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Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine. O caso exemplar da interpretação bohriana da mecânica quântica

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Ciências

Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências

Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do

século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine.

O caso exemplar da interpretação bohriana da Mecânica Quântica.

Ana Henriques Pato

Dissertação

Mestrado em História e Filosofia das Ciências

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Universidade de Lisboa

Faculdade de Ciências

Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências

Materialismo e idealismo na física do final do século XIX e início do

século XX a partir de Materialismo e Empiriocriticismo de Lénine.

O caso exemplar da interpretação bohriana da Mecânica Quântica.

Ana Henriques Pato

Dissertação orientada pela Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins

Mestrado em História e Filosofia das Ciências

2012

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Resumo

Palavras-chave: Materialismo. Idealismo. Dialéctica. Mecânica quântica.

Lénine expôs e desenvolveu um conjunto de aspectos da teoria do conhecimento na sua obra

Materialismo e Empiriocriticismo. Nela, o autor analisa o confronto entre as correntes materialistas e

idealistas na ciência do seu tempo. Em particular, analisa aquilo a que chama “idealismo físico”, isto é, a tendência de alguns físicos para interpretarem de forma idealista os resultados de um ramo das ciências. Lénine apontou como uma das razões para a crise da física a negação do valor objectivo das suas teorias: “a matéria desaparece, restam apenas as equações”.

O confronto entre estas duas linhas filosóficas fundamentais, o materialismo e o idealismo, permaneceu ao longo dos tempos. Para compreender as formas que esse confronto assume na ciência actual, estudar Materialismo e Empiriocriticismo é da maior relevância. Por todas estas razões, procede-se a uma recensão do conteúdo desta obra. Pretende-procede-se, assim, expor as principais posições da teoria do conhecimento materialista e dialéctica para, então, melhor compreender a relação entre aquelas linhas filosóficas e a ciência de hoje.

Verifica-se que a interpretação ortodoxa da mecânica quântica – tomada a partir dos textos de Bohr – está profundamente marcada por tendências agnósticas e idealistas. Em particular, conclui-se que Bohr antepõe, como condição de possibilidade, uma correlação entre objecto e instrumento de medida que é, no fundo – para além de um limite epistemológico inultrapassável –, a negação da independência ontológica do ser face à prática (do ente quântico face à experiência): trata-se de um “idealismo da práxis”. Conclui-se que Bohr não pôde resolver o problema central da mecânica quântica, o dualismo onda-corpúsculo, porque não considerou dialecticamente a unidade e a contradição do ser, acabando por “desmaterializar” a teoria, negando assim a teoria científica como reflexo aproximadamente verdadeiro da realidade objectiva – o que é uma condição de cientificidade.

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Abstract

Keywords: Materialism. Idealism. Dialectic. Quantum mechanics.

Lenin expounded and developed a number of aspects of the theory of knowledge in his work

Materialism and Empirio-Criticism. In it, the author analyzes the confrontation between materialism and

idealism in the science of his time. In particular, he examines what he calls "physical idealism", ie, the tendency of some physicists to interpret in a idealistic fashion the results of a branch of science. Lenin pointed out as one of the reasons for the crisis of physics the denial of the objective value of its theories: "matter disappears, there remain only the equations.

The confrontation between these two fundamental philosophical lines, materialism and idealism, remained throughout the ages. To understand the ways that this confrontation takes on science today, to study Materialism and Empirio-Criticism is of utmost importance. For all these reasons, I proceed to a recension of the content of this book. The aim is thus to disclose the main positions of the dialectical materialist theory of knowledge and therefore to better understand the relationship between those philosophical lines and science nowadays.

I verify that the orthodox interpretation of quantum mechanics – as it is given by Bohr's writings – is deeply marked by idealistic and agnostic tendencies. In particular, I conclude that Bohr gives the precedency, as a condition of possibility, to a correlation between object and measuring instrument that is, essentially – and beyond being an insurmountable epistemological limit –, the denial of the ontological independence of the being in relation to practice (of the quantum entity in relation to the experience): this is an “idealism of praxis”. I conclude that Bohr could not solve the central problem of quantum mechanics, the wave-corpuscle dualism, because he did not consider the dialectical unity and contradiction of the being, ultimately "dematerializing" the theory, thus denying the scientific theory as a true reflection of objective reality – which is a condition of scientificity.

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Índice

Introdução _________________________________________________________________________ 6 I – Materialismo e Empiriocriticismo ____________________________________________________ 11

1. A obra no seu contexto histórico.________________________________________________ 11 2. O empiriocriticismo como o reavivar de concepções idealistas pretensamente novas. _______ 12 3. A constituição do saber: a realidade objectiva vs as sensações como origem do conhecimento

científico. __________________________________________________________________ 15 4. Tentativas (falhadas) de conciliação do empiriocriticismo com as ciências da natureza e de “tapar

buracos do solipsismo”. _______________________________________________________ 18 5. O mundo é cognoscível._______________________________________________________ 27 6. A verdade objectiva vs. a verdade como “forma organizadora da experiência humana”. A

realidade objectiva como a fonte das sensações. ____________________________________ 34 7. O conceito de matéria e a questão gnosiológica fundamental. _________________________ 37 8. A relação entre a verdade absoluta e relativa. Dialéctica vs. relativismo. Verdade e erro. ____ 39 9. A relação entre a teoria e a prática na teoria do conhecimento. ________________________ 42 10. Sobre a utilização idealista do conceito de “experiência”. ____________________________ 43 11. Causalidade e necessidade. ____________________________________________________ 44 12. O espaço e o tempo. __________________________________________________________ 51 13. Liberdade e necessidade. ______________________________________________________ 55 14. O empiriocriticismo, o seu desenvolvimento histórico e a sua correlação com outras correntes

filosóficas. _________________________________________________________________ 57 15. A moderna revolução nas ciências da natureza e o idealismo filosófico. _________________ 71 16. O empiriocriticismo e o materialismo histórico. ___________________________________ 89 17. Os partidos em filosofia e o não-partidarismo. _____________________________________ 94 II – O que há de idealismo na interpretação bohriana da mecânica quântica _____________________ 98 1. Algumas notas sobre as origens da mecânica quântica. ______________________________ 98

2. A complementaridade de Bohr. ________________________________________________ 104

3. Crítica à complementaridade. _________________________________________________ 121 4. A causalidade fica de fora. ____________________________________________________ 131 5. O valor da teoria. ___________________________________________________________ 134 III – Conclusões e notas finais ________________________________________________________ 146 Bibliografia ______________________________________________________________________ 162

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Introdução

O âmbito principal deste trabalho, a que corresponde a primeira parte da dissertação que aqui se apresenta, é analisar a obra de Lénine Materialismo e Empiriocriticismo1. Através dessa obra, será

estudado o confronto entre idealismo e materialismo em diversos aspectos da teoria do conhecimento e a sua expressão na ciência do final do século XIX e início do XX, tratados nesta obra.

Mas, proceder a este estudo encerra um objectivo ulterior que é, ao mesmo tempo, a motivação mais profunda desta dissertação: o de compreender as formas que esse confronto assume na ciência presente, concretamente na mecânica quântica2. Esse constitui o trabalho da segunda parte desta

dissertação.

Porém, tal encargo é demasiado vasto para o trabalho presente. É, pois, necessário delimitar o objecto sob análise. Assim, a interpretação da mecânica quântica da escola de Copenhaga será feita exclusivamente a partir de um conjunto de escritos fundacionais de Niels Bohr, nomeadamente aqueles em que as posições filosóficas de Bohr são apresentadas com maior relevo. Tal análise tem o objectivo de procurar situar essa interpretação à luz dos seus termos fundamentais, isto é, procurando situá-las quanto à questão fundamental da filosofia, nas suas diferentes consequências. A hipótese de que se parte é a de que a interpretação bohriana da mecânica quântica está marcada por um cunho idealista e que os textos de Bohr poderão constituir o lugar por excelência para observar o profundo confronto entre o idealismo e o materialismo na ciência. A problematização da hipótese que orienta esta dissertação assumirá, então, a forma da procura da resposta a uma questão fundamental: “o que há de idealismo na interpretação bohriana da mecânica quântica?”.

