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Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

VT PICTVRA POESIS

Dom Quixote e Dalí

Autor: Ana Beatriz de Araujo Linardi Orientador: Prof. Dr. Joaquim Brasil Fontes

Tese apresentada à Faculdade de Educação da UNICAMP, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação na área de concentração “Educação, conhecimento, linguagem e arte”

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AGRADECIMENTOS

Dirk Armstrong curador assistente do Salvador Dalí Museum

St. Petersburgo – Flórida

Cristina Jutge Centre d’Estudis Dalinians Fundació Gala-Salvador Dalí

Figueras – Espanha

Rodrigo Petrônio

Beatriz Karan

Pedro Henrique Mendes Amparo

Fred Ernst

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Aos Carrasco:

Walcyr, Ney, Lucas, Alice e Sansón Bacharel.

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RESUMO

Este trabalho procura analisar as imagens que o pintor espanhol Salvador Dalí realizou para a obra de Cervantes, Dom Quixote. O resultado é um livro ilustrado marcado por uma singularidade: desde sua primeira edição, em 1945, novas imagens foram incorporadas com concessão de total liberdade aos editores para distribuí-las nos volumes, de forma que cada edição, até o presente, resulta diferente da outra. Com essa proposta artística diferenciada, Dalí subverte o instituído em relação aos processos tradicionais de ilustração de livros. Sua relação com a obra literária pode ser compreendida num universo mais amplo, a doutrina ut pictura poesis – conhecida como a teoria humanística da pintura, que aborda as relações entre poesia e pintura, questão que desde a antiguidade preocupa filósofos e teóricos da arte. Ao subverter as relações de organicidade entre imagem e texto, Dalí traz à tona a ambigüidade da tópica renascentista e possibilita ao leitor o confronto com a multiplicidade de significados de ambas as linguagens.

ABSTRACT

The present study try to analyse the images that the Spanish painter Salvador Dali accomplished to the Cervantes masterpiece, D. Quixote. The result is an illustrated book marked by one singularity: since its first edition, in 1945, new images were incorporated, allowing the editors total freedom to arrange them through the following publications, in a way that each edition, so far, is different from the previous one. With this singular artistic proposition, Dali subverts the conventions concerning the traditional process of book illustration. His approach to the literary production can be understood in a wider universe. This universe – the ut pictura poesis doctrine – is known as the humanistic theory of painting, comprehending the relations between poetry and painting, which, since the ancient times has been a concern of philosophers and art thinkers.

By subverting the formal relations between image and text, Dali uncovers the ambiguity of renascence topic and allows the reader to compare the multiplicity of meanings of both languages.

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Sumário

VT PICTVRA POESIS

Revendo a tópica, 2 O Livro Ilustrado, 22

O Livro Ilustrado no Surrealismo, 38

DOM QUIXOTE

Dom Quixote ilustrado, 43

Dom Quixote de Doré: a tradição da ilustração, 57

DOM QUIXOTE E DALÍ

O Contexto, 92 A Proposta, 98 O Subjétil, 112

RELAÇÃO TEXTO/IMAGEM:

PARA ALÉM DOS PARADIGMAS

, 157

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Revendo a tópica

“Poesia é como pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada em plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre”

Horacio – Ars Poética1

Poesia e Pintura: quando esses dois sistemas de signos e ou formas expressivas são colocados lado a lado, existe um jogo de atrações que os aproximam um do outro. Essa atração se constata com maior ou menor vigor em diferentes períodos ao longo da história da literatura e da arte pictórica.

A inter-relação entre essas duas artes foi colocada em pauta com especial evidência no Renascimento, revitalizando uma série de comparações elaboradas na Antiguidade. O resgate desses princípios teve como resultado a noção de que a boa poesia, assim como a boa pintura fossem irmanadas, baseando-se na imitação ideal da ação humana. Tal noção influenciou, particularmente, o pensamento artístico no período que vai do século XV ao século XVIII. Essas postulações teóricas foram formuladas basicamente a partir de dois tratados, tomados pelos teóricos renascentistas como ponto de partida das teorias sobre as artes irmãs: A Poética de Aristóteles e a Arte Poética, ou Carta aos Pisões, de Horacio.

Se a comparação do discurso deliberativo com a pintura cênica2, evocada por Aristóteles em seu tratado, forneceu um indicativo aos teóricos, que apontavam para a aproximação entre as duas artes, foi em Horácio que essa relação se consolidou. A famosa passagem que contém o símile ut pictura poesis – a poesia assim como a pintura

1 Horacio. Arte Poética, em A Poética Clássica. (tradução: Jaime Bruna). São Paulo: Cultrix, 1997. p.65 2

“O estilo que convém nas assembléias do povo assemelha-se, (...) ao desenho em perspectiva; quanto mais numerosa é a multidão dos espectadores, mais afastado deve ser o ponto de onde se olha. Pelo que, a exatidão dos pormenores é supérflua e causa mau efeito tanto no desenho quanto no discurso.” Ret. 3, 12. Aristóteles, Arte Retórica e Arte Poética., (trad. Antonio Pinto de Carvalho). São Paulo: Ediouro.

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– foi interpretada como um preceito, estabelecendo o caminho por onde, durante séculos as relações foram aproximadas na representação de imagens de modo ideal. Reforçada pelo testemunho de Plutarco do comentário de Simonide de Cós, segundo o qual “a pintura é poesia muda e a poesia pintura falante” – essa tópica gerou relações de similaridade que vão muito além do que o próprio Horacio indicava em seu tratado. Na Arte Poética a comparação se refere ao fato de que, como certas pinturas, alguns poemas agradam uma única vez, ao passo que outros resistem a um exame minucioso. A comparação se volta exatamente à poesia, herdeira de uma tradição literária consolidada por esse símile: é a poesia quem está em evidência. No entanto, vale ressaltar que as artes visuais tiveram seu auge no período de Augusto, e uma profunda helenização e politização da linguagem iconográfica – o elogio e o culto ao imperador e a noção de pertencer a um estado de bem-estar e classicismo- deu, nessa época um significado especial à comparação entre as artes.

Foi a partir do comentário de Simonide que a equiparação entre as duas artes foi assumida como evidente, embora ele não tenha estabelecido, junto com o comentário, fundamentos teóricos para tais. Horacio é o herdeiro de um legado cultural que passa por Simonide e Platão.

Foi Platão quem primeiro estabeleceu os fundamentos. No livro X da Republica3, apresentou a contraposição, estabelecendo três níveis onde se assentam o ponto de contato entre as duas artes: o nível da essência própria da atividade que é a imitação (mímesis); o nível dos conhecimentos do artífice; e o nível dos efeitos produzidos no espectador. O propósito da comparação era demonstrar que ambos são nocivos. Para Platão, a consideração dos poetas como sábios e dos poemas como fonte de conhecimento real do mundo, nem que seja o das aparências, é nefasto. O engano na poesia é elevado a um nível muito superior ao da pintura, e aí estaria o principal dano das duas atividades: pretender mostrar aparências, ou pior, as próprias Idéias, quando na verdade apenas apresentam imagens das aparências4. Platão critica a poesia através da

3 Platão A República. (trad. de J. Guinsburg).São Paulo: Difusão Européia, 1973

4 “- Assim, pois, estabeleceremos como princípio que todos os poetas, a começar por Homero, são simples

imitadores das aparências da virtude e dos outros temas que tratam, mas que, quanto à verdade, não chegam a atingi-la: semelhantes, nisso, ao pintor de quem falamos há pouco, o qual desenhara uma aparência de sapateiro, sem nada entender de sapataria, para pessoas que, não entendendo mais do que ele, julgam as coisas segundo a cor e o desenho?” 600e-601c Livro X . Platão, op.cit.

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pintura, para ele, pura técnica decorativa desprovida de poder paidêutico5. Mesmo em detrimento às duas artes, principalmente as artes visuais, a comparação foi estabelecida6.

