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Quero começar minha fala agradecendo. Obrigado Ma.Ma. pelo convite e obrigado também Manu (Manoel Friques / orientador) por compor uma banca tão interessante. Para mim, foi um prazer fazer a leitura desse trabalho e queria, já de cara, destacar a importância da produção de pesquisas como essas na academia. Da mesma forma como Ma.Ma. destaca em seu texto, também quero frisar a importância da produção de relatos em campos artísticos expandidos. Mais precisamente, a produção de relatos que iluminam corpas e vivências desviantes da cultura binária e heterossexual dominante. Nesse sentido, parabenizo o seu trabalho e festejo a sua presença nesse programa de pós-graduação, espaço que, como sabemos, pode não ser muito acolhedor para pessoas sexodiversas. Por essa razão, também, é que precisamos ocupar esses espaços e não abrir mão da produção de conhecimento que realizamos com e a partir dos nosso corpos. É preciso ocupar a academia para não deixar que a disputa por imaginários continue se dando forma excludente. Quando conseguimos estar presentes, furando as bolhas, passamos do lugar de objeto de pesquisa para ter voz como pesquisadoras. E essa ponte, essa travessia do objeto para o sujeito da pesquisa, considero de suma importância na batalha contemporânea não só de afirmação como também de criação de subjetividades outras.

Quero destacar também a estrutura física do trabalho que, antes da leitura, já chega provocando o corpo e produzindo atividade. O emaranhado laranja, a faca, o convite para usar os cílios e alterar o corpo, são como uma continuidade da obra que nunca para de obrar. O porteiro do meu prédio ficou curiosíssimo com a estrutura do trabalho e estou fazendo esse comentário por julgar pertinente a estranheza que certos objetos performativos propõem. Dessa forma, antes de mesmo de chegar nas minhas mãos, o trabalho já estava no mundo, se relacionando com as coisas do mundo e perturbando, mesmo que de maneira muito provisória, algumas noções já sedimentadas. No meu entendimento, o campo da performance, e aqui não farei o exercício de definição dessa expressão artística porque os limites são, para mim, uma falsa questão, está ligado a ação. Nesse sentido, tenho para mim que a performance é da ordem do fazer. E é mesmo na fazeção das coisas que podemos alargar, ampliar ideias como também criar

ou produzir corpos. Existe um corpo antes e um corpo depois de receber o seu trabalho. Do porteiro do meu prédio até o meu próprio corpo, uma infinidade de outros corpos afetados pelas suas ideias, pelas coisas que você deseja jogar e por em relação no mundo.

Ainda próximo desse mesmo aspecto, na relação com outros corpos afetados pelo corpo da pesquisa, fico feliz que você tenha realizado a tarefa de lembrar daquelas e daqueles que vieram antes de nós. Essa espécie de revisão breve que você faz, situa melhor o seu trabalho e nos faz compreender a partir de que lugar você quer falar. Nós estamos o tempo inteiro construindo memória e é fundamental que as comunidades possam participar na criação de suas narrativas. Relembrar os nomes, trabalhos e corpos não é só uma forma de homenagem. Quando chamamos essas figuras para o nosso trabalho, estamos contribuindo para a manutenção de suas presenças, estamos reconfigurando o impacto de seus corpos ao preencher algumas lacunas das histórias pouco contadas. É com alegria, então, que relembro, junto de você, Madame Satã, Divine, Rogéria e tantas outras que você menciona. Memória é trabalho. E, assim como todo trabalho, precisa se renovar sempre.

Dessa mesma forma, é que vejo também o relato que você faz sobre os espaços de sociabilidade desviante. É sempre um prazer ver a Turma Ok sendo citada, lembrar de atividades realizadas pelo teatro rival e conhecer também novas casas que apoiam, por exemplo, a arte drag. Criar espaços, talvez, seja uma das formais mais eficazes de resistência. Como sabemos, nem sempre é fácil ter local. E fico feliz que essa geração mais nova venha percebendo também a importância dos encontros, a criação de laços, a invenção de novos modos de ser e fazer família. Pois sabemos, e ainda bem, que família não é sangue. Família, assim como a performance, é da ordem do fazer: fazer cuidado, fazer carinho, atenção e companheirismo. Talvez, família seja sobre fazer amor – praticá-lo nas pequenas ações, conversas e contatos. Amor também é trabalho diário.