Em termos metodológicos, para que o caminho proposto possa ser percorrido é necessário

trazer à luz, de forma mais ou menos sistematizada, um conjunto de aspectos da filosofia materialista dialéctica para que então, munidos destes instrumentos, possamos melhor situar a monumental construção teórica de um dos mais importantes físicos fundadores da mecânica quântica. Materialismo e

Empiriocriticismo constitui, evidentemente, o instrumento principal, mas não será o único.

***

A uma interpretação da mecânica quântica acusada de impor, por princípio, limites ao conhecimento humano, de negar a existência de uma realidade objectiva independente do observador e de ser indeterminista contrapõe-se-lhe, como é conhecido, uma outra interpretação inserida no programa de investigação de Louis de Broglie. Embora a análise desse programa não faça parte dos objectivos desta

1 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982.

2 Utiliza-se, no presente trabalho, a expressão “mecânica quântica” como sinónimo de “física quântica”, sem procurar explorar as diferenças de domínio que entre ambas efectivamente existem as quais, no entanto, para as questões em apreço, podem não ser consideradas.

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dissertação, importa recordar que o programa teórico de Broglie – e mais ainda todos os programas de investigação que nele se inspiram, nomeadamente, o programa desenvolvido pelo par José Croca-Rui Moreira – estão em confronto expresso com as implicações idealistas do programa de Bohr. Eles têm em comum o reconhecimento da complexidade da natureza e a complexidade e historicidade do processo do conhecimento, assumem o objectivo de defender e desenvolver uma ciência assente no reconhecimento da existência de uma realidade objectiva, na causalidade e na rejeição de limites definitivos para o conhecimento da natureza.

Perante este confronto, hoje em desenvolvimento, estudar Materialismo e Empiriocriticismo é da maior utilidade. E por diversas razões: porque a abordagem filosófica das descobertas das ciências da natureza do seu tempo, que Lénine, armado do poderoso método da dialéctica materialista, faz nesta obra e a caracterização que apresenta da crise da física, identificando as suas causas e apontando a saída, têm grande importância para a presente luta contra a mistificação idealista (e, consequentemente, anticientífica) de alguma ciência actual; porque nesta obra são combatidas, na ciência da sua época, as interpretações idealistas das descobertas científicas; porque a aplicação que Lénine faz da dialéctica ao complexo processo do conhecimento humano e ao problema da verdade são um contributo muito importante para pensar as questões do progresso e da inesgotabilidade do conhecimento. Enfim, porque, como dizem os editores russos das Obras Completas de V. I. Lénine, “todo o conteúdo do livro

Materialismo e Empiriocriticismo é uma profunda fundamentação da possibilidade do conhecimento

objectivo das leis da natureza e da sociedade, e está imbuído de confiança no poder e na força da razão humana”3.

***

Engels, no seu Ludwig Feuerbach4 observa que os filósofos se dividem em dois grandes campos

conforme a resposta dada à “grande questão fundamental da filosofia”5: a da relação entre o pensar e o

ser. Ou, de outra forma, a questão de saber “que é o originário, o espírito ou a Natureza?”6.

Na presente dissertação, cujo objectivo é analisar um aspecto do confronto entre estes dois campos, é difícil não começar pela dita questão fundamental da filosofia, muito embora ela esteja amplamente abordada na literatura. Começar por essa questão impõe-se como premissa. Essa tarefa não é de forma alguma desnecessária, tanto mais que nos dias de hoje – e já era assim no tempo de Engels, conforme por ele reconhecido – existe um certa confusão, propositada ou não, entre o que se pretende significar com as palavras materialismo e idealismo. O que essas palavras designam efectivamente são as duas posições relativamente ao primado do ser ou do pensar, da Natureza ou do espírito, da matéria ou da

3 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 6 (Nota dos Editores).

4 Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, in Marx-Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Lisboa-Moscovo, Edições «Avante!»-Edições Progresso, t. III, 1985.

5 idem, ibidem, p. 387. 6 idem, ibidem, p. 388.

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ideia. Como mostra Engels, “aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo –, formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo”7.

As correntes filosóficas apresentam-se sob muitas formas, escolas e matizes. Mas, em última instância, elas partem de (ou chegam a) uma posição – de forma assumida ou não, mais ou menos disfarçada, mais ou menos consistente, e mesmo quando pretendem situar-se acima desta divisão – quanto ao primado do ser ou da consciência. Como diz Lénine, “por detrás do amontoado de novas subtilezas terminológicas, por detrás do lixo de uma escolástica erudita, encontrámos sempre sem excepção duas linhas fundamentais, duas correntes fundamentais na resolução das questões filosóficas”. Quer isto dizer que a oposição entre idealismo e materialismo é incontornável. E o mais grave é querer escamotear essa oposição. “A fonte de milhares e milhares de erros e de confusões neste domínio consiste precisamente em que, por trás da aparência dos termos, das definições, dos subterfúgios escolásticos, dos artifícios verbais, não se vê estas duas tendências fundamentais”8, afirma Lénine. Essas duas tendências atravessam

toda a história do pensamento. Como Lénine diz mais à frente: “A filosofia moderna é tão partidarista coma a de há dois mil anos. Os partidos em luta são na realidade, uma realidade dissimulada com novos rótulos doutorais e charlatanescos ou com um apartidarismo medíocre, o materialismo e o idealismo”9.

“A matéria não é um produto do espírito, mas o espírito é ele próprio apenas o produto supremo da matéria10”. Isto, como diz Engels, é materialismo puro. Ou seja, para os materialistas o mundo

material, sensivelmente perceptível, a que nós pertencemos, é o único mundo real e a nossa consciência e pensamento, por muito supra-sensíveis que pareçam, são um produto de um órgão material, corpóreo: o cérebro. A existência de uma “ideia absoluta”, de “categorias lógicas” anteriores à existência do mundo “não é mais do que um resto fantástico da crença num criador extra-mundano”11.

Mas, se o materialismo filosófico não pode ser confundido com a avareza, cobiça e vida faustosa, nem o idealismo com perseguição de objectivos ideais, crença em ideais éticos, sociais, ou filantropia universal – confusões estas características de uma postura vulgar ou não informada –, também não pode o mesmo materialismo, que é uma visão geral do mundo que repousa sobre uma determinada concepção da relação de matéria e espírito, ser tomado por uma das suas formas particulares, características de um dado estádio do desenvolvimento histórico, nomeadamente do século XVIII12.

Também o materialismo se transforma em articulação com a história dos homens. Assim sendo, não é de estranhar que o materialismo do século XVIII apresentasse limitações específicas como a aplicação

7 idem, ibidem.

8 V.I. Lénine, op. cit., p. 254. 9 idem, ibidem, p. 271. 10 F. Engels, op. cit., p. 391. 11 idem, ibidem.

12 Cf. idem, ibidem.

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exclusiva do padrão da mecânica a processos que são de natureza química e orgânica – e para os quais as leis mecânicas certamente valem, mas são empurradas para um plano recuado por outras leis, superiores – ou como a incapacidade de apreender o mundo como um processo, como uma matéria compreendida numa continuada transformação histórica. Para Engels, esta forma de materialismo encontra a sua justificação na história e no desenvolvimento histórico das ciências da natureza13.