Horacio não pretende rebaixar a atividade poética. Ele estabelece dois pontos que permitem a comparação, que estão implícitos no texto: a falta de utilidade e a técnica do engano. A primeira eleva a poesia acima de outras práticas e exclui na comparação as outras atividades como a escultura, a arquitetura e a olaria. Seu argumento repousa sobre o fato de que, para tudo aquilo de que se pode prescindir, não é admitida a mediocridade. O segundo ponto se refere à ilusão de se fazer acreditar em coisas que não existem, característica compartilhada pela pintura e pela poesia. Na pintura até os animais são enganados7, enquanto que na poesia somente os mais inteligentes são capazes de submergir na fantasia poética, idéias que vinham de Simonide e Górgias, conforme testemunha Plutarco:

“Pois seu caráter enganador [da poesia] não atinge os totalmente néscios nem os desajuizados. É por isso que Simonides, a um que lhe perguntava ‘por que são os Tessálios os únicos a quem tu não enganas?, respondeu: porque são demasiados estúpidos para serem por mim enganados’ – E Górgias chamou à tragédia um engano, onde o que se engana é o mais decente do que o que não engana e o engano do mais sábio do que o que não é enganado.8”

Referindo-se ao engano, Horacio atribui à pintura duas possibilidades: a que só pode ser contemplada uma vez e a que não teme o exame agudo do crítico. Para a poesia, no entanto, apenas existe a que pode ser examinada vezes sem conta. Essa tradição,

5 Paidéia, termo bastante amplo que designa a formação do homem grego. A obra referencial para esse

estudo é Jaeger, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 2003

6 “Podemos, pois, com justiça censurá-lo [o poeta] e considerá-lo como o par do pintor; assemelha-se-lhe,

por produzir apenas obras sem valor do ponto de vista da verdade, e assemelha-se-lhe ainda, por ter comércio com o elemento inferior da alma, e não com o melhor. Assim, eis-nos bem fundamentados para não recebê-lo em um Estado que deve ser regido por leis sábias, já que acorda, nutre e fortalece o mau elemento da alma, e arruína, destarte, o elemento razoável, como acontece numa cidade que é entregue aos malvados, ao se lhes permitir que fiquem fortes e ao fazer que pereçam os homens mais estimáveis; do mesmo modo, o poeta imitador, diremos que introduz mau governo na alma de cada indivíduo, lisonjeando o que há nela de irrazoável, que é incapaz de distinguir o maior do menos, que, ao contrário, encara os mesmos objetos, ora como grandes ora como pequenos, que produz apenas fantasmas, e está a uma infinita distância do verdadeiro”. 605 a-e, Livro X, Platão, op. Cit.

7 Fazemos referência aqui ao lendário comentário da pintura de Zêuxis, que, segundo relatos retratavam

uvas tão perfeitas que os pássaros vinham para bicá-las. Os animais, na verdade não são enganados pela pintura. Para entender tanto a pintura quanto a poesia, deve-se ter a percepção do simbólico, e essa capacidade, só os humanos a tem. A arte é sempre uma enganação, pois trabalha no domínio do fingimento. Isso é especialmente evidente no ator da Commedia dell’Arte. Nela, a máscara de todo ator é claramente explicitada. A arte dramática explicita melhor essa condição de enganador do artista. No entanto, parece haver, na Antiguidade uma certa preocupação com esse fingimento, essa mentira.

8 De aud. Poet., 15.3-4. apud Mora, Carlos de Miguel. “Os limites de uma comparação: ut pictura poesis”,

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recuperada pelo Renascimento, sofre uma inversão, a serviço da valorização crescente da pintura, que será atada definitivamente aos fundamentos da poética e da retórica.

***

Essa analogia tomou feições variadas tanto sob o ponto de vista teórico, como artístico, ao longo de toda a história moderna da literatura e da arte. Foi polemizada nos séculos XVI, XVII e XVIII, manteve-se em aparente trégua no século XIX e foi retomada com intensidade no século XX.

“Coube à Renascença (...) deslocar o ponto principal do debate sobre as artes, nitidamente no sentido do conceito do agradável, do ideal, do belo e, ao mesmo tempo, começar a encarar várias das artes imitativas como membros de uma categoria geral literalmente unificada. A importância dada, na Idade Média, à intelectualidade de certas artes verbais como a poesia e a retórica (e com elas a música, devido ao elemento matemático nela existente) modificou-se gradualmente na Renascença, de modo a admitir, no mesmo pe´de igualdade, as artes visuais, como a pintura e a escultura.”9

Os pintores do Renascimento não possuíam um acervo de regras e preceitos como os tratados de retórica e poética herdados da Antiguidade. Os tratados teóricos renascentistas sofreram um influxo de uma arte cujos alicerces, devido a uma tradição secular, estavam mais bem estabelecidos. Como aconteceu com todas as artes em geral, e talvez através da poética em particular, a teoria pictórica ficou impregnada de estruturação e terminologia retóricas. A pintura se submeteu a preceitos e conceitos herdados e traduzidos da literatura para o trabalho com imagens10.

“A pintura desde o Renascimento é, de certo modo, uma pintura de e sobre palavras. Seu fim é o despertar no espectador das palavras que ela encerra em si: a pintura quer ser lida, traduzida em comentários, voltar a ser texto”11.

O pintor, dessa forma, atua como um tradutor de conceitos da retórica e da poética, realizador de uma pintura voltada para a narração da História.

A partir do Renascimento inicia-se uma prática de escrever sobre a pintura, e o discurso sobre a comparação entre as artes adquire estatuto de gênero.

9

Winsatt Jr, William K. & Brooks, Cleanth. “Addison e Lessing: Poesia como Imagens”, em Crítica

Literária: Breve História. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1970. p.318

10 Alberti, em seu tratado, conforme veremos, seguiu Cícero na definição dos fins da poesia, o docere,

delectare, movere, como também os elementos componentes do discurso são encontrados na sua definição

de pintura: inventio, dispositio, elocutio, actio e memória.

11 Lee, Rensselaer W. “Ut Pictura Poesis: The Humanistic Theory of Painting”, em The Art Bulletin, Vol.

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No Paragone do tratado de pintura12 de Leonardo da Vinci, abriu-se a querela entre a poesia a favor da pintura.

“Diremos então com razão que no domínio da criação, há entre a pintura e a poesia a mesma diferença que existe entre um corpo e sua sombra, ou ainda em maior proporção, pois a sombra desse corpo ao menos passa pela visão para aceder ao senso comum, mas a imaginação desse corpo não passa absolutamente por nada, mas se produz no olho interior; ó que diferença é imaginar essa luz no olho interior, e vê-la efetivamente fora das trevas! (...)”13

Para Leonardo à Poesia cabia a sombra do objeto, enquanto a pintura colocava as coisas diante dos olhos como elas realmente são, como se fossem a própria natureza. O pintor inverte, assim, a hierarquia tradicional que estabelecia a precedência da poesia sobre a pintura.

Leonardo defendia a idéia de que a pintura e a escultura eram artes teóricas, desfazendo a antiga concepção do caráter meramente artesanal de ambas. A comparação também se desenvolveu em relação às artes intrínsecas à visão: a pintura e a escultura. No interior da problemática geral do Ut Pictura Poesis, a condição atribuída à pintura em relação à poesia determina a condição concedida à escultura em relação à pintura.

“(...)É o que faz o poeta para um belo rosto que é mostrado por partes; e que ao fazer dessa maneira nunca te satisfarias com a sua beleza, que consiste somente na divina proporção de todas as partes juntas, as quais só simultaneamente proporcionam essa harmonia capaz de arrebatar a liberdade ao espectador”14.

Leonardo ressalta o efeito de imediato da pintura, concepção que vai perdurar até o século XVIII.

Genericamente, a comparação entre as artes segue a tradição a que estamos nos referindo, de Platão e Simonides, transmitida através da formulação de Horácio. A comparação na Antiguidade exercia um papel meramente ilustrativo. Na Renascença ganharão um peso que não existia no conceito de origem.

Todas as artes partem da mimesis como pressuposto que as une e assim prosseguirá até o século XVIII.. A imitação (das imagens) do mundo é possível através da tradução ou recodificação, seja ela através das palavras, seja através das imagens.

12

Leonardo da Vinci, Tratado da Pintura (“O Paragone”) in Lichtenstein, Jacqueline (sel.).A Pintura Textos

Essenciais. São Paulo: Ed.34, 2005. p.17

13 Leonardo da Vinci, op.cit. p.20 14 Leonardo da Vinci, op.cit. p.21

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O primeiro a colocar a questão nos termos novos do humanismo, foi Leon Batista Alberti, em seu Della Pictura (1435)15. Primeiro tratado moderno, o trabalho de Alberti foi pioneiro em constituir a pintura como objeto de teoria e doutrina sistematizadas. A teoria da arte de Alberti constitui o ponto de partida e, em muitos aspectos, a base do crescimento de escritos sobre a teoria da arte da Renascença no Quatrocentos e Quinhentos.

