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AS FRÁGEIS IDENTIDADES

No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 118-123)

Em Dom Quixote há dois narradores. Um oficial, Cide Hamete Benengeli, o mouro cuja história é traduzida por outro e recontada por Cervantes, que assume a função de um narrador implícito. Em vários momentos na história o suposto tradutor entra em conflito com o mouro, gerando dúvidas sobre a verossimilhança da história. Cervantes inaugura essa metalinguagem, essa literatura que se refere a si mesma, esses desdobramentos da ficção. Quando num dado momento na primeira parte o cura narra a novela do curioso impertinente, interpolada dentro da história de Dom Quixote, os personagens do romance consideram fictícios os personagens da história, duplicando de tal modo o processo mimético que os leitores acabam sendo jogados para dentro da estalagem onde transcorre a ação. O escritor Jorge Luis Borges comenta que:

“tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores, podemos ser fictícios”44.

Os cervantistas comentam a idéia da junção de narradores, já que o sobrenome Benengeli em árabe, significa “filho de cervo”, portanto, filho de Cervantes. Um narrador está contido em outro.

Há, nesse jogo, uma suspensão da noção de autoria, pois cada narrador “opera sobre um texto que não lhe pertence”. Dalí corroborará com isso a partir do momento em que parece trazer para o livro vários Quixotes, repletos de elementos iconográficos próprios e de referências a outros comentários, sejam críticos ou visuais, que foram feitos em torno da obra, como se fosse, ele mesmo o tradutor e comentarista dessa história, provocando desdobramentos infinitos a partir do momento em que sua própria interferência muda a cada edição. Essa idéia se afirma ainda mais numa edição italiana de 1964, na qual o retrato do pintor foi colocado ao lado, do retrato de Cervantes.

A própria obra parece ter gerado esses desdobramentos. Os iluministas do século XVIII leram no livro uma sátira contra a imaginação e fantasia para exaltar os fatos e a razão. Os românticos, por sua vez, transformaram-na numa apologia da imaginação livre, contra a razão prosaica. Essa percepção coexiste, no século XX com uma visão existencialista que vê em Dom Quixote uma manifestação profética da solidão do homem,

128 do caos da realidade e da desilusão que nutre as camadas do pensamento e da arte. A obra de Cervantes apresenta todas essas visões de mundo, ou possíveis leituras, que com ironia se contrapõem mutuamente. Dalí, evoca todas essas possibilidades de leitura: há elementos grotescos e cômicos, há cavaleiros libertários, há um ser despedaçado, enfim, Dalí traz, nessa diversidade de Quixotes, uma bagagem que foi incorporada à obra de Cervantes ao longo de sua existência. Essa obra foi comentada e analisada milhares de vezes, multiplicaram-se as interpretações e apropriações divergentes. Dalí oferece ao leitor a possibilidade de uma interferência própria, ao confrontar imagens que dão a ele a chance de contemplar e refletir sobre toda essa bagagem histórica e significativa incorporada à obra.

Dessa forma, não é possível que Dom Quixote seja um único personagem que percorra o livro do começo ao fim. Notemos que, inclusive, o próprio personagem vai se construindo à medida que a obra se desenvolve. Dom Quixote, na segunda parte, questiona mais, está mais sábio. Há uma transformação nele e em Sancho.

Essa multiplicidade de perspectivas narrativas adequa-se à multiplicidade de facetas do personagem. Ora um herói, ora um tolo, um sábio, um louco, um santo, nenhuma das facetas dá conta da totalidade de sua personalidade.

A fragilidade das identidades parece permear todo o texto: o fidalgo – de quem não se sabe ao certo o nome – torna-se Dom Quixote, mas também o Cavaleiro da Triste Figura. A camponesa Aldonza Lorenzo vira Dulcinea Del Toboso. O Bacharel Sansón Carrasco é também o Cavaleiro dos Espelhos e o Cavaleiro de la Blanca Luna. Os objetos inertes e os animais também apresentam a mesma capacidade de multiplicar suas aparências. Os moinhos tornam-se gigantes, rebanhos de carneiros são exércitos, estalagens são castelos, bacias de barbeiros são elmos mágicos. Todos os elementos importantes do livro apresentam uma característica de mobilidade, e é justamente essa mobilidade que vai marcar as imagens de Dalí. O céu transmuta-se em visões de combate ou no reino da Princesa Micomicona. Os personagens se transformam. Todas essas pinturas foram realizadas no intuito de trazer ao leitor/observador essas metamorfoses, essas identidades cambiáveis, o efeito alucinatório.