“Tal como o idealismo passou por uma série de estádios de desenvolvimento, também o materialismo [passou]. Com cada descoberta fazendo época mesmo no domínio da ciência da Natureza, ele tem que mudar a sua forma”14. Por exemplo, Marx e Engels consideravam a dialéctica hegeliana a

maior realização da filosofia clássica alemã. E, nesse sentido, eles promoveram o seu desenvolvimento. Em vez de tomarem a dialéctica de Hegel como acabada, eterna, Marx e Engels desenvolveram-na. Nas suas mãos, a dialéctica de Hegel foi resgatada do seu enforme idealista – eliminou-se a inversão de considerar as coisas reais como imagens deste ou daquele estádio do conceito absoluto, voltando a tomar, materialistamente, os conceitos da nossa cabeça como imagens das coisas reais – e desenvolvida e aplicada à concepção materialista da Natureza. Trata-se então de, superando aquele materialismo metafísico característico de uma dada fase de desenvolvimento, passar a apreender o mundo não como um “complexo de coisas prontas, mas como um complexo de processos, onde as coisas, aparentemente estáveis, não passam menos do que as imagens de pensamento delas na nossa cabeça – os conceitos – por uma ininterrupta mudança do devir e do perecer, na qual, em toda a aparente casualidade, e apesar de todo o retrocesso momentâneo, se impõe finalmente um desenvolvimento progressivo”15.

Assim, o materialismo de Lénine, tal como ele o concebe, está já muito longe do materialismo do século XVIII. O materialismo é agora um materialismo dialéctico. Mas nele, como alerta Barata-Moura, a dialéctica não “se pode ver fundada e compreendida num horizonte de exterioridade relativamente ao seu embasamento materialista” ou como algo que apenas “decorre do processo subjectivo em que historicamente o saber consiste”16. A dialéctica é, em primeira instância, objectiva. A dialéctica “é algo

que na própria constatação e análise da dinâmica material das realidades se impõe”17; ela “pulsa no e do

interior da própria materialidade do ser, que integra na unidade determinada e concreta de um mesmo movimento. Neste sentido, funda e profundamente dialéctico, o materialismo – ao arrepio de aquilo que

13 “Isto correspondia ao estado da ciência da Natureza na altura e à maneira metafísica, isto é, antidialéctica do filosofar, com aquele conexa. A Natureza, sabia-se, estava compreendida num movimento eterno. Mas esse movimento, segundo a representação da altura, girava eternamente em círculo e, portanto, nunca se mexia do sítio; produzia sempre de novo os mesmos resultados. [...] A concepção não-histórica da Natureza era, portanto, inevitável” idem, ibidem, p. 392. “A velha metafísica, que tomava as coisas como prontas, surgiu a partir de uma ciência da Natureza que investigava as coisas mortas e vivas como prontas. Porém, quando essa investigação se estendeu tanto que tornou possível um progresso decisivo, a transição para a investigação sistemática das mudanças nestas coisas que se processam na própria Natureza, então, também no domínio filosófico soou o dobre de finados pela velha metafísica. E, de facto, se a ciência da Natureza até ao fim do século passado foi

predominantemente uma ciência colectora, foi uma ciência de coisas prontas, no nosso século, ela é

essencialmente ciência ordenadora, ciência dos processos, da origem e do desenvolvimento dessas coisas e da conexão que liga esses processos naturais num grande todo”. idem, ibidem, p. 407-408.

14 idem, ibidem, p. 392. 15 idem, ibidem, p. 407.

16 José Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica com

Projecto, Lisboa, Editorial “Avante!”, 2010, p. 50.

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com frequência desenvolta lhe é de ordinário assacado – nada tem a ver com um «naturalismo» de raso voo, nem com um «fatalismo» cego desprovido de respiração, nem com um «reducionismo» universal à imediatez rasteira das corporalidades avulsas”18.

***

Em Materialismo e Empiriocriticismo, Lénine desenvolve as teses gnosiológicas fundamentais do materialismo dialéctico. Como escreveram os editores das Obras Completas, o livro de Lénine “dá uma definição de matéria que é a síntese de toda a história da luta do materialismo contra o idealismo e a metafísica e das novas descobertas das ciências da natureza”19. De facto, esta obra de Lénine é um dos

mais relevantes programas da teoria materialista dialéctica do conhecimento. Contra o idealismo subjectivo e o agnosticismo, Lénine desenvolve aí a teoria marxista da cognoscibilidade do mundo, o que o obriga a analisar o complexo processo dialéctico do conhecimento e as suas implicações no problema da verdade. E, com esse movimento, com essa atenção ao destino maior do conhecimento humano, Lénine descobre o significado da prática no processo do conhecimento como critério da verdade. No limite, a prática deve ser o ponto de vista primeiro e o fundamental na teoria do conhecimento. Ponto de vista esse que conduz, necessariamente, ao materialismo.

18 ibidem, p. 54.

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I – Materialismo e Empiriocriticismo

1. A obra no seu contexto histórico

Lénine escreveu Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas sobre uma Filosofia

Reaccionária, em 1908, essencialmente entre os meses de Fevereiro e Outubro, a partir de Genebra e

Londres, durante o exílio. A sua escrita requereu pormenorizados estudos preparatórios, incluindo a frequência prolongada de variadas bibliotecas. São mais de 200 as fontes de filosofia e ciências da natureza citadas ou referidas por Lénine. A obra, que viria a ser publicada em Moscovo, em 1909, pela editora Zveno, deliberadamente adquiriu a forma de livro autónomo cuja publicação envolvia, nas palavras de Lénine, “não só obrigações literárias, mas também sérias obrigações políticas”20.

Na Rússia, vivia-se um clima de terror policial imposto pela autocracia czarista, após a derrota da revolução de 1905-1907. “A justificação ideológica da contra-revolução e o ressurgimento da mística religiosa imprimiram a sua marca na ciência, na literatura e na arte. Na filosofia dominavam as formas mais reaccionárias de idealismo, que negavam ser o desenvolvimento da natureza e da sociedade regido por leis, bem como a possibilidade de conhecer aquelas”21, enquadram os editores. Perante o reforço do

idealismo filosófico e do misticismo como disfarce de um estado de espírito contra-revolucionário – situação assim caracterizada pelo próprio Lénine – a defesa da filosofia marxista impunha-se como tarefa importante e inadiável. A obra surge na sequência da publicação de livros pelos machistas22 russos,

especialmente da colectânea Ensaios sobre a Filosofia do Marxismo que continha artigos de Bazárov, Bogdánov, Lunatchárski, entre outros. Em causa estavam a defesa e o desenvolvimento do materialismo filosófico marxista e da teoria materialista dialéctica do conhecimento contra o idealismo filosófico.

Se, no plano externo, a situação era marcada pelas duras consequências da derrota das movimentações revolucionárias, também no interior do Partido Operário Social-Democrata da Rússia a situação era caracterizada por uma forte tensão e complexidade. Por um lado, Plekhánov, destacado e conhecido filósofo da facção menchevique, defendia intransigentemente, no registo da teoria, os princípios do materialismo dialéctico. Por outro lado, Bogdánov e Lunatchárski que, do ponto de vista da arrumação partidária, pertenciam ao grupo dos bolcheviques, assumiam posições filosóficas cada vez mais vincadamente idealistas, inspiradas nas atitudes onto-epistemológicas de Ernst Mach e Richard Avenarius23. Como Barata-Moura explica, “o momento correspondia, por conseguinte, a uma intricada e

imbricada situação contraditória em desenvolvimento, no âmbito da qual «oportunismo de direita» e «oportunismo de esquerda» nas arenas políticas estavam longe, no entanto, de revelar uma

20 V.I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Notas Críticas Sobre uma Filosofia Reaccionária, Lisboa, Moscovo, Edições Avante-Edições Progresso, 1982, p. 275. (Notas)

21 ibidem, p. 5 (Nota dos Editores).

