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4 Desterritorialização: Construindo coletividades

4.1 Encontrando aliados: novos territoriós a serem explorados

Nesse momento, em que não sou mais apenas um olho-cílio, mas uma corpa- prótese completamente adentrada na vivência com e a partir da montação, se faz necessário construir possibilidades de um chão sólido para caminhar de salto alto. Foi preciso, desde então, criar laços e espaços que me acolhessem e me encorajassem, de pessoas, de certa forma, semelhantes a mim que construíssem um ideal de família, para além dos laços sanguíneos. A Haus Of Deboche, que é um coletivo construído por mim e mais três artistas drags e burlescos – Maybe Love, Linda Mistakes e Delirious Fênix – tem sido um espaço de acolhimento e de refúgio, onde tenho me montado na grande maioria das vezes em que vou me apresentar. A Casa Sapucaia, no alto de Santa Teresa, é uma casa onde todos os moradores são artistas e ocupam o local de variadas formas. Pude a conhecer por intermédio da companheira de Pós Graduação em Artes da Cena, Aline Vargas, que me levou ao espaço, onde tenho conseguido ter paz para concluir boa parte dos estudos relacionados à esta dissertação. Esses exemplos são expostos para mostrar como, de formas diversas, corpas que fogem da binaridade de gênero são colocadas de forma marginal em nossa sociedade e sofrem e oferecem perigo social apenas por serem corpos expressivos e questionadores. Essas corpas necessitam de espaços propícios para a vida, acolhimento, estudo e criação. Tais corpos se tornam cada vez mais vulneráveis quando, atualmente temos um presidente no poder que, além de simbolizar um partido de ultradireita, promove um discurso agressivo invocando ódio e violência com relação a toda a comunidade LGBTQIA+. Já desde sua campanha, sofri ataques nas redes sociais e nas ruas, tendo como exemplo maior uma tarde em que eu apenas caminhava na Avenida Paulista, em São Paulo, e recebi um soco no meu ombro direito por um homem que vestia uma camisa com o rosto do atual presidente.

É preciso, antes de qualquer coisa, não recuar, fortalecer-se e construir redes, pois a corpa precisa se nutrir, inclusive para ocupar o espaço da academia e de produção de conhecimento. É preciso mobilizar a multidão queer:

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer. O corpo da multidão queer aparece no centro disso que chamei, para retomar uma expressão de Deleuze, de um trabalho de desterritorialização da heterossexualidade. Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de

desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de desterritorialização do corpo obriga a resistir aos processos do tornar-se normal. Que existam tecnologias precisas de produção dos corpos normais ou de normalização dos gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibilidade de ação política. Pelo contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual. (PRECIADO, 2011, p. 14)

De modo semelhante à desidentificação, a desterritorialização, de caráter mais grupal e menos individual, interfere nos modos de vida da pesquisadora que aqui dialoga, para executar tal investigação de forma ativa e propositiva. É preciso estar nos lugares e buscar os meios para viver, fazendo arte, pesquisando e escrevendo sobre e a partir – e dentro – da mesma. Com esse entendimento, é preciso compreender, e engendrar, novas estruturas, técnicas e modos de fazer, quando

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 323)

Foi/é/será preciso observar e construir meios para que a pesquisa ocorra como um diálogo entre minha corpa e os ambientes que me nutrem, sendo eles as casas nas quais dormi, os lugares onde trabalhei e estudei. Tal pesquisa, assim como minha vida acadêmica e pessoal, foi cerceada em diversas vezes, muitas delas que quase não me permitiram cumprir estes escritos, sempre sendo por imposições sociais oriundas do lugar de onde sou originária: uma corpa afeminada vivendo em uma favela carioca. Mas disso, adentraremos e falaremos melhor mais adiante. Busquemos, por agora, analisar um pouco melhor o conceito de desterritorialização. Podemos compreender o território como um agenciamento, onde

Todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há alguma: dentro de sua lata de lixo ou sobre o banco, os personagens de Beckett criam para si um território. Descobrir os agenciamentos territoriais de alguém, homem ou animal: ‘minha casa’. [...] O território cria o agenciamento. O território excede ao mesmo tempo o organismo e o meio, e a relação entre ambos; por isso, o agenciamento ultrapassa também o simples ‘comportamento’ (Haesbaert, 1997, p. 218).

Uma vez que o agenciamento nos territórios promove não só a fisicalidade, mas as relações inerentes ao mesmo, a desterritorialização da multidão queer é um ato de negar o território como dado, imposto. Ela propõe re-ocupar e reutilizar os mesmos de acordo com suas práticas, não territorializando seguindo os moldes impostos por outras corpas que dividem os espaços sociais conosco ou com normas já pré-estabelecidas na utilização do mesmo e que vão contra nossa instância física neles. Os cílios que possuo em minha pequena corpa quando criança estão para os cílios postiços assim como minha família de sangue está para Haus of Deboche. Até que ponto vivemos na “naturalidade” dos corpos e das experiências em sociedade? Até que ponto construímos novas práticas?