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Também na questão do espaço e do tempo as duas linhas filosóficas fundamentais divergem de forma radical.

Para os materialistas, o tempo e o espaço têm uma existência objectiva, o que não podia deixar de ser quando se parte do reconhecimento da existência da realidade objectiva, isto é, da matéria em movimento independentemente da nossa consciência, como Lénine faz notar218. “Assim como as coisas

ou corpos não são simples fenómenos, não são complexos de sensações mas realidades objectivas que actuam sobre os nossos sentidos, também o espaço e o tempo não são simples formas dos fenómenos, mas formas objectivamente reais do ser. No mundo não há senão matéria em movimento, e a matéria em

213E. Lucka cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.126. 214V. I. Lénine, ibidem.

215P. Iuchkévitch cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.127. 216A. Bogdánov cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.128. 217V. I. Lénine, ibidem.

movimento não pode mover-se senão no espaço e no tempo”219. Assim sintetiza Lénine a posição

materialista acerca do espaço e do tempo. Nas palavras de Engels, “um ser fora do tempo é tão absurdo tão grande como um ser fora do espaço”220.

Quando se fala do reconhecimento da existência objectiva do espaço e do tempo – como Lénine e Engels sublinham a propósito dessa confusão recorrente da parte de alguns filósofos – não se trata dos nossos conceitos de espaço e de tempo cuja modificação constante é utilizada como tentativa de refutação da sua existência objectiva. A isto Lénine responde: “As noções humanas do espaço e do tempo são relativas, mas destas noções relativas forma-se a verdade absoluta, estas noções relativas tendem, no seu desenvolvimento, para a verdade absoluta e aproximam-se dela. A mutabilidade das noções humanas do espaço e do tempo não refuta mais a realidade objectiva de um e de outro do que a mutabilidade dos conhecimentos científicos sobre a estrutura e as formas de movimento da matéria refuta a realidade objectiva do mundo exterior”221. Ou, como põe um pouco mais à frente, “uma coisa é saber como

precisamente, através dos diferentes órgãos dos sentidos, o homem percebe o espaço e como, no decorrer de um longo desenvolvimento histórico, se formam, a partir destas percepções, os conceitos abstractos de espaço; e outra coisa completamente diferente é saber se a estas percepções e a estes conceitos da humanidade corresponde uma realidade objectiva, independente da humanidade”222. Lénine afirma que a

única posição filosófica compatível com a negação de todo o idealismo e fideísmo é a admissão resoluta e definida de que os nossos conceitos em desenvolvimento de tempo e de espaço reflectem o tempo e o espaço objectivamente reais e que se aproximam da verdade objectiva223, pois “se o tempo e o espaço são apenas conceitos, a humanidade, que os criou, tem o direito de sair dos seus limites [...]”224.

Portanto, o problema gnosiológico fundamental que divide as correntes filosóficas verdadeiramente fundamentais, como coloca Lénine, consiste em saber se o espaço e o tempo são reais ou ideais, consiste em saber se as nossas noções relativas do espaço e do tempo são aproximações das formas objectivamente reais do ser ou se serão apenas produtos do pensamento humano225.

Contrariamente ao materialismo, para o positivismo moderno de Mach, “o espaço e o tempo são sistemas ordenados (ou harmonizados, wholgeordnete) de séries de sensações”226. Isto é, nas palavras de

Lénine, um claro absurdo idealista que decorre inevitavelmente da doutrina segundo a qual os corpos são complexos de sensações pois, para Mach, não é o homem que existe no espaço e no tempo, mas estes que existem no homem, dependem do homem e são por ele gerados. É certo que Mach faz um conjunto de ressalvas, nota Lénine, alegando que tempo e espaço têm origem na experiência (procurando opor-se a Kant). Porém, se para Mach a experiência não reflecte a realidade objectiva existente fora de nós (como vimos atrás), então ele não pode nunca ultrapassar o ponto de vista idealista em que assenta a sua

219idem, ibidem, p.133.