22 Isto é, partidários da filosofia de Ernst Mach.

23 Cf. José Barata-Moura, Sobre Lénine e a Filosofia, a Reivindicação de uma Ontologia Materialista Dialéctica

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correspondência perfeita e simplificada com a divisão das águas, no que à filosofia diz respeito, entre

materialismo e idealismo. [...] Na realidade polimórfica e lábil do processo que ao tempo estava a

decorrer, a dissensão filosófica e o diferendo na orientação política não coincidiam de todo termo a termo”24. A clarificação dos diferendos em jogo era, também ela, necessária.

2. O empiriocriticismo como o reavivar de concepções idealistas pretensamente novas

Ao escrever Materialismo e Empiriocriticismo, Lénine tinha como objectivo combater tentativas de descaracterização do materialismo dialéctico que estavam a ser feitas por um conjunto de autores que se proclamavam marxistas. Apoiando-se em doutrinas pretensamente modernas, referindo-se à “teoria contemporânea do conhecimento”, à “filosofia moderna”, ao “positivismo moderno” ou à “filosofia das ciências do século XX”, homens como Bazárov, Bogdánov, Iuchkévitch, Valentínov, Tchernov e outros machistas utilizavam diversos subterfúgios para encobrir o que, na verdade, era o seu afastamento face ao materialismo dialéctico. Em alguns casos iam mesmo até ao fideísmo, isto é, à defesa de uma doutrina que coloca a fé no lugar do conhecimento ou que, de uma forma geral, lhe atribui alguma importância.

A expressão, “machistas”, que designa os partidários da filosofia de Ernst Mach, é usada por Lénine em pé de igualdade com a expressão “empiriocriticistas”, corrente filosófica da qual Ernst Mach era o mais popular representante. A utilização desta expressão parece ter sido iniciada por Richard Avenarius e não por Mach. Embora desenvolvidas de forma independente uma da outra, as concepções de Mach e Avenarius apresentam, ao nível da sua fundamentação, substanciais afinidades, aliás reciprocamente reconhecidas25. O aparecimento do empiriocriticismo de Mach e Avenarius decorre do

desenvolvimento do positivismo, corrente que surge no século XIX como reacção ao materialismo e ateísmo francês do século XVIII. O fundador do positivismo, Augusto Comte, identificava o positivismo com o pensamento científico, cuja tarefa fundamental era a descrição positiva dos fenómenos naturais a partir dos dados da experiência. Declarava, assim, “metafísica” qualquer teoria que reconhecesse a existência e a cognoscibilidade da realidade objectiva26.

Em Materialismo e Empiriocriticismo, tratava-se de, por um lado, clarificar o conteúdo daquilo que era apresentado sob a aparência de marxismo e, por outro, desvelar as ligações que estas ideias, apresentadas como novidade, tinham com as concepções idealistas há já muito apresentadas. Como diz Lénine: “os machistas «modernos» não aduziram contra os materialistas nenhum, literalmente nem um único argumento que não existisse no bispo Berkeley”27, filósofo inglês representante do idealismo

subjectivo.

Contra os materialistas, os machistas dizem que aqueles pretendem reconhecer algo que, a seu

24 idem, ibidem, p. 36-37. 25 Cf. idem, ibidem, p. 79.

26 Cf. V.I. Lénine, op. cit., p. 276-277 (Notas). 27 idem, ibidem, p. 29.

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ver, é impensável e incognoscível: as “coisas em si”, a matéria “fora da experiência”, para lá do meu conhecimento dela. Para os machistas, é misticismo admitir que há algo mais que se situe fora dos limites da “experiência” e do conhecimento; que, ao admitir-se a existência de “coisas em si”, isto é, coisas fora da nossa consciência, dá-se origem a uma duplicação do mundo uma vez que, para além dos fenómenos, para além dos dados imediatos dos sentidos, ainda se postula a existência da coisa em si.

Ora, já em 1710, como nota Lénine, o bispo Berkeley, na sua obra Tratado acerca dos Princípios

do Conhecimento Humano, defendera que os objectos do conhecimento humano representam ideias e que

as coisas são unicamente “conjuntos de ideias” ou “combinações de sensações”. Isto é, Berleley havia formulado um idealismo que negava a existência “absoluta” dos objectos, isto é, a existência das coisas fora do conhecimento. Segundo Berkeley, é incompreensível que se fale da existência absoluta das coisas. As coisas só existem se, e enquanto, alguém as percebe. Daqui decorre, então, que a opinião de que as casas, as montanhas, os rios, isto é, todos os objectos sensíveis, têm uma existência real ou natural diferente do facto de serem percebidos pela razão é uma contradição manifesta. Ou seja, para Berkeley, é uma oca abstracção separar a sensação do objecto. “Na verdade, o objecto e a sensação são a mesma coisa e não podem por isso ser abstraídos um do outro”28, diz. Como idealista franco e consequente (tal como

Lénine o caracteriza), o próprio Berkeley traça as linhas das duas concepções filosóficas fundamentais afirmando que a opinião por si refutada reconhece a existência absoluta das coisas sensíveis em si ou fora da mente. Efectivamente, nas palavras de Lénine, “o materialismo é o reconhecimento dos «objectos em si» ou fora da mente; as ideias e as sensações são cópias ou reflexos destes objectos. A doutrina oposta (idealismo): os objectos não existem «fora da mente»; os objectos são «combinações de sensações»”29.

Porém, como Lénine chama a atenção, os machistas apresentam como novidade a opinião de que os conceitos de “matéria” ou “substância” são conceitos “metafísicos”. Mach e Avenarius teriam eliminado, por via do “positivismo moderno” e das “ciências da natureza modernas”, estes “absolutos”, estas “essências imutáveis”, esquecendo ou ignorando que Berkeley, em 1710, tinha já chamado à matéria

nada.

Berkeley havia também sido muito claro quanto às consequências, a seu ver “prejudiciais”, da adopção de uma “absurda” doutrina que põe na sua base a existência de um mundo exterior independente da consciência. Ele havia compreendido bem as implicações políticas do seu idealismo. Havia sido capaz de exprimir correctamente a essência da filosofia idealista e o seu significado social: “todas as construções ímpias do ateísmo e da irreligião foram erigidas sobre a base da doutrina da matéria ou da substância corpórea”30. Como mostra Lénine, recordando aquilo a que Mach chamaria o “princípio da

economia do pensamento”, em 1870, ou que Avenarius designaria por “filosofia como pensamento do mundo segundo o princípio do menor esforço”, em 1876, Berkeley havia já muito claramente afirmado que “a matéria, uma vez expulsa da natureza, leva consigo tantas noções cépticas e ímpias, uma

28 Berkeley cit. por V.I. Lénine, ibidem, p. 19. 29 V. I. Lénine, ibidem, p. 20.

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quantidade tão incrível de de discussões e questões embrulhadas [...]”31. Ou seja, Lénine mostra que a

diferença entre o idealismo de Berkeley e o machismo do seu tempo é mínima. A diferença é meramente retórica. Como diz Lénine, ela reside em que, “no nosso tempo”, diz Lénine, “estas mesmas ideias sobre a eliminação «económica» da «matéria» da filosofia são dissimuladas de uma forma muito mais artificiosa e embrulhada pelo emprego de uma terminologia «nova», para que estas ideias sejam tomadas pelas pessoas ingénuas como filosofia «moderna»!”32.

