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3 Desidentificação: Corpos em Performatividade

3.2 A Flâneuse Perversa

Já no meu primeiro dia montada no Teatro Rival, não consegui me desmontar completamente para sair e fui, montadíssima, passear pelas ruas do centro do Rio com outras amigas. A montação me possibilitava remanejar o meu contato com o universo ao redor de minha corpa. É sobre outras possibilidades de corpas que remanejam sua interação cênica e social que vamos falar brevemente. Nesse momento, interessava-me, com um nova possibilidade corporal, adentrar na multidão, camuflar-me, de modo a construir novos espaços para observar e ser observada.

Trazer a imagem de um grande centro urbano, em uma metrópole, pode ser sempre caótica. Mas esqueçamos por um momento a Rio de Janeiro de 2016 e pensemos na Paris, do século XIX. Nessa época, Paris passava por uma reestruturação urbana, na qual suas estreitas ruas medievais desapareceram, dando lugar a amplos boulevares que propiciavam uma nova maneira de vivenciar a vida parisiense. Walter Benjamin encontra não só nessas ruas, mas nas mesmas descritas na literatura de Charles Baudelaire, a figura do homem que “vive sua vida de encontros visuais, enquanto mantém uma relação desligada, anônima e essencialmente distante da paisagem urbana pela qual se move” (Turner, 2003. P 17.). A esse homem que se permite flanar nessa nova Paris, Benjamim nomeia de Flanêur, que, no francês, vem do verbo flanêr, “para passeio”. Tentemos uma rápida aproximação dessa corpa montada à figura do flâneur: assim como o flâneur da Paris do século XIX, no agora, para além da intoxicação que me permito com a montação prostética, posso realizar “a intoxicação da comodidade que surge com o fluxo de pedestres” (Benjamin, 1984, p. 55).

Aproveitando os alargamentos que tenho realizado na geografia do meu corpo, convido-vos a abrir a noção geográfica também em relação a outra metrópole que entra agora nessa discussão a cerca do flâneur. Utilizando essa figura, o crítico de arte norte- americano Aaron Belsky coloca o gay da cidade grande, tendo New York como centro de sua pesquisa, como uma espécie de Flaneur Perverso42, quando define o espaço queer como “inútil, imoral, um espaço sensual que existe para experiência. É um espaço de espetáculo, consumo, baile e obscenidade. Um uso desviado e uma deformação de

42 Aaron Belsky utiliza dessa retórica, realizando um projeto cartográfico que estabelece relações entre a casa de Oscar Wilde, as ruas de Greenwich Village, a Boate 52 (NY), os arbustos e os labirintos do Central Park, a casa de Charles Moore e Clubbes BDSM de São Francisco.

um lugar, uma apropriação dos edifícios e dos códigos de cidade com fins perversos” (Belsky, 1997, p. 10).

Figura 26: Gays em comemoração na New York dos anos 70 (acervo Google Imagens).

Apropriando-se do termo injurioso colocado por Aaron, Preciado (2017, p. 03), em sua Cartografia Queer utiliza do mesmo para descrever os gays da New York dos anos 1970 do seguinte modo: “O gay pode ser entendido como um flaneur perverso que passeia sem rumo determinado pela cidade em busca de novidades e acontecimentos.” Tal nomenclatura também é utilizada por Preciado, em antagonismo com a figura das mulheres lésbicas, que não só possuem um grande apagamento histórico na grande quantidade de estudos cartográficos queers, como também menos privilégios sociais oriundo do machismo em que vivemos em nossa sociedade:

Se o perigo da cartografia dominante é a sua tendência hagiográfica, o seu ideal utópico é o que leva a se imaginar como um grande relato capaz de apagar, incorporar ou recodificar aquilo que excede ou resiste à norma, o perigo de cartografia identitária das minorias é funcionar, como diria Focault, como “um ato de vigilância”, cobrindo de alguma maneira o mapa que os dispositivos de controle impulsionam para se converter, então, num arquivo de vítimas que, mais do que criticar a opressão e a sua diferença, acabam por estetizá-la. (Preciado, 2017, P.03).

Preciado busca empregar o termo Flâneur Perverso não só para contrapor ao apagamento do corpo lésbico, mas também para, assim como a ressignificação da palavra queer, reutilizar e se apropriar de termos oriundos de cartografias que escondem, “por trás de propostas formalistas, cumplicidades com narrativas heterossexuais e coloniais dominantes”. No nosso caso, voltando para a pesquisa que constrói um arquivo selvagem na Rio de Janeiro da atualidade, consigo compreender a minha corpa, após o início do ato da montação, como pertencente a uma Flâneuse Perversa. Assim, compreenderemos e chamaremos todas as outras corpas que colocaremos no escopo desse relicário em contínuo processo de desidentificação.

Assim, vamos conhecer e interagir com uma variedade de corpas-próteses de distintos tipos de flanêurs e flaneuses perversas cariocas pelo espaço urbano que agora nos cerca. A flâneusse perversa é queer por ser um Corpo Falante, mas sobretudo cuir, por ser um corpo latino americano. Ela é também constituída de próteses auto- identitárias, pois estou, e estamos, falando de figuras montadas.