220F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.134. 221V. I. Lénine, ibidem, p.133.

222idem, ibidem, p.141. 223Cf. idem, ibidem, p.134. 224idem, ibidem.

225Cf. idem, ibidem, p.133.

doutrina. As objecções feitas por Mach a Kant, diz Lénine, não destroem o agnosticismo nem de Kant, nem de Mach. De acordo com Lénine, Mach “constrói a teoria gnosiológica do tempo e do espaço sobre o princípio do relativismo” […] e “esta construção, no fundo, não pode conduzir senão ao idealismo subjectivo”227.

Mach, misturando uma e outra solução da questão gnosiológica fundamental a este respeito, e analisando os conceitos de espaço e tempo em vários planos, afirma que, no aspecto fisiológico, estes conceitos são sensações de orientação que determinam o desencadeamento das reacções de adaptação biologicamente úteis228. Mas se assim é, repara Lénine, é exclusivamente na condição de estas sensações

de espaço e de tempo reflectirem a realidade objectiva fora do homem.

A concepção de Mach sobre o espaço e o tempo é idealista e abre as portas ao fideísmo, afirma Lénine. E dá um exemplo: Mach escreveu que “não é obrigatório conceber os elementos químicos num espaço de três dimensões”. Fazê-lo é “impor-se uma restrição desnecessária. Não há qualquer necessidade de pensar as coisas puramente mentais espacialmente […]”229. Este argumento é perfeitamente

indiscutível do ponto de vista do machismo franco, analisa Lénine: “se […] os elementos químicos não podem ser percebidos pelos sentidos quer dizer que são «coisas puramente mentais». E se assim é e se o espaço e o tempo não têm um significado objectivamente real, é claro que não é de modo nenhum obrigatório conceber os átomos espacialmente! Que a física e a química «se limitem» a um espaço de três dimensões em que se move a matéria; no entanto, para explicar a electricidade pode procurar-se os seus elementos num espaço que não tenha três dimensões!”230. Lénine mostra, através do posicionamento dos

próprios autores, como esta concepção de tempo e espaço “é uma passagem do campo das ciências da natureza para o campo do fideísmo”231. Veja-se Anton Von Leclair, defensor inequívoco do fideísmo, que

proclamou Mach, por afirmações como aquela supracitada, como um grande filósofo, “um revolucionário no melhor sentido da palavra”232, denuncia Lénine. Contrariamente a esta posição, as ciências da natureza

procuram e encontram – “pelo menos procuram tacteando” –, diz Lénine, o átomo da electricidade, o electrão, num espaço de três dimensões. “As ciências da natureza não duvidam de que a substância que estudam não existe senão num espaço de três dimensões e que, consequentemente, também as partículas desta substância, ainda que sejam tão pequenas que não as possamos ver, existem «necessariamente» no mesmo espaço de três dimensões”233.

Mach, repara Lénine, faz uma “defesa perfeitamente justa” dos matemáticos que estudam os espaços imagináveis de n dimensões das acusações de estes retirarem conclusões monstruosas das suas investigações. Mach reconhece, diz Lénine, que a matemática moderna colocou a questão importantíssima e utilíssima do espaço de n dimensões como um espaço imaginável, mas só o espaço de

227V. I. Lénine, ibidem.

228Cf. E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem. 229idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p 136. 230V. I. Lénine, ibidem.

231idem, ibidem, p.137.

232A. Leclair cit. por V. I. Lénine, ibidem. 233V. I. Lénine, ibidem.

três dimensões permanece como “caso real”234. Portanto, teria sido em vão que muitos teólogos, que

quiseram tirar proveito da quarta dimensão, “experimentaram dificuldades no sentido de saber onde colocar o inferno”235, diz Mach. Porém, a posição gnosiológica que Mach adopta nesta defesa dos

matemáticos e a pretensa demarcação dos teólogos e espiritualistas que faz ao afirmar que só o espaço de três dimensões é real não se coaduna com o seu não reconhecimento do espaço e do tempo como uma realidade objectiva.