Porém, Berkeley acabou por sentir necessidade de encobrir a sua “nudez idealista” apresentando-a livre de apresentando-absurdos e apresentando-aceitável papresentando-arapresentando-a o “senso comum”, esforçapresentando-ando-se por papresentando-arecer reapresentando-alistapresentando-a. Assim se compreende que o filósofo inglês Fraser, idealista e partidário do berkelyanismo, chegue a chamar “realismo natural” à doutrina de Berkeley. Serão estes subterfúgios, com o objectivo de fazerem passar tal filosofia por “realismo”, ainda que com outra capa verbal, que serão também encontrados, ainda que com outra capa verbal nos positivistas “modernos”, diz Lénine. Respondendo à acusação de que a sua filosofia suprimia as substâncias corpóreas, Berkeley diz: “Se a substância é tomada no sentido vulgar da palavra, isto é, como uma combinação de qualidades sensíveis, de extensão, de solidez, de peso, etc., não posso ser acusado da sua eliminação. Mas se a palavra substância for tomada no sentido filosófico – como a base de acidentes ou de qualidades (existentes) fora da consciência –, então reconheço realmente que a elimino, se é que se pode falar de eliminação daquilo que nunca existiu, não existiu sequer na imaginação”33. Empurrado pela necessidade de encontrar um critério que distinga o real do fictício ou da

imaginação, Berkeley constrói um critério de realidade com base na diferença entre a clareza das nossas percepções individuais e entre estas e as colectivas. Assim, por um lado, as ideias que a mente humana evoca à sua vontade seriam pálidas e enquanto que as ideias que percebemos por intermédio dos sentidos – impressas em nós segundo certas leis da natureza – seriam mais estáveis e testemunhariam a presença de uma mente mais poderosa e sábia do que a mente humana. Por outro lado, ao ligar o conceito de real à percepção simultânea das mesmas sensações por muitas pessoas, Berkeley está, neste aspecto, a aproximar-se do idealismo objectivo, como esclarece Lénine.

As mesmas subtilezas sucedem-se quando falamos da causa e efeito. Berkeley defende que “a conexão das ideias não supõe a relação de causa e efeito, mas apenas a relação da marca ou signo com a coisa significada de uma maneira ou doutra”. […] “Assim, é evidente que as coisas que, do ponto de vista da categoria de causa que contribui ou concorre para a produção do efeito, são absolutamente inexplicáveis e nos levam a grandes absurdos, podem ser explicadas muito naturalmente...se as considerarmos como marcas ou signos para nossa informação”34.

É com base nestas ideias que Fraser pode afirmar que a teoria favorita de Berkeley era o “simbolismo natural universal” ou “simbolismo da natureza” e é com base nelas que o positivista moderno e realista crítico P. Iuchkévitch vem “descobrir”, no século XX, aquilo que chama

empírio-31 idem cit. por V.I. Lénine, ibidem. 32 V. I. Lénine, ibidem., p. 22.

33 Berkeley cit. por V. I. Lénine, ibidem , p. 22. 34 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem , p. 23.

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simbolismo. De facto, como nota Lénine, também na questão da causalidade, temos diante de nós duas correntes filosóficas distintas. “Uma «pretende explicar as coisas por causas corpóreas»; é claro que ela está ligada à «absurda doutrina da matéria» refutada pelo bispo Berkeley. A outra reduz o «conceito de causa» ao conceito de «marca ou signo», que serve «para nossa informação» (proporcionada por Deus). Voltaremos a encontrar estas duas tendências, em trajes do século XX,” (e do século XXI, poder-se-ia dizer) “quando analisarmos a atitude do machismo e do materialismo dialéctico face a esta questão”35.

***

Entre uns e outros, isto é, entre os idealistas e os materialistas, estão os agnósticos. Também esta corrente de pensamento será encontrada no decurso da análise das posições assumidas pelos machistas. E também a este respeito, a opinião do materialista consequente e do idealista consequente sobre as correntes filosóficas fundamentais coincidem. Como Lénine chama a atenção, o materialista Engels “vê a diferença fundamental entre elas no facto de que para os materialistas a natureza é o primário e o espírito é o secundário, e para os idealistas o inverso” e “coloca entre uns e outros os partidários de Hume e de Kant, que negam a possibilidade de conhecer o mundo ou, pelo menos, de o conhecer completamente, chamando-lhes agnósticos”36. Da mesma forma, o idealista Fraser considera que aqui reside o nó da

questão afirmando que “na opinião dos materialistas, os fenómenos sensíveis são devidos a uma

substância material, ou a alguma desconhecida «terceira natureza»; na opinião de Berkeley, à Vontade

Racional. Já na opinião de Hume e dos positivistas, a sua origem é absolutamente desconhecida, e não podemos senão generalizá-los como factos, pela via indutiva, segundo o costume”37. Para os agnósticos, e

de acordo com Hume – que chama cepticismo à recusa de explicar as sensações pela acção das coisas ou do espírito, à recusa de reduzir as percepções ao mundo exterior, por um lado, à divindade ou a um espírito desconhecido, por outro38 – “a mente nunca tem diante de si senão percepções e de modo nenhum

pode fazer qualquer experiência relativamente à correlação entre as percepções e o objecto” e que “as nossas percepções são os nossos únicos objectos”39.

3. A constituição do saber: a realidade objectiva vs. as sensações como origem do conhecimento científico

De acordo com a teoria do conhecimento empiriocriticista, a tarefa da física é “descobrir as leis da ligação entre as sensações”40 e não entre as coisas ou corpos de que são imagem as nossas sensações.

Para Mach, “as sensações não são «símbolos das coisas». A «coisa» é antes um símbolo mental para um

35 V. I. Lénine, ibidem, p. 24. 36 idem, ibidem, p. 25.

37 Fraser cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 25. 38 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 26.

39 Hume cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 26. 40 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 30.

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complexo de sensações que possui relativa estabilidade. Não são as coisas (os corpos), mas sim as cores, os sons, as pressões, os espaços, os tempos (o que nós chamamos habitualmente sensações), que são os verdadeiros elementos do mundo”41. Para Mach, as coisas ou corpos são, portanto, complexos de

sensações.

Mach contrapõe explicitamente esta sua posição àquela oposta segundo a qual as sensações são “símbolos” das coisas, na linguagem de Mach, ou, o problema de outra forma, segundo a qual as sensações são imagens ou reflexos das coisas: o materialismo filosófico. Para se perscrutar a concepção materialista, o Anti-Dühring de Engels é elucidativo:

“Mas donde toma o pensamento estes princípios?”, diz Engels referindo-se aos princípios básicos de todo o conhecimento. “De si mesmo? Não...O pensamento não pode nunca tirar e deduzir as formas do ser de si mesmo, mas apenas do mundo exterior...Os princípios não são o ponto de partida da investigação, mas o seu resultado final; estes princípios não se aplicam à natureza e à história da humanidade, mas são abstraídos delas; não são a natureza e a humanidade que se conformam com os princípios, mas, pelo contrário, os princípios só são verdadeiros na medida em que correspondem ànatureza e à história”42.

“Partir das coisas para a sensação e o pensamento” é ser-se materialista. O movimento inverso, executado por Mach, é idealista. “Nenhuns subterfúgios, nenhuns sofismas (dos quais encontraremos ainda uma multidão)”, continua Lénine, “eliminarão o facto claro e indiscutível de que a doutrina de E. Mach sobre as coisas como complexos de sensações é idealismo subjectivo, é um simples ruminar do berkeleyanismo. Se os corpos são «complexos de sensações», como diz Mach, ou «combinações de sensações», como dizia Berkeley, daqui decorre necessariamente que todo o mundo é apenas representação minha. Partindo desta premissa, não se pode chegar à existência de outros homens além de si próprio: isto é o mais puro solipsismo”43.