A escolha da aquarela e do desenho45 vem confirmar essa intenção. A aquarela é uma tinta extremamente fluida, transparente e difícil de ser trabalhada. Há um componente

129 do acaso que faz parte dessa técnica. As cores, ao serem colocadas próximas umas das outras, fundem-se e temos então infinitas possibilidades de manchas coloridas que se formam muitas vezes à revelia do artista. Como é uma tinta transparente, o artista trabalha da luz para a sombra, contrariamente a outras técnicas como o óleo, em que as zonas escuras são, tradicionalmente, marcadas primeiro e os toques de luz aplicados nas camadas superiores. A aquarela exige também a rapidez do artista. Devido a uma rápida secagem, para obter seus efeitos luminosos característicos deve-se trabalhar com ela ainda molhada. Podemos ver que Dalí trabalha aproveitando o máximo dessa característica da aquarela, que é a capacidade permanente de surpreender. Ele coloca a tinta no papel e as cores vão fundindo-se umas às outras. Uma vez estabelecida a superfície de manchas, de modo semelhante à leitura de um teste psicológico, ou ao processo do ver-em já mencionado neste trabalho, Dalí começa a acrescentar detalhes, de forma que as manchas vão constituindo uma forma reconhecível. No entanto, apenas os detalhes essenciais são marcados. Podemos então contemplar a imagem como uma visão, algo em movimento que adquire um sentido diante do nosso olhar. É o caso, por exemplo, de um dos retratos de Dom Quixote que aqui reproduzimos.

130 Essa possibilidade da dupla visão é evocada por Dalí ainda mais diretamente pela sugestão dos testes psicológicos. Dawn Ades afirmou em relação a Dalí que este apresentava seus temas “como se [os psicanalistas] fossem um bem comum, do mesmo modo que a iconografia religiosa era um bem comum na Idade Média”. Numa das ilustrações há uma imagem que sugere as famosas imagens de tinta do teste de Rorschach46. Os borrões negros nos conduzem à visão de um enorme gigante, relacionando assim a imagem à cena da batalha contra os moinhos. Dalí traz uma novidade no grande conjunto iconográfico que a obra de Cervantes gerou ao longo da história. Ele contagia o leitor com a loucura de Dom Quixote, de forma que ele mesmo participe dos delírios do personagem. As visões e os delírios são compartilhados e por vezes é o próprio leitor que “alucina”, como é o caso das ilustrações em que o leitor contempla o personagem, que por sua vez contempla uma paisagem surrealista que se move à sua frente, com um particular: o próprio Dom Quixote é o produto alucinado da mente do artista, um misto de objeto, animal, receptáculo. Como que contaminado pelo processo de magia, o leitor adentra esse universo alucinatório.

46Trata-se de um teste projetivo composto por 9 ou 12 pranchas de manchas em preto e branco mais sete

coloridas, todas marcadas pela simetria. A ambigüidade estrutural das manchas de tintas usadas neste teste permite uma grande variedade de interpretações, de modo que há a probabilidade do observador escolher espontaneamente um que se relacione com seu próprio estado mental. Foi desenvolvido e publicado pelo

131 A relatividade da fronteira entre real e fictício, a junção de fatos com visões, o “real” transformado em “coisa”, são comuns tanto na obra de Cervantes quanto nas postulações surrealistas. O próprio cavaleiro andante reconhece que todas as coisas dos cavaleiros parecem tolices, quimeras e desatinos, o que indica que Dom Quixote tem consciência de seu delírio, de sua ficção. O personagem sabe que traz na cabeça uma bacia, mas quer vê-la como um objeto mágico. Esse delírio voluntário aproxima-se do método paranóico-crítico de Dalí, método que realiza o princípio de imagem ultra-concreta: o não real é descrito com tal realismo que nos parece real e concreto.

psiquiatra suíço Rorscharch (1884-1922) em 1921 como Psycodiagnostik. Cf. Tratado de Psiquiatria. 6ª. Edição. Vol. 3.Porto Alegre, Editora Artmed, 1999

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No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 118-123)