Alberti baseou-se numa interpretação que privilegiava as artes da imagem, com as quais são relacionadas as artes da linguagem.

Para ele, a arte de pintar pressupõe, ao lado do conhecimento da geometria euclidiana e da óptica, a construção da composição em analogia à oratória. Se consoante à tradição retórica, de palavras são formadas orações, de orações, frases, e estas, mediante o ponto, tornam-se um todo. Desse modo, também das superfícies planas ou contornos surgem os membros, a partir de uma certa relação entre os membros surgem os corpos, e estes compõem a história do quadro. Assim é definido o objeto da pictura: o pintor representa ocasiões, ações, história, ao transpor movimentos da alma para movimentos do corpo. Para encontrar os meios para esta transposição e o tema apropriado (inventio) e para provocar no espectador o efeito desejado (voluptas) e o controle das emoções, Alberti recomenda aos pintores a retomada dos temas antigos e o estudo da retórica antiga, cujas regras de composição constituem concomitantemente as categorias estéticas normativas fundamentais da pintura: varietas, copia (utilizar com dignidade e moderação), decorum.

Como vimos anteriormente, a interpretação da tópica horaciana sofreu uma inversão por parte dos teóricos renascentistas: a poesia tornou-se o termo comparante e a pintura o termo comparado. A tradição manteve essa inversão do sentido, e embora com algumas reservas e manifestações críticas pouco salientes, foi somente com G. E. Lessing, na segunda metade do século XVIII que a relação foi questionada de maneira radical em seu tratado Laocoonte ou sobre as Fronteiras da Pintura e da Poesia16 .

É possível compreender essa inversão operada no Renascimento pela transformação do status dos pintores e da própria pintura. Seria a forma de

15

Alberti, Leon Battista. Da Pintura (tradução: Antonio da Silveira Mendonça). Campinas, SP: UNICAMP, 1992

16 Lessing, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. (tradução: Márcio

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reconhecimento da pintura até então reservado às artes da linguagem: o acesso à dignidade de uma arte liberal, e o artista, mais do que um operário ou artesão, passaria a ter uma atividade digna de um homem livre, culto e letrado, conforme as palavras de Alberti: “huomo buono et docto in buono lettere”17.

Dessa forma seria um desagravo da pintura à suspeita platônica, demonstrando que não se trata de prática ilusória e sofística, conforme denunciava o filósofo, mas um saber constituído. O ut pictura poesis é, desta forma, um grande empreendimento de legitimação social e teórica da pintura. Espera-se, assim, estabelecer que a pintura vem da idéia e não da matéria, do intelecto e não da sensibilidade, da teoria e não da prática. Para alcançar esse objetivo era necessária a ligação entre as artes da imagem e da linguagem, já que a segunda desde a antiguidade tinha o privilégio do discurso e da razão. A pintura, para se legitimar, estabelece o vínculo com o discurso, reintegrando-se desta forma ao Logos e fazendo com que o pintor passe a ter acesso à condição do orador e do poeta.

Simonide atribuía à poesia uma dupla determinação positiva: a pintura que fala. Já a pintura era definida pela falta: a poesia muda. A poesia, de natureza oral, passa ao nível visual em sua formulação. Provavelmente Simonide deve ter concebido a palavra como algo visível, como uma imagem sobre um plano. É interessante lembrar que a formulação foi feita na trilha de uma tradição da comparação que chegou até Horacio através de literatos, num contexto em que a literatura era o centro das postulações teóricas. Um pintor talvez tivesse chamado à pintura “poesia visível” e à poesia “pintura invisível ou cega”, como justamente indignado com a parcialidade do tópico, faria mais tarde Leonardo da Vinci..

Os teóricos a partir de Leonardo e Alberti insistiam na força e nos poderes da pintura e, principalmente, na superioridade do visível sobre os outros modos de representação, já que para eles a visão se constituía no instrumento superior dos sentidos e o mais científico. Refletem, com isso, conceitos herdados da filosofia, especialmente do neoplatonismo: a oposição entre olho e o espírito, entre o visível e a Idea. O pintor tinha a função de representar o macrocosmo através do microcosmo, o universal, o exemplar, o Belo absoluto.

***

(15)

O ut pictura poesis impõe à pintura as categorias da poética e da retórica, de acordo com a finalidade que Aristóteles atribuiu à poesia dramática: a de contar a “mythoi” - histórias. Era comum, no século XVII a alusão ao fato de que o pintor deveria saber narrar com o pincel. A concepção da pintura, desta forma, deve ser a capacidade de transposição de uma seqüência narrativa e, portanto, temporal, para o espaço de visibilidade do quadro. A mais alta expressão da arte de pintar era a descoberta de meios de representar fielmente uma história, respeitando um certo número de regras próprias à composição pictórica. Pintores e poetas, então, iam buscar inspirações, os primeiros em temas literários e os segundos em imagens que as artes visuais se encarregavam de oferecer.

A práxis deixa de ser a aplicação de uma teoria. A técnica está a serviço da imaginação do artista. Vt pictura poesis: a imaginação e a comunicação ficam em evidência. A mesma liberdade de imaginar é concedida ao pintor e ao poeta. Entre as imagens figuradas e as verbalizadas não há diferença senão no modo de comunicar.

“O princípio ut pictura poesis implica a superação do princípio clássico de identidade entre a estrutura da ideação artística e a estrutura da técnica correlata. Se a ideação é a mesma para o poeta e para o artista figurativo, mas as técnicas são obviamente diferentes, o conceito de forma como representação da realidade entra em crise: a técnica pode até continuar sendo um processo de imitação, mas a imitação é imitação da idéia, e não mais da natureza.(...) Ao deixarem de ser concebidas como processos cognitivos, as técnicas adquirem em extensão e em liberdade de movimento aquilo que perdem na ordem intelectiva: o artista está livre para imaginar, a técnica está apta a manifestar e comunicar qualquer coisa que ele imagine. Poesia e pintura – mas se poderia dizer o mesmo para todas as artes – não são mais o modo estético do conhecimento, mesmo porque já não se acredita que o conhecimento se dê por meio de representações: as artes no período barroco não mais ligadas à natureza como objeto de conhecimento, formam um sistema único de comunicação, tanto mais ramificado, penetrante e eficaz quanto mais se crê que a comunicação, a persuasão e a influência sobre o comportamento moral são tão – ou mais – importantes para o fim último da felicidade ou da salvação quanto a representação das verdades universais em formas exemplares”18.

Foi no século XVII que se iniciaram uma série de estudos teóricos sobre o processo de criação, que buscavam sistematizar os diferentes gêneros artísticos e suas específicas naturezas, num movimento que desembocou no surgimento da estética no século XVIII. A transição que norteava esse caminho da concepção “imitativa" para as "belas-artes" teve seu apogeu e grandes conseqüências nos séculos XIX e XX. Entre os

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teóricos que pontualmente marcaram essa trajetória encontra-se Lessing e seu Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia19. Publicado em 1766, foi um marco no estabelecimento de domínios distintos do poeta e do escultor, negando o ut pictura poesis e estabelecendo fortemente a diferença entre as artes.

Mesmo que alguns críticos tenham claro que a teoria de Lessing que separava as artes temporais das espaciais esteja ultrapassada, são contundentes em ressaltar o sólido alicerce estético legado por seu autor, que conseguiu abranger as divergentes tendências que marcavam os debates da época. O debate moderno ainda apresenta em suas bases, mesmo que com enfoques diversos, os defensores e os críticos de sua teoria.

Laocoonte é uma espécie de compêndio das discussões do século XVIII. Sob as luzes do pensamento dos filósofos empíricos ingleses mais influentes, como Hume, Locke e Berkeley. O século XVIII assistiu ao surgimento de teorias que privilegiavam sobretudo o processo de fruição das obras de arte, de natureza sensista. Esses teóricos, dentre eles Shaftesbury, Joseph Addison e Lord Kames desenvolveram critérios autônomos de fruição estética, embora ainda baseando-se no “prazer ingênuo” do contato artístico20.