Ao discutir a questão das sensações na matéria orgânica e inorgânica, Mach embrulha-se quando se põe o problema de as sensações se verificarem apenas em determinadas formas da matéria mais desenvolvida. “O materialismo, em pleno acordo com as ciências da natureza, toma a matéria como o dado primário, considerando a consciência, o pensamento, a sensação, como o secundário, porque numa forma claramente expressa, a sensação está ligada somente às formas superiores da matéria”44, diz Lénine.

Contrariamente, Mach defende, nas suas próprias palavras, que “a matéria não é o dado primeiro. Esse dado primário são antes os elementos (que, num certo sentido determinado, se chamam sensações)”45.

Este ponto de vista idealista conduz imediatamente ao absurdo, nota Lénine, “porque, em 1º lugar, a sensação é tomada como primária, apesar de estar relacionada apenas com determinados processos de uma matéria organizada de determinada maneira; e, em 2º lugar, a premissa fundamental de que os corpos são complexos de sensações é violada pela suposição” - feita por Mach – “da existência de outros seres

41 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 30. 42 F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 31. 43 V. I. Lénine, ibidem, p. 31-32.

44 idem, ibidem, p. 34.

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vivos e, em geral, e outros «complexos» além do grande Eu dado”46.

Mach acusava os materialistas, sem os nomear – referindo-se àqueles que subscreviam uma dita “noção física comum, amplamente difundida” partilhando a convicção de que a matéria representa uma realidade imediata –, de não resolverem a questão de saber de onde surge a sensação, querendo ignorar que nenhum outro ponto de vista filosófico resolvera ainda uma questão para cuja solução se não reuniram dados suficientes. Para os materialistas consequentes – ao contrário dos materialistas “vulgares” que “erravam ao acreditar que o cérebro segrega o pensamento do mesmo modo que o fígado segrega a bílis” – , não se trata de deduzir as sensações do movimento da matéria ou em reduzi-la ao movimento da matéria, mas considerar as sensações como uma das propriedades da matéria em movimento. A palavra “elemento” introduzida por Mach com pretensões de novidade e descoberta, “apenas embrulha a questão por meio de um termo que não diz nada e que cria a falsa aparência de uma solução ou de um passo em frente. Esta aparência é falsa, porque de facto falta ainda investigar de que maneira a matéria que pretensamente não tem quaisquer sensações se relaciona com a matéria composta dos mesmos átomos (ou electrões) e que ao mesmo tempo possui a capacidade claramente expressa de sentir. O materialismo coloca claramente a questão ainda não resolvida, e deste modo incita à sua resolução, incita a novas investigações experimentais”47.

Avenarius, outro representante do empiriocriticismo, exprime consciente e claramente o seu idealismo quando, indo por caminhos semelhantes aos de Mach, diz que “só a sensação pode ser concebida como o existente”48 e quando afirma que a “substância é suprimida”. “Assim”, clarifica Lénine,

“a sensação existe sem a «substância», isto é, o pensamento existe sem o cérebro! Será que existem de facto filósofos” – pergunta Lénine – “capazes de defender esta filosofia desmiolada? Existem”49. Do

argumento de Avenarius, contra uma posição materialista, resulta então que, uma vez que não conhecemos ainda todas as condições da ligação por nós observada entre a sensação e a matéria organizada de determinada maneira, devemos admitir apenas a sensação50.

Finalizando a caracterização das premissas idealistas fundamentais do empiriocriticismo, Lénine identifica também em Karl Pearson, P. Duhem e Henri Poincaré ideias semelhantes. Para Poincaré as coisas são “grupos de sensações” e Duhem exprime uma opinião semelhante. Mach e Pearson manifestam a sua concordância mútua. Pearson, para quem “as coisas reais” são “impressões dos sentidos”, declara, à semelhança de outros, metafísico todo o reconhecimento das coisas para além dos limites das impressões dos sentidos. Porém, a este último é alheia a vontade de se disfarçar de materialista – ao contrário dos machistas russos – e considera as suas concepções e as de Mach “idealistas”. A filosofia de Pearson, considera Lénine, distingue-se da de Mach por uma muito maior integridade e consistência.

Concluindo: “para o naturalista não desnorteado pela filosofia professoral, bem como para todo o materialista”, diz Lénine, “a sensação é realmente a ligação directa da consciência com o mundo exterior,

46 V. I. Lénine, ibidem, p. 34. 47 idem, ibidem, p. 35.

48 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 36. 49 V. I. Lénine, ibidem, p. 37.

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é a transformação da energia da excitação exterior em facto da consciência. Cada um já observou esta transformação milhões de vezes e observa-a realmente a cada passo. O sofisma da filosofia idealista consiste em considerar a sensação não como uma ligação da consciência com o mundo exterior, mas como uma divisória, uma parede que separa a consciência do mundo exterior, não como a imagem de um fenómeno exterior correspondente à sensação, mas como a «única coisa existente»”.

4. Tentativas (falhadas) de conciliação do empiriocriticismo com as ciências da natureza e de “tapar buracos do solipsismo”

Os elementos de Mach. Avenarius e as séries dependente e independente

Na Mecânica, Mach afirma: “Todas as ciências da natureza podem apenas representar os complexos daqueles elementos a que chamamos habitualmente sensações”51. A introdução da palavra

“elemento” está incluída numa tentativa de Mach de, depois de reconhecido o carácter idealista das suas concepções iniciais, procurar disfarçar ou corrigir esse mesmo carácter. Lénine procurará demonstrar que a concepção de Mach assente na ideia de “elementos” apenas a torna mais confusa e embrulhada, mas não modifica o seu posicionamento fundamental que é o da defesa do primado da consciência face ao ser.

Para Mach, a ligação entre, digamos, calor e chama pertence à física e a ligação entre o calor e os nervos pertence à fisiologia. Nem uma nem outra destas ligações existe separadamente, ambas existem em conjunto. Só temporariamente podemos abstrair-nos de uma ou de outra, diz. “Aparentemente, mesmo os processos puramente mecânicos são, deste modo, sempre também fisiológicos”. Assim, para Mach, os “complexos [de elementos] normalmente chamados corpos” numa dada dependência funcional são chamados de sensações (quando em ligação com o complexo de elementos a que chamamos o nosso corpo) e noutra dependência funcional são ao mesmo tempo objectos físicos. Com isto, Mach pretende construir uma teoria isenta daquilo que chama “unilateralidade”: “Os elementos são habitualmente chamados sensações. Como sob esta denominação se subentende já uma determinada teoria unilateral, preferimos falar brevemente dos elementos”52.

Mas Lénine contesta:

“Aqui de facto não há unilateralidade, mas há a mais incoerente embrulhada de pontos de vista filosóficos opostos. Se partis apenas das sensações, não corrigis com a palavrinha “elemento” a “unilateralidade” do vosso idealismo, mas embrulhais apenas as coisas, escondei-vos cobardemente da vossa própria teoria. Em palavras eliminais a contradição entre o físico e o psíquico, entre o materialismo (que considera a natureza, a matéria, como primário) e o idealismo (que considera o espírito, a consciência, a sensação, como primário), mas na realidade logo restabeleceis esta contradição, restabelecei-la de maneira sub-reptícia, renunciando à vossa

51 Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 40. 52 idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 41.