Depois dessas duas revisões, ou seja, artística e de espacialidades, quero comentar da sua revisão bibliográfica. Vou fazer algumas críticas, mas de forma nenhuma como

demérito da pesquisa. Na verdade, quero compartilhar com você algumas questões e também deixar espaço para que você possa pensar na continuidade do seu trabalho. Quando você critica Preciado e aposta na dúvida para fazer a leitura das colocações dele, eu considero um dos pontos altos da sua escrita. Mas é uma pena que isso não tenha acontecido de maneira mais verticalizada e crítica. Quero sinalizar isso porque, apesar de estranhar o discurso do teórico europeu, ele continua sendo a sua referência principal para debater questões como o entendimento das próteses ou do corpo-prótese. Nesse sentido, a crítica fica um pouco perdida porque não se realiza, de fato, na escrita do trabalho. É muito legal ver a relação que você faz com algumas pesquisadoras brasileiras, pro exemplo Jaqueline, aqui presente, mas sinto falta de outras vozes que estão bastante ocupadas em pensar a questão queer para as especificidades dos territórios brasileiros. Algumas dessas vozes estão na sua bibliografia, mas você não faz uso delas. Sendo assim, quero saber mais um pouco sobre esse processo de escrita e relação com as fontes de pesquisa para o trabalho. Larissa Pelúcio, Berenice Bento, Margareth Rago, Tiago Duque, Guacira Lopes Louro (para citar somente poucos nomes) são vozes que sinto falta no seu trabalho e que, em muitos momentos, poderiam substituir ou, até mesmo, ocupar o lugar de Preciado no esclarecimento ou debate de alguns conceitos tão caros para a sua pesquisa.

Estou dizendo tudo isso, Ma.Ma., para que a gente pense junto como melhorar o debate decolonial em nossas próprias escritas. Recusar as referências americanas e da europa sem fazer o exercício de chamar para o debate vozes brasileiras ou latinas pode ser chover no molhado. Em sua escrita, você reconhece os saberes produzidos pelo sul global, mas fala pouco ou não debate sobre eles. Você faz isso muito bem, como disse anteriormente, na parte artística e das espacialidades, mas na revisão bibliográfica sinto falta de uma mão mais forte e em sintonia com o seu posicionamento ético e estético. É preciso sujar também a escrita, desregrá-la, fazer uma lambança. E, no meu entendimento, nada melhor do que multiplicar vozes e presenças para tornar o material mais poroso, potente, animado e lambuzado. Minha fala, então, fica como um convite para que você se deixe atravessar por essas vozes e dispute saber e produção de conhecimento com elas.

Por fim, quero dizer que aprendi muito com o seu trabalho e que adorei poder conhecer melhor a atividade drag movimentada por essa nova geração. Quero destacar a qualidade dos trabalhos e também a escolha que você faz ao trazer duas mulheres drags para o debate. Seria muito mais fácil falar de performances drags feitas por homens e você não se seduz por essa ideia. Nesse sentido, quero te dar os parabéns pela esperteza como pesquisadora.

Para finalizar mesmo, quero ressaltar a sua visão como pesquisadora, participante da cena artística carioca. Diferente de muitas escolas acadêmicas, eu não acredito na pesquisa distanciada como única forma possível de fazer ciência. Nessa produção de relatos em campo expandido, com mencionei no início da minha fala, é fundamental que as artistas possam falar dos seus próprios trabalhos e vivências. Como participante da cena a sua voz é ativa e revela detalhes muito interessantes para os seus futuros leitores. Nesse sentido, quero te agradecer pelo aprendizado e te encorajar na continuidade de sua pesquisa. É importantíssimo que a gente dispute esses espaços e, no que depender de mim, sua corpa será sempre muito bem vinda nos espaços de pesquisa. Obrigado e parabéns.

Anexo 05

Contrato Contrassexual78

Eu, voluntaria e corporalmente, renuncio a minha condição de Homem ou de Mulher, a todo privilegio social, econômico e patrimonial e a toda obrigação social, econômica e reprodutiva derivados de minha condição sexual e em um sistema centrado na heteronormatividade. Me reconheço e reconheço os outros como corpos falantes e aceito de pleno consentimento não manter relações sexuais naturalizantes, nem estabelecer relações sexuais fora de contratos pré estabelecidos temporalmente.

Me reconheço como trabalhador do cú. Renuncio a todos os laços de filiação, maritais ou parentais, que me são impostos pela sociedade heterocentrada, assim como aos privilegios e obrigações que eles derivam. Renuncio a todos os meus direitos de propriedade sobre meus fluidos sexuais ou produções do meu útero. Reconheço meu direito a usar minhas células reprodutivas unicamente quando haja um contrato livre e consensual, e renuncio a todos meus direitos de propriedade sobre os corpos falantes gerado pelo ato da reprodução.

Ass:

Data: 23 / 12 / 2019

Anexo 06

Sob a Luz do Sexo do Meio: Crítica do espetáculo “MDLSX”

Arrancar as vogais do título da obra, deixar poroso o título, assim como todo o trabalho em questão. Permitir que o espectador esteja em atitude ativa ao tentar construir o título da performance, além de enxergar toda a complexidade mostrada por uma luz que revela, velando a cena obscura, catártica, que alia a performance à dramaturgia oriunda da vida revelada.