Diretamente voltados para as artes comparadas, três nomes foram fundamentais na formulação do pensamento de Lessing: Jean-Baptiste Du Bos (1670-1742), Charles Batteaux (1713-80) e Denis Diderot (1713-84). Du Bos fez um grande estudo comparativo baseado fundamentalmente nos “meios” de expressão para analisar as especificidades das artes: Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture (1719), onde estabelece a diferença entre signos “naturais”, próprios de imitações “reais” (escultura, pintura, etc.) e signos “artificiais” próprio das imitações poéticas, elegendo a forma dramática como a melhor, por ser a que mais se aproxima das imitações “reais”. Charles Batteux publicou, em 1746 Les beaux-arts réduits a um même príncipe, em que estabeleceu, pela primeira vez o sistema das artes de uma maneira próxima à dos nossos dias. Para Batteux o princípio único era a imitação. E Diderot, embora não seja citado diretamente no tratado de Lessing, tem idéias bastante avançadas em relação aos seus contemporâneos, e está certamente subjacente ao texto. Lessing, acompanhando todo esse

19 op.cit. 20

Ver Gonçalves, A. J. Laokoon Revisitado. São Paulo: Edusp, 1994.Livro onde o autor realiza um estudo histórico dos debates em torno do Laocoonte. O autor tece com precisão o contexto em que nasceu a teoria de Lessing e procede a um debate histórico das transformações ocorridas nas artes poética e plástica a partir do Romantismo.

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movimento de idéias, propôs-se a desenvolver sua proposta estética no tratado, que é formulado como uma conjunção de várias tendências que se unem no propósito de contestar duas correntes da época: as teorias sobre a arte grega antiga de Winckelmann e outras correntes que sugeriam aos artistas modelos de imitação extraídos das obras clássicas. Para isso, Lessing retomou as fontes clássicas e analisa-as detidamente demonstrando as falsas interpretações dos comentadores nas aproximações entre a literatura e as artes plásticas21.

Lessing confrontou o complexo escultórico da Antiguidade encontrado em escavações em 150622 que representa Laocoonte e seus dois filhos sendo devorados pela serpente enviada por Apolo, comparando a dor expressa pela escultura aos gritos do Laocoonte de Virgílio, no trecho que aqui reproduzimos:

“Essas afirmações insidiosas, esses artifícios do perjuro Sínon, convenceram nossa confiança; e aqueles se deixaram prender por palavras e por lágrimas fingidas, aqueles que nem o filho de Tideu pôde domar, nem Aquiles de Larissa, nem a guerra de dez anos, nem mil embarcações!

Então, outro espetáculo, maior e muito mais terrível, se ofereceu aos olhos dos infelizes troianos, e lançou em seus corações imprevista perturbação. Laocoonte, escolhido pela sorte sacerdote de Netuno, imolava um possante touro ao pé dos solenes altares. Ora, eis que duas serpentes, vindas através das ondas tranqüilas de Tênedos (horrorizo-me ao relatar), alongando sobre o mar seus imensos anéis, avançam em direitura do litoral. Erguem-se as cabeças no meio das vagas, suas cristas sangüíneas dominam as ondas; o resto dos corpos desliza sob a água e os dorsos imensos se curvam em espiral. Faz-se ruído no mar espumoso; já tocam a terra e, tintas de sangue e com fogo nos olhos ardentes, lambiam as sibilantes bocas com as línguas vibrantes. Nós fugimos exangües àquela visão. As duas serpentes, em direção certa, dirigem-se para Laocoonte; e primeiro ambas enlaçam os pequenos corpos de seus dois filhos, enrolam-se ao redor da presa e rasgam com mordeduras os seus miseráveis membros. Depois, arrebatam o próprio Laocoonte que vinha em socorro dos filhos trazendo as armas nas mãos e o constirngem com seus robustos anéis; duas vezes já enlaçaram seu corpo pelo meio e duas vezes, ao redor do seu pescoço, enrolaram os dorsos escamosos e o excedem com a cabeça e com os pescoços elevados. Ele simultaneamente procura desfazer os nós com as mãos, tendo já as fitas machadas com a baba e o negro veneno; ao mesmo tempo levanta aos astros clamores horrendos, quais os mugidos do touro quando, ferido pelo ferro, foge do altar e sacode do pescoço a machadinha mal segura. Entretanto, ambas as serpentes fogem e

21

Através de Homero, Aristóteles, Horácio,, Virgílio e os tragediólogos, especialmente Sófocles. Partiu das obras individuais para conceber sua forma estética. Os três livros que precipitaram o Laocoonte exemplificavam a literatura clássica por intermédio da escultura clássica. Foram: Polymetis (1747) de Joseph Spencer, Tableaux Tires de l’Iliade, de l’Odysée de Homére et de l’Enéide de Virgile (1754-1758) do Conde Caylus e Gedanken über die Nachahmung der griechischen Werke in der Malerei und

Bildhauerkunst (1755) de Winnckelmann. Cf.WinsattJr, William K. & Brooks, Cleanth, op. cit.

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rastejando ganham as alturas do templo, dirigem-se para a cidadela da feroz Tritônia e se escondem aos pés da deusa sob o disco do escudo.23”

O protesto de Lessing contra a extravagância da humanística ut pictura poesis inicia-se com uma questão acerca do grupo escultórico. Por que a boca do sacerdote Laocoonte, a debater-se numa luta de morte com as duas serpentes, não se encontra toda aberta num grito de agonia? Winckelmann respondeu que o ideal grego do autodomínio emocional o impedia de maneira admirável. Lessing afirma que uma cavidade aberta é um defeito formal numa escultura, e que o momento em que a boca está entreaberta é um momento “significativo e frutuoso”.

Estudiosos debateram durante muito tempo se este grupo escultórico havia sido realizado com base nos versos do Livro II da Eneida que acabamos de citar. Acreditava-se Acreditava-ser altamente provável que a obra de Virgílio teria nascido primeiro. Lessing concorda com isso, estabelecendo desde o início a supremacia da obra literária. Diz que as divergências vieram por conta dos escultores terem adaptado certos detalhes.

Sua principal tese, contida no capítulo XVI pode ser lida resumidamente nos parágrafos abaixo:

“Eu argumento assim. Se é verdade que a pintura utiliza nas suas imitações um meio ou signos totalmente diferentes do da poesia; aquela, a

23 Virgílio Eneida. São Paulo: Cultrix, 1985 [Trad. de Tassilo Orpheu Spalding, feita a partir da versão

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saber, figuras e cores no espaço, já esta sons articulados no tempo; se indubitavelmente os signos devem ter uma relação conveniente com o significado: então signos ordenados um ao lado do outro também só podem expressar objetos que existam um ao lado do outro, ou cujas partes existem uma ao lado da outra, mas signos que se seguem um ao outro só podem expressar objetos que se seguem um ao outro ou cujas partes se seguem uma à outra.

Objetos que existem um ao lado do outro ou cujas partes existem uma ao lado da outra chamam-se corpos. Conseqüentemente são os corpos com as suas qualidades visíveis que constituem o objeto próprio da pintura.

Objetos que se seguem um ao outro ou cujas partes se seguem uma à outra chamam-se em geral ações. Conseqüentemente as ações constituem o objeto próprio da poesia.

Contudo, todos os corpos não existem apenas no espaço, mas também no tempo. Eles perduram e podem parecer diferentes e se encontrar numa outra relação em cada momento da sua duração. Cada uma dessas aparições momentâneas e relações é o efeito de uma anterior o pode ser a causa de uma sucessiva e, assim, como que o centro de uma ação. Conseqüentemente a pintura também pode imitar ações, mas apenas alusivamente através de corpos.

Por outro lado, as ações não podem existir apenas por si mesmas, mas dependem de certos seres. Na medida em que esses seres são corpos ou são observados como corpos, a poesia também expõem corpos, mas apenas alusivamente através das ações.”24

Lessing estabelece assim, que a espacialidade é o atributo essencial das artes plásticas, pois nela a forma, que mostra o aspecto visível dos objetos, pode, num único lampejo de tempo apresentá-los justapostos.

Por outro lado, segundo o teórico, a literatura, ao fazer uso da linguagem, tem como característica fundamental de seu instrumento a temporalidade, pois deve se basear em alguma forma de seqüência narrativa. Lessing privilegia a poesia que, para ele se constitui num campo muito mais amplo do que as artes plásticas. Segundo sua teoria, os limites do artista plástico são bem demarcados e invioláveis: o artista só é capaz de apreender um instante da natureza variável, e portanto, oferecer apenas um ponto de vista. Cabe ao artista a habilidade de, ao retratar os corpos com suas qualidades visíveis, escolher o momento a ser representado, de forma que a imaginação e a fantasia possibilitem a concretização da relação obra/observador de maneira eficaz. Segundo Lessing, ao retratar um acontecimento, o pintor deve esquivar-se de retratar os extremos da ação, pois se ela for conclusiva, não sobrará, para o observador, algo que ele possa concretizar em sua imaginação.