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premissa fundamental! Porque, se os elementos são sensações, não tendes o direito de admitir por um só instante sequer a existência de “elementos” independentemente dos meus nervos, da minha consciência. Mas se admitis objectos físicos independentes dos meus nervos, das minhas sensações, que só suscitam a sensação pela sua acção sobre a minha retina, abandonais vergonhosamente o vosso idealismo “unilateral” e passais para o ponto de vista do materialismo “unilateral”. Se a cor é uma sensação só dependente da retina (como as ciências da natureza vos obrigam a admitir), quer dizer que os raios de luz, ao atingirem a retina, produzem a sensação de cor. Quer dizer que fora de nós, independentemente de nós e da nossa consciência, existe movimento da matéria, digamos, ondas de éter de determinado comprimento e determinada velocidade, que, agindo sobre a retina, produzem no homem a sensação desta ou daquela cor. É esta precisamente a maneira de ver das ciências da natureza. Elas explicam as diferentes sensações desta ou daquela cor pelo diferente comprimento das ondas luminosas que existem fora da retina humana, fora do homem e independentemente dele. E isto é materialismo: a matéria, agindo sobre os nossos órgãos dos sentidos, produz a sensação. A sensação depende do cérebro, dos nervos, da retina, etc., isto é, da matéria organizada de determinada maneira. A existência da matéria não depende das sensações. […] Mach e Avenarius introduzem sub-repticiamente o materialismo por meio da palavrinha “elemento”, que pretensamente liberta a sua teoria da “unilateralidade” do idealismo subjectivo, pretensamente permite admitir a independência do psíquico relativamente à retina, aos nervos, etc., admitir a independência do físico relativamente ao organismo humano. De facto, evidentemente, o truque com a palavrinha “elemento” é o mais lastimável dos sofismas, porque o materialista, ao ler Mach e Avenarius, perguntará imediatamente: mas o que são os “elementos”? Seria efectivamente pueril pensar que com a invenção de uma nova palavrinha é possível livrar-se das principais correntes da filosofia. Ou o “elemento” é uma sensação, como dizem todos os empiriocriticistas, Mach, Avenarius, Petzoldt, etc., e então a vossa filosofia, meus senhores, é um idealismo que se esforça em vão por encobrir a nudez do seu solipsismo sob a capa de uma terminologia mais “objectiva”. Ou o “elemento” não é uma sensação, e então a vossa palavrinha “nova” não contém absolutamente nenhum

pensamento, então pavoneai-vos simplesmente sem ter de quê”53.

Petzoldt, empiriocriticista alemão, depois de definir os elementos como sensações, encontrou um problema semelhante ao pressentir que se-lhe evaporava o mundo pelo que precisou de fazer a ressalva de que “na afirmação «as sensações são elementos do mundo» se não devia tomar a palavra «sensação» como designando algo apenas subjectivo e por isso etéreo, que transformasse numa ilusão o quadro habitual do mundo”54. Para Lénine, mais uma vez, encontramo-nos perante um sofisma: não se quer tomar

a sensação pela sensação. A dilatação do sentido desta palavra não muda tão-pouco o facto de que as sensações estão ligadas no homem aos nervos, à retina, ao cérebro, etc.

Também Bogdánov – que afirma que não se reconhece machista em filosofia mas que não deixa de retirar desta corrente o seu erro principal, isto é, “a noção da neutralidade dos elementos da experiência relativamente ao «físico» e ao «psíquico», da dependência destas definições apenas na ligação da

53 V. I. Lénine, ibidem, p. 41-42.

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experiência”55 - defende, com Mach, que “como a filosofia positiva moderna esclareceu, os elementos da

experiência psíquica são idênticos aos elementos de toda a experiência em geral, como são idênticos aos elementos da experiência física”56. Respondendo à negação por Bogdánov de que esta posição possa ser

considerada idealista, Lénine replica que “pode-se e deve-se falar de idealismo quando se reconhece a identidade das sensações e dos “elementos da experiência física” (isto é, o físico, o mundo exterior, a matéria), porque isto não é senão berkeleyanismo”. Não há aqui vestígio nem de filosofia moderna, nem de filosofia positiva […]57.

Uma outra tentativa de introdução sub-reptícia do materialismo no empiriocriticismo traduz-se na doutrina de Avenarius – e acolhida por Bogdánov – das séries dependente e independente da experiência: “Na medida em que os dados da experiência surgem na dependência do estado de um dado

sistema nervoso, formam o mundo psíquico de uma dada personalidade; na medida em que os dados da

experiência são tomados fora desta dependência, temos perante nós o mundo físico. Por isso, Avenarius designa estes dois domínios da experiência como a série dependente e a série independente da experiência”58, diz Bogdánov. Trata-se de uma tentativa arbitrária, ecléctica e ilegítima do ponto de vista

de uma filosofia que diz que os corpos são complexos de sensações e que as sensações são idênticas aos elementos do físico, considera Lénine. É uma tentativa que não liberta esta filosofia das suas premissas idealistas fundamentais.

O eclectismo presente na doutrina do empiriocriticismo é também evidente na última obra de Mach, Conhecimento e Erro, na qual declara simultaneamente que “não há nenhuma dificuldade em construir qualquer elemento físico com sensações, isto é, com elementos psíquicos” e que as dependências fora do limite espacial do nosso corpo são a física no sentido mais amplo e que para que se obtenha estas dependências numa forma pura é necessário excluir tanto quanto possível a influência do observador59. Isto é, primeiro constrói-se os elementos físicos com os psíquicos e depois verifica-se que

os elementos físicos se situam fora dos limites dos elementos psíquicos. Ainda na mesma obra, Mach constata que não existe nenhum gás ideal ou um corpo perfeitamente elástico e que o físico sabe que as “ficções só aproximadamente correspondem aos factos, simplificando-os arbitrariamente; ele conhece esta divergência que não pode ser eliminada”60. Para Lénine, o que isto significa é que aqui Mach

“esquece a sua própria teoria e, começando a falar de diversas questões da física, raciocina com simplicidade, sem floreios idealistas, isto é, de modo materialista. […] A teoria dos físicos revela-se um reflexo dos corpos, dos líquidos, dos gases existentes fora de nós e independentemente de nós, e este reflexo é naturalmente aproximativo, mas é incorrecto chamar «arbitrária» a esta aproximação ou

55 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 43. 56 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 44. 57 V. I. Lénine, ibidem.

58 Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 45. 59 Cf. V. I. Lénine, ibidem, p. 48.

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simplificação. Na realidade, a sensação é aqui considerada por Mach precisamente como a consideram todas as ciências da natureza não «depuradas» pelos discípulos de Berkeley e de Hume, isto é, como uma

imagem do mundo exterior. A teoria própria de Mach é o idealismo subjectivo, mas quando é necessário

um elemento de objectividade, Mach introduz sem cerimónias nos seus raciocínios premissas da teoria do conhecimento contrária, isto é, materialista”61. Nestes seus raciocínios fragmentários, Mach posiciona-se

do ponto de vista do “realismo ingénuo”, isto é, a teoria materialista do conhecimento inconsciente e espontaneamente tomada dos naturalistas.

De facto, da mesma forma que o idealismo inicial de Mach e Avenarius é geralmente reconhecido na literatura filosófica, também é geralmente reconhecido que o empiriocriticismo se esforçou posteriormente por se virar para o materialismo. Tal é reconhecido pelo escritor francês Cauwelaert “que vê nos Prolegómenos de Avenarius um «idealismo monista», na Crítica da Experiência

