo biológico quando no nascimento.

cariocas se definiam como entendidos5. Essa nomenclatura vem da época da ditadura militar onde, aqueles que eram entendidos dos assuntos das bichas, podiam frequentar os guetos, as “turmas”, de forma escondida, algo sobre o qual falaremos mais adiante. Esse termo, entendidos, ainda é usado em alguns grupos, sobretudo na Zona Norte carioca, e também é, e foi, utilizado pelas lésbicas, sendo elas as entendidas. O termo bicha pode ser compreendido como o oposto a entendido, que “refere-se a uma identidade específica alusiva à orientação sexual, que tem seu surgimento e significado atribuído ao ideal igualitário da classe média paulista e carioca entre as décadas de 1960 e 1970” (Fry, 1982, p.18). O similar a bicha, com relação às lésbicas ou entendidas é o termo Sapatão. Tanto a bicha quanto o sapatão são termos que, no decorrer da minha vida, foram amplamente reapropriados pela juventude gay e lésbica carioca, servindo como bandeira de empoderamento para definir corpas que ocupam lugares que antes lhes eram negados. Nesse movimento, observa-se a quantidade de trabalhos em uma grande variedade de meios, que utilizam desses termos para se auto-definirem, tendo como exemplos o canal do Youtube Sapatão Amiga, de Ana Claudino, e o espetáculo Bichas, de Gabriel Pardella.

Os termos bicha e sapatão podem ser compreendidos como veículos empoderadores, no sentido de que esses corpos expressam e utilizam performatividades que deturpam os padrões binários de gênero colocados como norma em nossa sociedade. O mesmo pode ser observado no fazer drag: quando uma corpa como a minha, cansada de ser hostilizada com a palavra bicha, antes de se apropriar e se empoderar da mesma, resolve assumir e tomar para si um xingamento, o transformando em bandeira e causa social. Para algumas corpas, é um lugar de passagem, uma prótese constituinte do guarda-chuva da diversidade que auxilia nos processos de reconstrução de gênero e de identificação pessoal. Ao se apropriar de tal identidade, a corpa pode também se colocar numa linha muito tênue: quebra os padrões sociais e constata, pela experiência, até onde a prótese leva o corpo, podendo auxiliar o mesmo na transição, na transformação de corpO em corpA. A performatividade que vai em contra o padrão social permite a expressão livre do corpo, o adentramento em outras possíveis identidades e sexualidades, quebrando o adestramento social dos atos compulsórios e compulsivos que nos moldam, apenas, como Homem ou Mulher.

5 Entendido é um termo cunhado de forma informal pelo artista performático Edy Star, que veio a se tornar uma gíria gay muito utilizada até meados dos anos 1990.

O espetáculo teatral Bichas, mencionado anteriormente, assim como a identidade bicha, é um lugar de apropriação de uma palavra que remetia inicialmente a atos vulgares e desprezíveis, de apenas um espectro da diversidade sexual: os homossexuais masculinos. Acontece que o guarda-chuva queer e transgênero da atualidade, mais especificamente, os estudos queer pode ser muito bem representado pelo que Preciado chama de Corpos Falantes:

En el marco del contrato contra-sexual, los cuerpos se reconocen a si mismos no como hombres o mujeres, sino como cuerpos parlantes, y reconocen a los otros como cuerpos parlantes. Se reconocen a si mismos la posibilidad de asceder a todas las practicas significantes, así como a todas las posiciones de enunciación, en tantos sujetos que la historia a determinado como masculinas, femininas o perversas (Preciado, 2002, p.13 )

Munidas da noção de corpos falantes, podemos mergulhar em algumas performances que promovem exercícios de des-identificação em relação ao gênero e à sexualidade.

Figura 6: Espetáculo Bichas (foto Maíra Barillo).