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Já em relação à poesia, Lessing privilegia a sucessividade de ações como um grande campo de possibilidades. São as ações, segundo suas convicções, os objetos próprios da poesia. A poesia, arte temporal composta de signos arbitrários, imita ações num processo de sucessividade em que o poeta não se vê obrigado a eleger um instante (como é a obrigação do pintor), podendo tomar cada uma das ações desde seu princípio e conduzi-las ao final, por meio de vários tipos de modificação. Lembremos como exemplo, de que a cada vez que tomba um guerreiro, na Ilíada, Homero nos oferece imagens diferentes, sem que jamais uma morte seja igual à outra.

A teoria das artes espaciais de Lessing baseia-se na sua concepção de "instantâneo" em relação à capacidade da vista de captar a imagem de uma só vez, não envolvendo, desta forma, nenhuma passagem de tempo. Segundo o teórico é em um só instante que o olho capta a imagem, o que será bastante debatido posteriormente, especialmente pelos pintores.

Lessing atribui as restrições à representação como decorrentes dos evidentes limites da visão. O contraste foca-se na natureza limitada da visão e o alcance amplo da literatura. Richard Wollheim nos lembra que podemos ter uma melhor noção do alcance da visão quando lembramos, por exemplo, que é possível ver uma coisa, mesmo sem enxergar todas as suas partes. Pode-se ver uma coisa e não outra, embora ambas sejam tão parecidas que, em outras circunstâncias, seríamos incapazes de distingui-las. Ou ainda que podemos ver uma coisa fazendo ou sofrendo algo, mesmo se o que ela faz ou sofre só pode ser reconhecido por referência a algo que não podemos ver, ou seja:

“Tendo em mente essas verdades, ainda que se continue a pensar que o que pode ser representado é coextensivo ao que pode ser visto, nos libertaremos da idéia de que os limites da representação são os que Lessing alegou. Teremos condições de reconhecer, por exemplo, a existência das seguintes representações: em primeiro lugar, em “A Companhia de São Jorge”, 1616 (Frans Halsmuseum, Haarlem), Frans Hals representou o coronel, embora não se possa ver a metade inferior de seu corpo, pois ele aparece sentado à mesa. Van Eyck foi mais longe ao pintar os anjos músicos em “Adoração do Cordeiro Místico” (Igreja de St Bavon, Ghent); representou um anjo soprando os foles do órgão, embora por estar atrás do instrumento, ele esteja completamente invisível, exceto por uma mecha dos seus cabelos e uma nesga do seu manto. Em segundo lugar, Edouard Manet, em “Mulher com um papagaio” (Metropolitan Museum of Art, Nova York), representa uma moça com um papagaio vivo, e Nicolas Poussin, em a “Morte de Germânico” (Minneapolis Institute of Arts, Minneapolis), representa um homem à morte, embora não se possa distinguir um papagaio vivo de um papagaio empalhado bem pintado, nem um verdadeiro moribundo de um homem que esteja fingindo de doente. Em terceiro lugar – e isto contesta

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diretamente o exemplo de Lessing – uma pintura de Laocoonte pode representar o personagem mitológico prestes a gritar em agonia ou sendo esmagado pela serpente enviada por Palas Atena para castigá-lo, ainda que seu grito esteja no futuro e que Palas Atena esteja numa terra distante, de modo que nem uma coisa nem outra é visível.”25

É importante destacar que a teoria de Lessing foi desenvolvida no contexto de uma concepção mimética das artes, enquanto essas caminharam para novas concepções: o romantismo provocou o advento das teorias expressivas, o que foi o início de um processo fundamental para o desenvolvimento das artes, de suas próprias especificidades. Desta forma, novas concepções surgiram, mudando o enfoque da relação entre as duas artes.

Obviamente existe uma diferença básica entre as artes poéticas e as artes plásticas, mas sem dúvida há algo que possibilita a aproximação de ambas, num jogo de atrações que mantém esse debate aceso.

Com base em diversos teóricos que procederam minunciosas análises crítica das teorias contidas no Laocoonte26, constata-se que as artes poéticas são predominantemente temporais: enquanto que para apreensão da palavra escrita deve-se respeitar uma ordem sucessiva determinada, nas artes plásticas, "o olho pode caminhar em qualquer direção e em qualquer velocidade, no processo de acumular uma impressão do todo de um quadro ou de uma estátua"27 Além disso, "nas expressões plásticas todas as partes estão presentes constantemente, ao passo que no poema temos de recorrer a formações ou imagens retidas pela memória. Todavia, não nos podemos valer das diferenças reais, cujas distâncias têm sido bastante atenuadas pelas duas artes ao longo da história, para desfigurar procedimentos sutis, mas verdadeiros, existentes numa e noutra arte. Sendo assim, o que, em verdade é predominância (do tempo na apreensão do poema e do espaço na apreensão das artes plásticas), Lessing transforma em condição absoluta, confundindo duração menor com inexistente.”28 Leva, desta forma, a imediatez das imagens até as últimas conseqüências, como se, com um único olhar todo o sentido da imagem pudesse ser apreendido.

25 Richard Wollheim. A pintura como arte. São Paulo: CosacNaify, 2002. 26

Cf. Gonçalves, op.cit.

27 A.A. Medilow “As artes temporais e as artes espaciais” em: O Tempo no Romance, apud

Gonçalves,op.cit. p.80

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No século XX, a experiência da poesia concreta fez uma proposta no sentido inverso, o de que o poema é também um objeto para ser visto e apreciado por suas qualidades pictóricas. Essa poesia traz para si o conceito da arte visual: além de ser lida, ela é concebida para ser vista e apreciada por seu projeto gráfico.

As formas plásticas modernas não aspiram à condição de discurso narrativo, o objetivo primário é a busca de um efeito estético. Um único olhar não evoca os múltiplos sentidos que podem derivar de sua “leitura”. É uma arte que chama o observador para um diálogo.

Segundo Northrop Frye,

"as obras literárias também se movem no tempo, como a música, e se estendem em imagens, como a pintura. A palavra narrativa, ou mythos, transmite o senso de movimento apanhado pelo ouvido, e a palavra sentido, ou dianóia, transmite, ou pelo menos preserva, o sentido de simultaneidade percebido pela vista. Ouvimos o poema quando este se move do princípio ao fim mas, tão logo o seu conjunto esteja em nossa mente, de pronto vemos o que significa. De maneira mais precisa, essa reação não se dá simplesmente ao conjunto dele, mas a um conjunto nele: temos uma visão do sentido ou dianóia sempre que qualquer apreensão seja possível."29

Essa concepção de temporalidade, porém, parece equivocada quando consideramos que o tempo musical e das outras artes ditas temporais, como a dança, o teatro ou o cinema, é diferente da temporalidade literária. Na literatura, o leitor tem controle sobre a temporalidade. Ele pode avançar ou retroceder no texto. Ele pode ler mais rapidamente ou mais lentamente conforme o seu desejo. Nas artes temporais de fato, o espectador não possui controle sobre o desenvolvimento temporal da peça. Neste sentido a leitura do texto é mais próxima da leitura da obra pictórica do que das artes temporais.

Aquilo que aproxima as artes visuais da poesia parece ser o mesmo que determina suas diferenças. As diferenças são mais claramente detectáveis que as semelhanças. As semelhanças estão no domínio da arte, dos elementos tênues, que ora emergem ora submergem na obra artística. “Esses fenômenos cuja essência está em subitamente existirem e desaparecerem, recebem, da perpetuidade que lhes concede a arte, uma

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aparência que não é natural"30. Daí a impossibilidade de ser retido em categorizações e rigidez formais.

Em seu célebre ensaio intitulado Confissão Criadora31, o pintor Paul Klee nos leva por uma jornada temporal das artes plásticas. Afirma o pintor que “o movimento é a base de todo devir”. Inicia seu ensaio com a premissa que norteou seu trabalho pictórico: “A arte não reproduz o visível, torna visível”. Este pintor, que foi também poeta e músico, trabalhou convicto de que as artes eram complementares e se sustinham na base de uma temporalidade ligada ao ato da criação. Estendia também essa temporalidade ao espectador cuja atividade, para ele “é também temporal. Ele vai trazendo pedaços, um por um, para a atividade ocular, sendo que, para focalizar cada pedaço novo precisa abandonar o antigo.”