MDLSX se mostra uma obra potente justamente nas suas fragilidades: o caminho / sexo do meio, o meio termo, o estar presente na ausência do corpo real. Não diria ausência na verdade, pois o corpo da performer se dá à ação de forma vigorosa, e nunca virtuosa, na frente do espectador, porém ele é enrijecido por uma timidez potente e uma doce agressividade, ao mesclar caracteres de ambos os sexos. Na verdade, é preciso compreender que não existem apenas dois sexos e o corpo da própria performer comprova isso, sendo ela uma pessoa intersexo, possuindo em sua biologia caracteres dos sexos tidos como feminino e masculino. Além de sua condição biológica, a artista possui uma performatividade andrógena, não binária e que quebra os padrões estabelecidos socialmente com relação ao gênero e também à sexualidade, sendo abertamente uma pessoa pansexual. Em meio a uma sociedade que nos padroniza como apenas Homens ou Mulheres, o corpo cênico de Silvia Calderoni joga luz a uma corporeidade obscura, no sentido de invisibilizada socialmente, e ali, no palco, ela ganha luz e potência ao ser tensionada durante as horas do espetáculo.

A música, aliada à cenografia e a todo o aparato utilizado cenicamente, mesclam caracteres contemporâneos, midiáticos, joviais e da cultura pop. Nada é revelado de forma trivial num espaço onde a potência criativa é debochada, forte, pulsante e acelerada. O público, disposto no espaço da arena do Sesc de Copacabana, não se enxerga, pois a luz de serviço só é acessa em um único momento onde a atriz cria uma espécie de calda e se TRANSforma em sereia. A luz se acende e ela olha diretamente em nossos olhos, revestida por um corpo-pele que não tem gênero definido: é um tronco andrógino que possui uma calda improvisada. Ao revelar, de forma explícita, a sua genitália, uma luz infravermelha (na verdade verde) corta o seu corpo ao meio e, da região genital, ela expele, comprime, um jato de laquê. Seu órgão genital é revelado, mas não o enxergamos por completo, assim como a performer brinca em todos os momentos cênicos. Uma câmera é utilizada ao vivo, revelando no telão uma boca que

grita, um dedo que aponta, um mamilo que ressalta em um corpo magro, frágil, porém potente e anárquico.

Essa história é sua? É real? A dramaturgia do espetáculo é criada, construída, ou embasada na realidade da vida da artista e dos que a cercam? Essas perguntas permeiam o pensamento dos espectadores que buscam enxergar a cena na realidade e/ou a vida real que transborda nos textos e nas imagens visualizadas cenicamente. Esse caráter documental, diria ainda HiperRealista da cena de MDLSX, cativa o espectador e o transborda para o universo que se vive para fora do teatro. No nosso país, foram registrados mais de 604 casos de mortes de travestis e transexuais nos últimos seis anos, de acordo com pesquisa da TRANSGENDER EUROPE (os MIDLE SEX vivem à margem da sociedade, lutando para serem enxergados e possuírem direitos básicos, intrínsecos a qualquer ser humano, como obtenção de seus nomes sociais e acesso a trabalho e educação).

Retomando o caráter visual da performance MDLSX, podemos refletir sobre esta cena que utiliza de diversos aparatos, como câmera ao vivo, música e voz em off, mas que não preza por um virtuosismo da performer em questão. Tais aparatos não servem como um suporte para que a atriz seja protagonista da cena, mas ajudam a desvelar uma performance que busca interagir com o público revelando diversos níveis de interpretações e interações com a plateia disposta no espaço de trabalho. Nós, o público, somos colocados frente a um corpo que se metamorfoseia em sereia, em HomemMulher barbado(a), que vivencia esse caminho do meio buscando sua REexistência e, diria mais, deflagrando sua essência em um jogo cênico de potente vigor. Um Orlando pós moderno, citando a obra de Virginia Woolf.

Se Orlan ou Cindy Sherman utilizam de aparatos e aplicativos para realizarem o que Deleuze chamaria de devir, Silvia Calderoni utiliza da ausência de aparatos / aplicativos corporais. Ela se despe e apaga / mantém a luz mínima do teatro, para nos deixar curiosos, buscando enxergar seus corpo-devir em diversas metamorfoses e investigar essa TRANSformação performada, e vivenciada, no espetáculo em questão.

O que nos é revelado é um caminho com pouca luz, um título sem as vogais e um dispositivo cênico onde, sempre, devemos enxergar o que está pelo meio, o que se faz e refaz a cada instante, seja na cena realizada ou na vida lá fora: corpos pulsantes, dançantes e performativos, que gritam por um lugar, por serem aceitos e enxergados em uma sociedade em TRANSformação, evolução. Corpos falantes, segundo Preciado, Corpos Sem Orgãos (CsO), segundo Deleuze. Apenas Corpos!

Luz e Ação!

NOTA: Escrito realizado a partir da apresentação de MDLSX no festival “Atos de Fala” em 2016 no Teatro de Arena do Sesc de Copacabana. MDLSX é um espetáculo italiano da cia Motus, com atuação de Silvia Calderoni, direção de Enrico Casagrande e Daniela Nicoló, dramaturgia de Daniela Nicoló e Silvia Calderoni. A crítica foi realizada como trabalho de conclusão da oficina “Crítica das Artes da Cena”, com Daniela Ávila Small na Sede das Cias, Lapa – RJ, em maio de 2016.

Anexo 07

Cátalogo com nomes de variadas corpas que, de alguma forma ou em algum momento em suas vidas, utilizaram-se da arte da montação na cidade do Rio de Janeiro.