Na peça de Gabriel Pardella, por exemplo, vemos bichas-drags queens mas, em um segundo momento, as possibilidades corporais se ampliam: vemos corpos de gêneros distintos, negras, gordas, cabeludas. É um convite para que o corpo desviado da norma, seja ele qual for, se aproprie de termos que antes lhes eram utilizados como xingamentos para agora se auto-construirem, problematizarem a apropriação dos mesmos e propiciarem outras variações de manifestações identitárias. O mesmo se pode observar no espetáculo Dona quiXota, onde se fala de buceta de variadas formas e, cenicamente, o elenco é, em sua maioria, de mulheres cis, tendo um homem trans e apenas dois homens cisgênero, um interpretando a personagem da Bicha. O espetáculo, que é realizado de forma itinerante e similar a um cortejo, vangloria as corpas com vagina e faz uma verdadeira ode à xota.

Figura 7: Espetáculo Dona QuiXota (foto Maíra Barillo).

Podemos compreender que a peça Bichas, assim como Dona QuiXota, são possibilidades de distintos convites para que as identidade Sapatão e Bicha se reconstruam em outras possíveis construções de identidades sexuais e de gênero. Ainda sobre a identidade bicha e as artes da cena na Rio de Janeiro atual, podemos observar o SonhoAlteRosa de Caio Riscado. Este espetáculo teatral busca trazer humanidade à figura da bicha, utilizando de ferramentas do teatro contemporâneo para criar imagens e memórias da vivência da bicha-performer. É lógico que esse trabalho, assim como qualquer outro e de qualquer instância, não se traduz na variedade total do que vem a ser bicha na cidade do Rio de Janeiro. Essa subjetividade tem a ver com a vivência da Bicha-Caio que, com seus recortes sociais, é branca e moradora da Zona Sul da cidade.

Figura 8: Espetáculo Sonho AlteRosa (foto Francisco Costa).

Um trabalho que traz à tona outros possíveis recortes sociais do ser bicha nessa cidade é aquele de Blackyva: bicha não binária e preta, favelada e que, com sua investigação performática no funk, propõe não só um aprofundamento em sua condição de sexo e gênero, como também na violência policial que qualquer moradora das zonas de maior vulnerabilidade social na cidade vivencia cotidianamente.

Revertendo o olhar para o espectro bicha, e não só para a individualidade de determinados artistas bichas nessa cidade, podemos pensar que, na atualidade, o mesmo se distancia muito do ideal das bichas de outras décadas, quando desde os anos 1970 importávamos a cultura gay dos EUA, com o ideal do “macho man”6: bichas peludas, fortes e muito masculinizadas. As bichas de hoje valorizam sua feminilidade e a aproximação da identidade travesti. Estampa-se com orgulho o ser “afeminada”, em contrapartida do “gay padrão”, que seria aquele que se aproxima mais do ideal de homem heteronormativo, aquela bicha que nem parece que é. Um termo recente e utilizado, e despontado, pela funkeira Linn da Quebrada é o Bixa-Travesty, sendo interessante trazer para esse estudo queer como um Corpo Falante, ou uma corpA, se auto-define: “Quando eu fui inventar esse lance da Bixa Travesty, foi porque eu acho que nesse espectro entre o masculino e o feminino me parece que eu sou uma falha” (Linn, 2018). Sendo assim, retomando o primeiro exemplo da peça Bichas e sua abertura para uma variedade das possibilidades do ser bicha, o que Linn propõe com essa construção de um novo nome para sua identidade de gênero é também uma apropriação de nomes que eram utilizados como insultos, ressignificando-os. Este corpo falante é antes de tudo um corpo se auto-definindo. Conclui-se daí que a sigla LGBTQIA+ não se traduz em um conjunto de caixinhas estáveis, passando ela mesma por um processo volátil, fluido e incessante de redefinições.