Ainda conforme Klee “a obra pictórica surgiu a partir do movimento, é ela mesma movimento fixado e percebida em movimento (músculos oculares).”

O trabalho do pintor, assim como seus escritos, rompeu, segundo Michel Foucault, com a ordem que hierarquizava o signo verbal e a representação visual, que não considerava jamais a apreensão simultânea de ambos. Conforme Foucault: “é esse princípio cuja soberania foi abolida por Klee, ao colocar em destaque, num espaço incerto, reversível, flutuante (ao mesmo tempo tela e folha, toalha e volume, quadriculado do caderno e cadastro da terra, história e mapa) a justaposição das figuras e a sintaxe dos signos. Barcos, casas, gente, são ao mesmo tempo formas reconhecíveis e elementos de escrita. Estão postos, avançam por caminhos ou canais que são também linhas para serem lidas”32.

***

Não é menos merecedor do interesse crítico, no campo das estéticas comparadas, o caso em que um pintor se volta para “ilustrações” das mais variadas naturezas. Aquela que nos interessa é a de um artista plástico ilustrando um texto literário, o que resulta no chamado “Livro Ilustrado”. Esse tipo de aproximação tem como marco, para a cultura ocidental, os manuscritos medievais. Embora possamos encontrar

30

Gonçaves, op.cit. p. 59

31 Klee, Paul “Confissão Criadora” em Sobre a Arte Moderna e outros ensaios, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2001

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em Museus alguns raros exemplos de obras que foram ilustradas na Antiguidade, é a partir desses manuscritos que herdamos as configurações da palavra impressa.

Foi a partir do movimento surrealista que a relação imagem e palavra ganhou uma nova forma no interior do livro ilustrado. Esse movimento valorizou a imagem e alterou seu estatuto em relação ao campo literário. O livro surrealista pressupunha a presença da imagem. O que os integrantes do movimento buscavam era que, no decorrer da leitura de uma obra intermediada por signos visuais (ou ilustrações), pudéssemos imaginar que enquanto retemos na memória o fluxo discursivo, há um desdobramento durante o processo em que o olho envereda por outros caminhos e que, caminhando tortuosamente ao longo da página ilustrada, ao retornar para a leitura, passássemos a vê-la, paradoxalmente "com outros olhos".

Entre as imagens e o texto há um ponto de confluência (ou convergência) e é nesse encontro que se esboçam os contornos sempre esvanescentes de suas semelhanças. Essa polaridade extrema, a vivência de antinomias, está na base das idéias e intuições das obras artísticas, e impulsionam a criatividade.

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O pintor Francis Bacon, ao falar da gênese de um de seus quadros, resume a tarefa de conferir visibilidade a uma idéia, a partir do que Kandinsky chamou de “necessidade interior”33. Bacon mostra que no ato de pintar os elementos decorrem uns dos outros, e interdependentes, no sentido em que a totalidade vai determinando as necessidades, num depoimento que reproduzo abaixo:

“Bom, um dos quadros que pintei em 1946, aquele que parece um açougue, surgiu diante de mim por acaso. Eu estava tentando fazer um pássaro pousando num campo. Pode ser que ele de algum modo tenha uma relação com as três formas que foram feitas antes, mas de repente as linhas que eu tinha desenhado sugeriram uma coisa muito diferente, e desta sugestão nasceu o quadro. Não tinha a intenção de pintá-lo; nunca pensei nele daquela maneira. Foi como se uma coisa, aparecida acidentalmente, tivesse ficado debaixo de outra que também por acaso veio depois. (...) O pássaro de repente sugeriu a abertura para uma área de sentimentos totalmente diferentes. E então fiz estas coisas, aos poucos elas foram saindo. Por isso, acho que o pássaro não sugeriu o guarda-chuva; subitamente ele passou a sugerir a imagem inteira, que foi executada em muito pouco tempo, mais ou menos três ou quatro dias.”34

33 Kandisnky, Wassily. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996

34

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Evoco aqui a descrição do pintor para buscar a analogia, a descrição do processo de criação literária do escritor Ítalo Calvino. Ao exaltar a Visibilidade como uma das seis propostas essenciais para a literatura, o escritor aborda sua própria experiência de criação literária, que muito nos aproxima do processo evocado por Bacon. O escritor parte da constatação de que na origem de cada um de seus contos havia uma imagem visual. Uma imagem que se apresentava carregada de significados, embora sem que soubesse formular em termos discursivos ou conceituais:

“A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitidez em minha mente, ponho-me a desenvolvê-la numa história, ou melhor, são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si. Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições. Na organização desse material, que não é apenas visível mas igualmente conceitual, chega o momento em que intervém minha intenção de ordenar e dar um sentido ao desenrolar da história – ou, antes, o que faço é procurar estabelecer os significados que podem ser compatíveis ou não com o desígnio geral que gostaria de dar à história, sempre deixando certa margem de alternativas possíveis. Ao mesmo tempo, a escrita, a tradução em palavras, adquire cada vez mais importância; direi que a partir do momento em que começo a pôr o preto no branco, é a palavra escrita que conta: à busca de um equivalente da imagem visual, se sucede o desenvolvimento coerente da impostação estilística inicial, até que pouco a pouco a escrita se torna a dona do campo. Ela é que irá guiar a narrativa na direção em que a expressão verbal flui com mais felicidade, não restando à imaginação visual senão seguir atrás.” 35.

Os processos criativos aqui evocados percorrem um mesmo caminho, até que se bifurcam, cada qual na finalização de sua Idéia numa linguagem específica.

Para André Breton, que recorre, em Nadja, aos artifícios da imagens como continuidade ao texto, há, não obstante seus fortes laços, uma marcada diferença entre as duas artes, que expressou desta forma no Primeiro Manifesto Surrealista:

“as inspirações verbais são bem mais ricas de sentido do que as visuais, infinitamente mais resistentes à vista do que as imagens visuais propriamente ditas (...). Lautréamont e Rimbaud não viram nem gozaram a priori o que descreviam, o que equivale a dizer que não o descreveram; limitaram-se aos bastidores sombrios do ser, ouvindo falar indistintamente enquanto descreveram (...) a iluminação vem em seguida.”36

Alberto Manguel, segue na mesma direção que Breton ao afirmar que as palavras fluem para além do texto, que nunca existe integralmente como um todo físico da forma

35 Calvino, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.104 36 Breton, André. Manifestos do Surrealismo.São Paulo: Brasiliense, 1985. p.72

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como as pinturas, que podem ser encerradas pelos limites da moldura. Quando nos lembramos de uma obra pictórica que conhecemos bem, lembramos dela dentro dos limites encerrados pela moldura. A imagem existe no espaço que ocupa, independente do tempo que reservamos para contemplá-la. Porém nos lembra que mesmo que catálogos, legendas, livros de arte tentem guiar-nos através de escolas distintas, épocas ou países, o que vemos escapa dessas inibições. – O que vemos não é nem a pintura em seu estado fixo, nem uma obra de arte aprisionada nas coordenadas estabelecidas pelo museu para nos guiar. O que vemos é a pintura traduzida nos termos da nossa própria experiência.

“Quando lemos imagens, atribuímos a elas o poder temporal da narrativa. Ampliamos o que é delimitado pela moldura por um antes e um depois e conferimos uma vida infinita e inesgotável.”37

***

“Poi piovve dentro a l’alta fantasia”

Dante, “Purgatório”(XVII, 25)

De onde vêm as imagens que “chovem dentro de nossa fantasia”?

Para o escritor Ítalo Calvino, a visibilidade diz respeito à unificação da geração espontânea de imagens e a intencionalidade do pensamento discursivo. Trata-se, tanto no processo de criação de uma obra pictórica, quanto de uma obra literária, de conferir visibilidade a um impulso emocional e racional. Racional conforme esse impulso que veio da imaginação, munida de sua lógica própria, cai nas malhas da lógica imposta pelo raciocínio e a expressão verbal – ou pictórica.

“Seja como for, as soluções visuais continuam a ser determinantes, e vez por outra chegam inesperadamente a decidir situações que nem as conjecturas do pensamento nem os recursos da linguagem conseguiriam resolver”38.