Lénine conclui que Mach emprega “o método de tacitamente tomar ideias de empréstimo ao materialismo quando é preciso afastar-se dos espiritistas. Porque os materialistas, reconhecendo o mundo real, a matéria que percebemos, como a realidade objectiva, têm o direito de concluir daí que quaisquer fantasias humanas, quaisquer que sejam os seus fins, que saem dos limites do tempo e do espaço são

irreais. Mas vós, senhores machistas”, continua Lénine, “negais a existência objectiva à «realidade» ao

lutar contra o materialismo, e tornais a introduzi-la em segredo quando é preciso combater o idealismo consequente, resoluto até ao fim e aberto! Se no conceito relativo de tempo e de espaço não há nada além de relatividade, se não existe nenhuma realidade objectiva ( = não dependente do homem nem da humanidade) reflectida por estes conceitos relativos, por que é que a maior parte da humanidade não terá o direito de conceber seres fora do tempo e do espaço? Se Mach tem o direito de procurar os átomos da electricidade ou os átomos em geral fora do espaço de três dimensões, por que não terá a maior parte da humanidade o direito de procurar os átomos ou os fundamentos da moral fora do espaço de três dimensões?”236, pergunta Lénine.

Lénine analisa não só as posições de Mach nesta questão do espaço e do tempo, mas também dos representantes franceses e ingleses do empiriocriticismo que são, considera, menos pretensiosos do que os representantes alemães.

Poincaré, concordantemente com as suas posições que analisámos atrás, considera que os conceitos de espaço e de tempo são relativos e que, por conseguinte, “não é a natureza que no-los dá (ou impõe, impose)”, “somos nós que os damos à natureza, porque os achamos cómodos”237. Lénine

questiona: “acaso isto não justifica o entusiasmo dos kantianos alemães?”

Karl Pearson, por seu turno, põe a sua opinião de forma plenamente definida. Segundo ele, “não podemos afirmar que o espaço e o tempo têm existência real; eles não se encontram nas coisas, mas na nossa maneira de perceber as coisas”238. Para Pearson, o tempo, tal como o espaço, é um dos modos pelos

quais a faculdade cognitiva humana põe em ordem o seu material239. Isto, considera Lénine, é idealismo

franco e declarado. Pearson, com quem Mach frequentemente exprime o seu acordo, relembra Lénine, nomeia sem quaisquer rodeios os clássicos dos quais retira a sua linha filosófica: Hume e Kant.

234Cf. E. Mach cit. por V. I. Lenine, ibidem. 235Cf. idem cit. por V. I. Lenine, ibidem. 236V. I. Lénine, ibidem, p.138.

237H. Poincaré cit. por V. I. Lénine, ibidem. 238K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.139. 239Cf. K. Pearson cit. por V. I. Lénine, ibidem, p.138.

Bogdánov escreveu que o tempo, tal como o espaço, “é uma forma de coordenação social da experiência de diferentes pessoas” e que a sua “objectividade” reside no seu “significado universal”240.

Absolutamente falso, diz Lénine. “Também a religião, que exprime uma coordenação social da experiência da maior parte da humanidade, tem um significado universal. Mas à doutrina da religião, por exemplo, sobre o passado da Terra e sobre a criação do mundo, não corresponde nenhuma realidade objectiva. À doutrina da ciência segundo a qual a Terra existiu antes de qualquer sociedade, antes da humanidade, antes da matéria orgânica, existiu durante um determinado tempo, num espaço determinado em relação aos outros planetas – a esta doutrina (embora ela seja tão relativa em cada fase do desenvolvimento da ciência como é relativo cada estádio do desenvolvimento da religião) corresponde uma realidade objectiva”241.

Só os machistas russos, que se pretendem marxistas – ao contrário dos próprios machistas, dos seus adversários no campo dos naturalistas e ao contrário dos filósofos profissionais –, não notaram, sem sombra de dúvida, o carácter idealista da doutrina de Mach do tempo e do espaço, conclui Lénine.