Pura (1888-1890) «realismo absoluto»” (realismo aqui está a significar em oposição a idealismo), “e na Concepção Humana do Mundo (1891) uma tentativa de explicar esta mudança”62. Cauwelaert tem em

vista o facto de que, na primeira obra, Avenarius toma a sensação como a única coisa existente e elimina a substância segundo o “princípio da economia do pensamento” e que, na segunda obra, o físico é tomado como a série independente e o psíquico e, consequentemente, as sensações como a série dependente. Também Rudolf Willy, discípulo de Avenarius, reconhece que este era integralmente idealista em 1876 e que posteriormente reconciliou com esta doutrina aquilo que chama “realismo ingénuo”. Oskar Ewald, por seu turno, considera que a doutrina de Avenarius combina em si aspectos contraditórios idealistas e “realistas” (deveria dizer-se materialistas). W. Wundt, que à semelhança destes autores, se situa num ponto de vista idealista, considera uns aspectos do empiriocriticismo como materialismo e outros como idealismo e a ligação entre eles artificial. (Não foi sem manifestações de repúdio por parte dos defensores mais ortodoxos de Avenarius que estas acusações de materialismo feitas por Wundt foram recebidas: a acusação de materialismo a um professor alemão era infame). Portanto, a admissão de uma série independente por Avenarius, e também por Mach noutras palavras é, segundo a opinião geral de vários filósofos de diferentes tendências em filosofia, tomada do materialismo. Porém, diz Lénine, “se partis de que tudo quanto existe é sensação ou de que os corpos são complexos de sensações, não podeis, sem destruir todas as vossas premissas fundamentais, toda a «vossa» filosofia, chegar à conclusão de que o

físico existe independentemente da nossa consciência e de que a sensação é uma função da matéria

organizada de determinada maneira. Mach e Avenarius reúnem na sua filosofia as premissas idealistas fundamentais e certas conclusões materialistas precisamente porque a sua teoria é um exemplo das «eclécticas sopas dos pobres» de que falava Engels com merecido desprezo”63.

61 idem, ibidem, p. 48-49. 62 idem, ibidem, p. 45. 63 idem, ibidem, p. 47-48.

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Avenarius e a coordenação de princípio

Uma outra tentativa, com contornos semelhantes aos das precedentes, para procurar conciliar o empiriocriticismo com aquilo que chamam “realismo ingénuo” é consumada na doutrina da “coordenação de princípio” de Avenarius, exposta em O Conceito Humano do Mundo e nas Notas. Com esta doutrina, pretende Avenarius, com quem Mach se solidariza nesta pretensão, reconhecer e defender o valor “da concepção comum, não filosófica, ingénua, de todas as pessoas que não se põem a pensar se elas próprias existem e se o meio, o mundo exterior, existe”, nas palavras de Lénine.

Esta pretensa defesa do “realismo ingénuo” assenta na tese da “indissolúvel coordenação” do “nosso Eu e do meio”, nas palavras de Avenarius. “Exprimindo-nos filosoficamente” – continua Avenarius – “pode dizer-se: o Eu e o Não-eu”. “Encontramo-los sempre juntos”. “Nenhuma descrição completa do que é dado (ou encontrado por nós) pode conter o meio sem um Eu do qual esse meio seja o meio, pelo menos sem o Eu que descreve o encontrado. O Eu é chamado termo central da coordenação, e o meio contratermo”64.

Acontece que, tal como é demonstrado por Lénine, esta coordenação de princípio, esta coordenação indissolúvel entre o meio e o Eu, contém exactamente a mesma essência dos argumentos apresentados pelos representantes do idealismo subjectivo. Tal fica evidente pela leitura de um diálogo numa obra de Fichte de 1801, representante clássico desta corrente filosófica, que Lénine transcreve, no qual o autor, pela boca do “Filósofo”, aconselha o “Leitor” a não sair de si mesmo, a não abarcar mais do que pode abarcar, a saber: a consciência e a coisa, a coisa e a consciência, ou, mais exactamente, nem uma coisa nem outra separadamente65. “Na doutrina de Mach e Avenarius”, nota Lénine, “não há nada

além de uma paráfrase do idealismo subjectivo. As suas pretensões a terem-se elevado acima do materialismo e do idealismo, a terem eliminado a contradição entre o ponto de vista que vai da coisa para a consciência e o ponto de vista contrário, são uma vã pretensão de um fichteísmo renovado. […] Por outras palavras, repete-se o argumento de Berkeley: eu só sinto as minhas sensações, não tenho o direito de supor a existência dos «objectos em si» fora da minha sensação”66. Assumindo diferentes formas, a

tese fundamental é a mesma.

E Lénine acrescenta que a referência ao “realismo ingénuo” pretensamente defendido por esta doutrina não passa de um “sofisma do tipo mais barato”. “O «realismo ingénuo» de todo o homem são que não esteve no manicómio nem foi aluno dos filósofos idealistas, consiste em admitir que as coisas, o meio, o mundo, existem independentemente da nossa sensação, da nossa consciência, do nosso Eu e do homem em geral. […] A convicção «ingénua» da humanidade é conscientemente colocada pelo materialismo na base da sua teoria do conhecimento”67.

A opinião de que a coordenação de princípio de Avenarius se trata de idealismo subjectivo é

64 Avenarius cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 51. 65 Cf. V. I. Lénine, ibidem.

66 idem, ibidem, p. 52. 67 idem, ibidem.

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partilhada não só por Lénine, como o próprio faz notar, mas também por vários autores de campos bem distintos do materialismo, quer se tratem de partidários daquela filosofia (cujos termos dos elogios acabam por clarificar o verdadeiro conteúdo destas posições), quer se encontrem em oposição a ela. Referindo apenas dois dos casos apontados por Lénine, veja-se Wundt para quem esta teoria de Avenarius é uma “falsa confusão do conteúdo da experiência real com o raciocínio acerca dela”68. Para Norman

Smith, recordando que “Avenarius argumenta que o pensamento é uma forma da experiência tão verdadeira como a percepção sensorial, voltando assim ao velho argumento já caduco do idealismo subjectivo, a saber que o pensamento e a realidade são inseparáveis, porque a realidade só pode ser percebida pelo pensamento e o pensamento supõe a existência daquele que pensa”, considera que “não é um restabelecimento original e profundo do realismo, mas simplesmente o restabelecimento do idealismo subjectivo na sua forma mais crua, o resultado final das especulações positivas de Avenarius”69.

“A natureza existia antes do homem?”

A questão de saber se a natureza existia antes do homem é, como põe Lénine, “particularmente venenosa para a filosofia de Mach e Avenarius”70. A contradição específica presente aqui consiste em que,

enquanto as ciências da natureza afirmam que a terra existia antes do homem, que houve um momento em que não existia matéria dotada de sensibilidade, o empiriocriticismo supõe necessariamente (e na base da sua filosofia) a existência de um ser sensível para o qual as coisas sejam complexos de sensações e sem o qual as coisas não são (Mach) ou de um Eu em ligação indissolúvel com o meio (Avenarius). Como diz Lénine: “As ciências da natureza afirmam positivamente que a terra existiu num estado em que nem o homem nem nenhum ser vivo em geral nela existia ou podia existir. A matéria orgânica é um fenómeno posterior, fruto de um prolongado desenvolvimento. Quer dizer que não havia matéria dotada de sensibilidade, não havia nenhuns «complexos de sensações», nenhum Eu que estivesse «indissoluvelmente» ligado ao meio, segundo a doutrina de Avenarius. A matéria é o primário, o pensamento, a consciência, a sensação, são produto de um desenvolvimento muito elevado. Tal é a teoria materialista do conhecimento, espontaneamente adoptada pelas ciências da natureza”71.

É claro, comenta Lénine, que os empiriocriticistas notaram esta dificuldade e procuraram ultrapassá-la: “notaram e colocaram abertamente a questão de saber por meio de que raciocínios se deve eliminar esta contradição”72. Avenarius tenta eliminar esta contradição com as ciências da natureza, diz

Lénine, através da introdução da teoria do termo central “potencial” da coordenação, que consiste, recordemos, na ligação indissolúvel entre o Eu e o meio. Assim, para, digamos, responder à questão, relativa ao desenvolvimento do homem, de saber se existe um contratermo (meio) se o termo central é um

68 Wundt cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 53. 69 Norman Smith cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 54. 70 V. I. Lénine, ibidem, p. 56.

71 idem, ibidem, p. 56-57. 72 idem, ibidem, p. 57.

Referências

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