Se, no início do que hoje compreendemos como teatro, às mulheres foi tolhido o espaço de estar em cena (e daí nasce o fazer drag em variadas sociedades e épocas e em lugares distintos no mundo) e se as mesmas são apagadas em uma grande variedade de cartografias, como a de Aaron Belsky, apontada por Preciado, nesse estudo, buscaremos trazer o olhar, o cílio e a corpa atenta a Flanêuses Perversas que são mulheres cisgêneras. Tal fato não se dá apenas pela dívida histórica que possuímos com as mesmas com relação ao desenvolvimento de vários setores na história da humanidade, mas porque possuímos também, na atualidade carioca e ao redor do Brasil e do mundo, uma grande gama de artistas que, sendo mulheres cisgêneras ou também homens e mulheres trans, não possuem a mesma validação em seus trabalhos artísticos e estéticos que outras faixas da comunidade LGBTQIA+, sobretudo com relação aos homens gays que fazem drag.

Nos próximos capítulos, analisaremos atentamente duas performances artísticas propostas, respecivamente, pela maquiadora e drag queen Palloma Maremoto, e o drag king Vicente Van Goth, persona da escritora Priscilla Matsumoto. Mas essas Flaneuses Perversas trazidas aqui, incluindo a minha corpa, não pretendem ser lidas e encaixotadas em definições estáticas: é por uma livre estética não estática que estamos vivenciando e analisando tal investigação. É preciso limpar bem a cola dos cílios para olhar com atenção, não realizando o que critica Preciado em relação algumas cartografias que servem à vigilância.

Um bom ponto de partida talvez seja uma desidentificação em relação ao fazer drag rumo a uma aproximação com a performance art. Para isso, recuperamos a Cuir- Perversa Hija de Pera que, ao ser comparada a Divine em uma entrevista, responde que tal ato seria “uma ignorância. É porque não sabem quem é Nina Hagen, nem Cindy Sherman, nem Orlan.” (Pera, 2014) Acatando a sugestão de Hija, recorramos a duas das artistas mencionadas por ela. Cindy Sherman e Orlan são casos distintos de figuras femininas que, por meio de variados atos performáticos, reconfiguram suas imagens

corporais e constroem problematizações ao redor do corpo feminino e dos padrões sociais relacionados aos mesmos. Cindy Sherman pulveriza sua imagem em uma variedade de experimentos fotográficos que mesclam sua figura a múltiplos cenários e artefatos minimamente construídos e elaborados pela mesma. Já Orlan dá um passo além em suas investigações performáticas sendo uma das percursoras do que se pode compreender como Body Art. Ao recorrer a uma série de cirurgias estéticas onde transforma partes de seu corpo, realizando alusões a obras de arte amplamente reconhecidas, a artista filma todos esses procedimentos estéticos e os expõe em uma variedade de lugares reconhecidos como instituições artísticas em todo o mundo, como o Centre Pompidou de Paris. Existe um elo em comum entre estas duas artistas e que me parece de interessante observação, antes de avançarmos na urbes carioca. Falamos agora de duas artistas colocadas como pertencentes ao âmbito da performance art, que pode ser compreendida como:

[...] uma arte de fronteira, no seu contínuo movimento de ruptura com o que pode ser denominado “arte estabelecida, a performance acaba penetrando por caminhos e situações antes não valorizadas como arte. Da mesma forma, acaba tocando tênues limites que separam vida e arte (COHEN, 2007, p. 38).

Figura 27: Orlan (fonte - site orlan.eu).

A partir da definição de Cohen, notamos que Orlan realiza procedimentos em instituições ligadas às cirurgias estéticas, deslocando-os para instituições artísticas. A

Body Art de Orlan se dá no corpo da artista, é uma manifestação viva, humana e questionadora. De modo semelhante, Sherman busca, a partir de seus trabalhos artísticos, questionar as normas, os padrões sociais com relação a gênero e beleza, mobilizando, para isso, toda sorte de situações e materiais. São performances que questionam o comportamento restaurado relacionado ao gênero feminino, problematizando como a sociedade lida e se comporta com relação aos seus corpos de mulheres cisgêneras. Tais exemplificações se dão como um suporte para que possamos analisar o quanto o trabalho performático pode deturpar, questionar e burlar os padrões sociais e a forma como a artista trabalha no/com seu corpo.

Figura 28: Cindy Sherman (fonte-Site MoMa).

Importante pensar sobre como os trabalhos de Orlan e de Cindy Sherman conversam com tantos outros trazidos nessa pesquisa quando as artistas utilizam suas corpas como processos inacabados, não sendo o resultado das cirurgias de Orlan o fim de sua obra, por exemplo. Nesse caso, interessa mais à artista o caminho, onde trabalha com suas próteses, realizando suas montações. Interessa-me, tanto em meu processo, quanto aos outros que me aproximo, fugir da análise apenas do resultado da transformação de corpo em corpa, mas sim dos processo imbuídos nos mesmos. Nesse sentido, analisemos o entre processual dos dois acontecimentos performativos cariocas, para adentrarmos na urbes como corpas perversas e montadas.