Isso porque as imagens que povoam nossa imaginação não são as imagens pintadas. Elas pertencem ao domínio do sensorial e não são propriamente visuais. Para que se tornem visíveis, é necessário que haja a intervenção do artista, que retira essas imagens do domínio sensorial e as materializa em objetos palpáveis.

Essa intervenção do artista se transformou ao longo do tempo. Na estética clássica o artista buscava trazer o imaginário para o mundo real utilizando fragmentos desse

37 Manguel, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.27 38 Calvino, op.cit.p.106

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mundo real para compor o ser imaginário. Assim era, por exemplo, o caso do centauro, construído a partir do homem e do cavalo.

No surrealismo o mundo real é transportado para o imaginário. Tocado pelo sonho, o real sofre uma transformação. Ele é cortado, mutilado e reorganizado. O artista surrealista retira os fragmentos do mundo real para compor situações imaginárias não identificáveis nesse mundo, subvertendo aquilo que é reconhecido como natural. Esses fragmentos, para serem justapostos, obedecem à lógica do sonho.

Ao longo do tempo os mecanismos de representação se transformam, mas as imagens continuam a povoar o nosso imaginário.

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O Livro Ilustrado

As abordagens comparativas entre pintura e literatura são inúmeras. Dentro do âmbito geral da questão do ut pictura poesis, pontuamos uma situação que é relativamente comum na trajetória das estéticas comparadas: um artista plástico ilustrando um texto literário. Um livro ilustrado é, antes de tudo, um objeto dotado de forma e peso, que manipulamos segundo certas regras sociais. É no escorrer das páginas que os signos visuais, ou ilustrações, se manifestam para nós. Chamarei aqui de ilustrações os signos visuais que, embora possuindo uma certa autonomia de existência, ocupam um lugar no interior do escrito e foram criadas a partir de um texto ou acopladas a ele, criando assim uma relação permanente entre as duas linguagens.

Na história das artes visuais, o trabalho de ilustração de obras literárias por pintores é normalmente relegado à crítica literária, como se não pertencessem ao conjunto de suas obras pictóricas. Essa contraposição da palavra escrita ao universo plástico resulta num encontro, num diálogo, que se apresenta aos olhos do leitor. Nesse universo dominado pela palavra escrita, as leituras visuais ou ilustrações encontram-se no limite e na intersecção entre as artes visuais e a literatura. Como resultado do convívio e colaboração entre dois artistas, o escritor e o artista plástico, e na conseqüente fusão de seus trabalhos, o livro ilustrado faz emergir questões provocantes sobre o significado, a plasticidade e potencialidade de ambas as linguagens.

Nas artes plásticas está fortemente presente a idéia de unicidade. Talvez daí resulte a dificuldade de inserção dos trabalhos de ilustrações de livros no repertório tradicional de um artista. A ilustração de um texto – quer tenha sido ilustrada por outro anteriormente ou não – o introduz no universo da reprodução técnica.

Os artistas podem, é verdade, interessar-se pelo livro como suporte, mas na produção de um objeto artístico único, visando acima de tudo o predomínio da imagem visual, subvertendo o espaço originalmente destinado ao escrito1. Há também o caso de artistas que produziram coleções de gravuras inspiradas em obras literárias, mas que não

1

São os chamados Livros de Artista. Há uma clara distinção entre os livros ilustrados e os livros de artista. Esses últimos são acessados como uma obra de arte original, enquanto que aos livros ilustrados se atribui a dependência dos meios mecânicos de produção.

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foram necessariamente destinadas a serem impressas em volumes, mas reproduzidas em pequena escala, com ou sem excertos de texto. Os chamados portfólios contribuíram para a aproximação da ilustração com as artes plásticas, fornecendo uma interpretação muito pessoal de uma obra literária, sem as preocupações e limitações que se impõem ao processo tradicional de ilustração. Essas gravuras, convém lembrar, têm existência autônoma, apesar de muitas vezes estarem calcadas na referência textual, como é o caso também do portfólio intitulado "Don Quichotte de la Manche" que Salvador Dali realizou em 1956-572.

Existem diferenças entre a performance do pintor e do pintor como ilustrador. O primeiro sabe que sua obra será apreciada por um número reduzido de pessoas, circunscritas ao espaço dos museus ou galerias, o segundo trabalha para um público, culto ou não, de milhares de leitores, e está sujeito a determinadas limitações que se impõem ao ofício, como escala e processo de reprodução. Ou seja, deve ter sempre em mente as dimensões e as cores em que seu trabalho será reproduzido. O próprio processo de criação, que permite ao pintor uma grande liberdade, requer do “ilustrador” a habilidade de interpretar um texto, fazendo aumentar no leitor a percepção de sentimentos gerados por este, o que é bem diferente da busca individual que marca a produção nas artes plásticas. Outra diferença considerável que talvez seja o principal motivo de a ilustração não possuir o mesmo status icônico de uma obra de arte é a falta da "presença" do autor. Se há diferenças radicais na contemplação de um original e de uma reprodução, recordemos que raramente as ilustrações são exibidas em público.

No entanto, muitos artistas dedicaram-se a realizar esse diálogo com as obras literárias através dos tempos. Boticelli ilustrou a Divina Comedia, Albrecht Dürer ainda hoje povoa nosso imaginário com o aterrorizante livro do Apocalipse, Delacroix dedicou seu talento ao Fausto, e muitos outros mais indicam esse entrelaçamento contínuo entre as duas linguagens.

***

O escritor e também crítico e ensaísta de artes plásticas Michel Butor tentou estabelecer um diálogo com as artes plásticas questionando esse processo de integração

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entre as duas linguagens3. Em seus romances Passage de Milan, L´emploi du temps , La modificacion (1957) e Degres, enquadrados como Noveaux Romans francês, a presença

de obras e artistas plásticos é fundamental para a compreensão da estrutura mesma de seus textos.

Em Móbile (1962) e depois em Illustrations e Lê gênie du lieu, o romance se transfigura numa poética quase concreta “onde a plástica do texto é explorada deliberadamente”4. O objetivo do escritor era aproximar-se dos artistas plásticos para conhecer seus processos de criação, pois considerava que esse conhecimento era essencial para o desenvolvimento de sua própria maneira de escrever. Em 1969 afirmou: “Os pintores me ensinam a ver, a ler, a compor; logo, a escrever, a dispor signos numa página”.

Para o escritor, há três níveis de relação entre a pintura e o texto.

Há primeiramente todo o discurso que gira em torno da pintura. A crítica, as conferências, as visitas guiadas nos museus, a história da arte, levam, em geral, a publicações onde existem o texto e as reproduções fotográficas de pinturas. Conforme Roland Barthes5, toda imagem é polissêmica e pressupõe uma cadeia flutuante de significados. O leitor/observador, no caso, pode escolher uns e ignorar outros. O texto pode, nesse caso, tentar fixar essa cadeia flutuante, guiando a escolha do nível de percepção, permitindo a adaptação do olhar e a intelecção. Pode ainda atuar como uma espécie de barreira que impede a proliferação de sentidos conotados, limitando o poder de projeção da imagem. Essa fixação, segundo Barthes, pode ser ideológica, pois quando o

3 Durante mais de quarenta anos, o escritor Michel Butor trabalhou com diversos artistas plásticos buscando

o diálogo entre as duas linguagens. Estabelecendo uma espécie de jogo ou confronto entre dois artistas no momento mesmo da criação, Butor produziu uma série de livros de artista que integraram uma exposição intitulada “Palavras e Formas” (agosto de 1992,Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo), que contou com a colaboração de Pierre Alechinsky, Jacques Monory, André Villiers e outros. Nessas obras, texto e imagem convivem no mesmo espaço de uma maneira inovadora. O livro se transforma em objeto, forma única que contém obras originais feitas pela mão do artista e onde o escritor insere suas palavras.

4 Comentário de Marcus Ferreira Sampaio, curador da exposição “Palavras e Formas”(1992)

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texto conduz o leitor por entre os significados da imagem, atua como um teleguia para um sentido escolhido a priori.