O termo LGBTQIA+ significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexo, Assexuais e a infinidade de possibilidades de expressões de gêneros e sexualidades, como a Pansexualidade e muitas outras. O termo já foi, por muitos anos, utilizado como GLS, sendo acrônimo para Gays, Lésbicas e Simpatizantes. Antes, era apenas referido à comunidade Gay, ou Homossexual. Ao longo da história, o protagonismo dos homens gays foi sendo desconstruído e dando vazão a uma série de outras possibilidades de corpas, incluído as mulheres, as travestis, as pessoas bissexuais etc. Nos últimos anos, a sigla, que já foi colocada por um tempo apenas como GLBT (ou GLBTT) e, posteriormente como LGBTQ, foi ganhando novos contornos, buscando legitimar outras formas de sexualidades e identidades de gênero. A atual sigla já não coloca o G, de gays, na frente, dando protagonismo para as lésbicas, o L. Atualmente,

6 Ideal das bichas dos anos 1970, que tinham como ícone o Village People, grupo de música disco americana. A expressão “Macho Man” se tornou amplamente conhecida nesta década pela música homônima lançada em 1978, integrando o álbum San Francisco.

algumas pessoas e coletivos, em sua maioria nos EUA, já utilizam a sigla TLGB+, buscando trazer o T, de Transgêneros, para o topo da sigla, sendo essa a parte da comunidade em maior número de vulnerabilidade social e com carência de diversos direitos ao redor do mundo.

Podemos compreender que essa grande questão, a sigla T, de Trangêneros, ainda sendo como a faixa da sigla LGBTQIA+ que apresenta maior índice de falta de melhores condições sociais. Muito se especula sobre as especificidades inerentes ao corpo transgênero, mas, me parece que é necessário sempre saber e pesquisar através dos escritos e das vivências de quem vive a letra T em sua própria pele, como uma corpA falante.

O termo Trans, assim como o termo homossexual, é cunhado por de fora da sigla LGBTQIA+. Cria-se o termo homossexualidade para designar “os outros”, e só aí o termo heterossexual é criado por “nós”, em resposta. Conforme esclarece Butler (2000, p. 100-101):

Sin la homosexualidad como copia, no habría una construcción de la heterosexualidad como origen. Esta presupone en este caso a aquella. Si el homosexual como copia precede al heterosexual como origen, parece razonable conceder que la copia viene antes que el origen, que la homosexualidad es el origen y la heterosexualidad, la copia. Pero estas simples inversiones no son realmente posibles [...] toda la estructura de la copia y el origen se revela como extremadamente inestable ya que cada posición se invierte en la otra y confunde la posibilidad de una forma estable que localice la prioridad lógica o temporal de cada término. [...] Si la heterosexualidad es una imposible imitación de sí misma, que se constituye de un modo performativo como el original, entonces su parodia imitativa – cuando y donde existen en las culturas gays – es solamente una imitación de una imitación, una copia de una copia pues no hay original.

A partir da observação de Butler, nota-se que a construção de alguns termos são respostas nossas (corpAs falantes LGBTQIA+) à denominação que pessoas não pertencentes a essa comunidade nos deram, nos cunharam. O termo Transexual é trazido ao idioma inglês por David Oliver, em 1949, e popularizado pelo doutor alemão Harry Benjamin na década de 1960, em conjunto com o termo Transgênero. Porém,

Compreendiam-se esses indivíduos como incluídos no denominado “travestismo fetichista”, entendido na época, especialmente por psicanalistas, como uma patologia, um tipo de psicose, de acordo com a visão de que o gênero identificado pela pessoa “normal” estaria submetido ao seu sexo biológico. Essa concepção reduz a transexualidade a uma patologia e as pessoas transexuais a pessoas para as quais procedimentos cirúrgicos trariam uma “cura” (Jesus, 2018, p.01).