Um segundo tipo de relação pressupõe um laço mais íntimo entre imagem e texto. Desde o surgimento do livro, como já vimos, é freqüente essa vinculação. A imagem duplica certas informações do texto ou o texto pode acrescentar à imagem uma informação inédita. Estamos aqui falando objetivamente da ilustração. Segundo Roland Barthes, a relação entre signo visual e verbal se realizaria segundo duas possibilidades: ancoragem e relais. Na primeira a imagem pode ser vista, numa primeira instância, como simples reduplicação do verbal. Como as ilustrações dos livros científicos e enciclopédias, destinadas a completar o texto ou tornar “visível” aquilo de que ele trata. Esse tipo de imagem utilizado na narrativa ficcional possibilita ao leitor um processo mimético e foi utilizada intensamente pelos editores de romances até o final do século XIX. A segunda, relais, designa o diálogo estabelecido pelo artista entre os dois modos de significar: a gravura completa, prolonga, modifica, interpreta, subverte, sublinha o verbo, num processo que será o da ilustração do texto poético moderno.

Barthes diz que, nos moldes tradicionais, a “ilustração” funcionava como uma volta episódica à denotação, a partir de uma mensagem principal (o texto), que era sentido como conotado, já que necessitava precisamente de uma ilustração. Isso era sentido nas ilustrações medievais da Bíblia, que estabeleciam com o texto um tipo de relação fundado numa simbologia cultural. Devemos lembrar, contudo, que a(s) imagem(ns) constitui(em) um texto paralelo, sempre presente nas culturas antigas: no templo egípcio, na cidade grega, na catedral medieval. Trata-se de compreender a existência de um público “letrado” e outro analfabeto e a imagem estava lá justamente para que pudessem ser “lidas” pelos iletrados. Em alguns casos, mesmo para o público culto, a imagem foi absolutamente necessária, como o demonstram os textos científicos, onde a imagem é parte integrante do conteúdo. Como é o caso da geometria ou dos livros de botânica ou ainda daqueles estudos que prescindiam de mapas.

Na relação atual, a imagem não vem esclarecer ou “realizar” a palavra, é a palavra que vem sublimar ou racionalizar a imagem, dependendo do caso. Se no passado ilustrava-se o texto para torná-lo mais claro, hoje o texto pode tornar a imagem mais pesada, impondo-lhe uma cultura, uma moral, uma imaginação. Na maioria dos casos,

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nos livros da Europa clássica, a palavra está lá para ajudar a ler a imagem. Com o desenvolvimento dos meios de reprodução, houve um aumento considerável da veiculação imagética6. Se podemos falar que no passado havia uma redução do texto à imagem, podemos dizer que no presente ocorre uma amplificação recíproca.

Num terceiro nível, o texto, intervindo no interior de uma imagem, funcionará também como imagem, como se pode notar nos trabalhos de Francis Picabia, Magritte , Miró e outros. A introdução da palavra em seus quadros transforma-a em desenho. As linhas do texto são linhas que atuam com as outras linhas da imagem.

Para Butor, essas categorias conduzem à interpretação do fenômeno da escrita. Para ele a escritura é, por si só um mundo plástico, que diferencia não só as línguas, como os próprios escritores entre si e enfatiza que jamais teria escrito suas obras se não fossem as investigações que realizou em torno desse diálogo entre as duas linguagens.

Essas categorias explicativas nos dão uma impressão de segurança a respeito do fenômeno. São extremamente válidas para sistematizar alguns casos, mas tendem a congelar um processo que está em constante transformação. As categorias explicativas não dão conta da profundidade e complexidade da relação que se pode estabelecer entre imagem e palavra. O trabalho de Dalí para Dom Quixote, como veremos adiante, ultrapassa essa tentativa de sistematização.

***

Outro fato vem balançar as tentativas de catalogar com precisão as finalidades ou funções das imagens, mostrando que essa complexidade não é restrita à modernidade.

Vesalius, em seu De Humani corporis Fabrica, em 15407, produziu uma guinada na história da educação, fazendo com que as imagens de seu tratado de anatomia dessem uma contribuição exata aos textos científicos, buscando, para além das palavras uma precisão anatômica. Essas imagens do corpo humano são muito mais precisamente "vistas" do que "lidas". Ao retratar os cadáveres, o artista deu "vida" aos esqueletos de

6

Lembramos que, nos jornais uma foto pode ser tão impactante que é usada como porta de entrada para um texto, que virá para ajudar a ler a imagem. Nas revistas de turismo, por exemplo, a imagem aparece em primeiro lugar.

7

Vesalius de Bruxelas, Andréa. De Huamni Corporis Fabrica. Epítome. Tabulae Sex. Ilustrações dos

trabalhos anatômicos. Esboço Bibliográfico de Vesalius. Anotações e tradução do Latim de J.B. DeC. M.

Saunders e Charles O’Malley. Tradução para o português: Pedro Piantino Lemos e Maria Cristina Vilhena Carnevale. Campinas,SP:Ed.UNICAMP/Ateliê Editorial, 2002

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forma a reproduzir de maneira claramente didática o funcionamento do corpo humano. Embora com propósitos científicos claramente definidos, e no empenho de duplicar as informações escritas, o artista não deixou de colocar sua visão e interpretação pessoal, resultando num trabalho surpreendente ou, para evocar Freud, de uma inquietante estranheza. Essas pranchas apresentam os corpos dilacerados em atitudes e gestos cotidianos e que exercem com eficiência sua função didática, seu propósito primeiro. Porém acaba surpreendendo pelo seu efeito estético, ampliando o texto e evocando outras analogias para além dos ensinamentos a que se propõe. Essas imagens provocam, no âmbito do grotesco, reações que escapam aos limites do pensamento racional. Para além do tratado de anatomia, questionam os nossos pressupostos acerca da vida, da morte e do corpo. E não deve ter sido diferente para seus contemporâneos.

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Independente de estar relacionada ou não, a obras consagradas, as ilustrações de livros oferecem um grande apelo comercial. As chamadas “edições de luxo” atraem aficionados cujo culto ao objeto vai além da paixão pelo texto. Herança talvez do grande in-fólio, o livro do saber, que se impunha sobre a mesa do estudioso, do letrado.

Pode-se dizer que a presença de signos visuais no interior de um texto remonta às belas ornamentações dos códex medievais. Essas ornamentações, conhecidas como iluminuras traziam, já na letra que iniciava o texto o universo plástico para o leitor. Diante da página escrita, destacava-se um pequeno mundo colorido, que envolvia a letra capitular num espaço que se interpunha, como uma tela ou véu entre a o signo e a página.

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Numa relação de continuidade em relação à cultura do manuscrito, a cultura do impresso herdou as mesmas estruturas fundamentais do códex. O formato, a encadernação e o instrumental que organiza a distribuição do texto na superfície da página, numeração, índice e sumário, e porque não dizer a imagem, mantiveram-se presentes mesmo depois de Gutemberg e mais tarde no livro moderno.

Antes da prensa, os desenhos não eram concebidos numa página separada e depois anexados, num processo editorial, ao texto. Eles nasciam no interior do próprio texto, impondo uma pausa na leitura para a busca espiritual da imagem. Desta forma, a ilustração ocupava o espaço da página que, embora destinado a ela, era imposto em grande parte pelo texto. Por exemplo, o tamanho de uma ilustração no final de uma página, seria maior ou menor conforme o espaço que “sobrasse” para ela.

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A partir do final do século XVI e em incursões pelo século XVII, no Ocidente a inserção da imagem no livro impresso está ligada à técnica da gravura em cobre. Desta forma, impô-se uma disjunção entre texto e imagem: multiplicaram-se os fatores de produção, seus profissionais e suas competências, uma vez que passaram a ser necessárias duas prensas, conseqüentemente duas oficinas e dois ofícios diversos. Desta forma estabeleceu-se, até o século XIX a presença da imagem à margem do texto, inserida na interrupção da disposição dos caracteres gráficos, localizadas no frontispício e nas chamadas pranchas fora-do-texto. Esta separação sistemática possibilitou um aumento considerável de disponibilidade de espaço para a imagem. A ela reservava-se a página inteira. Sendo assim, o artista podia introduzir todos os elementos descritivos do texto que julgasse relevante, não apenas em relação às características dos personagens, como poderia situá-los num espaço bastante conivente para criar a atmosfera do texto.

Em grande evidência, era necessário que o artista gráfico fosse o mais fiel possível aos elementos descritos pelo texto. Ele deveria mostrar com a maior fidelidade possível, o rosto do herói, o espaço em que ele age, personagens em passagens específicas, em suma, duplicar aquilo que o texto já havia se encarregado de mostrar. No máximo, acrescentar aquilo que de antemão já se sabia, sacrificando qualquer

Referências

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