Muito se discute a respeito da diferença entre os dois termos, um mais ligado ao sexo e outro mais ligado ao gênero, sendo que ambos já orientam leituras e

interpretações. Porém, é preciso uma vez sublinhar que tais estudos e nomenclaturas são oriundas de pessoas cisgêneras – isto é, pessoas que não são transgêneras ou transexuais – que não vivenciam tais experiências. Esta denominação de cisgeneridade é atribuída muitas vezes à pesquisadora trans Júlia Serrano, mas a mesma diz ter conhecimento de que o termo foi criado por volta de 1995 pelo homem transgênero Carl Buijs. Mas, importa aqui saber menos quem cunhou o termo e mais de onde ele vem: foi a transgenereidade que criou um nome para definir a existência de outras pessoas, aquelas que não o são. Se a cisgenereidade constrói um termo e, a partir dele, nos exclui, nos hospitaliza e/ou nos patologiza, nós construimos outro para mostrá-los que não estão no centro da norma universal de onde supostamente nos apontam, nós que somos tidas como extremidades do eixo. A transgenereidade pode, e deve, (e está fazendo) falar por si mesma: construir lugares onde as pessoas cis e as trans ocupem lugares de poder-saber-desejar equivalentes nas instâncias sociais. Assim, as trans não são algo à parte, mas algo que, assim como o ser “cis”, constitui o espaço da sociedade.

Nesse momento, é interessante trazer outros termos para se referir a pessoas transgêneras, sendo os mesmos criados por pessoas trans brasileiras: transgente, por Letícia Lanz, Transidentidade, por João W. Nery, e Transvestigênere, por Indianare Siqueira e Erika Hilton. Tais nomenclaturas são mais abertas a uma pluralidade de vivências de corpas que vão além dos papeis sociais impostos às mesmas. Nery (2011, p. 4) define a transidentidade como abrangindo “uma série de opções em que uma pessoa sente o desejo de adotar, temporária ou permanentemente, o comportamento e os atributos sociais de gênero (masculino ou feminino), em contradição com o sexo genital.” Letícia Lanz (2014, p. 24), por sua vez, afirma que

Transgênero não quer dizer um gay (ou lésbica ou bi) “mais afetado”, nem uma patologia mental do indivíduo. Não é tampouco o nome de mais uma identidade gênero-divergente (como travesti, transexual, crossdresser, drag queen, transhomem, etc.) mas um termo “guarda-chuva”, que reúne debaixo de si todas as identidades gênero-divergentes, ou seja, identidades que, de alguma forma e em algum grau, descumprem, violam, ferem e/ou afrontam o dispositivo binário de gênero.

Compreendendo, com Lanz, a letra T, da sigla LGBTQIA+, como uma letra guarda-chuva, nos deslocamos para a definição de Transvestigênere, adotada a partir de agora, como “toda pessoa não cisgênera... qualquer coisa que não seja cisgênera, pode ser Transvestigênere” (Hilton, 2019). Erika Hilton refere-se ao termo cunhado por ela e por Indianare Siqueira, uma transvestigênere, militante, e pessoa a frente da Casa Nem,

um dos principais abrigos para pessoas trans em vulnerabilidade social no Rio de Janeiro. Esta instituição sofreu um ataque truculento pela polícia do Rio e atualmente ocupa um prédio no Bairro de Copacabana, ocupação esta intitulada de Stoneall Inn.7

Transvestigênere tem me parecido, por um lado, um termo mais próximo do que Preciado coloca como Corpos Falantes e, por outro lado, aquele que mais tem se aproximado dos exercícios des-indetificatórios dessa corpa: um corpo inadequado ao CIStema8 e que se auto-produz, na vida-performance e também nessa escrita.

7 Stonewall Inn é o nome de um bar LGBTQIA+ em Nova York que, em finais da década de 1960, contou com uma série de ataques violentos por conta da polícia local e, com a resposta da população que frequentava o ambiente, na noite de 28 de Junho de 1969, inicia-se uma grande manifestação gerando a conhecida Revolta de Stonewall. Trata-se de um marco para uma maior liberdade da comunidade gay nos EUA que repercutiu em todo o mundo, sendo a origem das diversas paradas LGBTQIA+ que existem em variados países. Dois personagens marcantes e atuantes nessa história são as trans Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, sendo uma negra e a outra descendente de latinos.