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DOM QUIXOTE E DALÍ

No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 81-118)

91 Aquele que se propõe a decifrar o Dom Quixote por Salvador Dalí, tem que encontrar a chave. E essa chave não é a mesma que abre as portas do universo da ilustração convencional. A chave que nos permite penetrar o domínio do texto ilustrado tal como Dalí o concebia é outra e tem que ser descoberta em uma dimensão diferente, que guarda os seus próprios segredos.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade

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O contexto

Diante das transformações nas artes e da mudança de percepção por parte do público no século XX, não poderíamos esperar que, ao ilustrar Dom Quixote, Dalí procedesse da maneira tradicional, submetendo seus desenhos conforme o desenvolvimento narrativo da novela de Cervantes. Como vimos anteriormente, o surrealismo, abolindo definitivamente os processos miméticos de ilustração, esperava fazer com que o leitor fosse transportado para uma nova realidade, possibilitando uma desorientação acerca das expectativas habituais.

Outros fatores históricos que marcaram o século XX tiveram certamente efeito sobre Dalí e afetaram sua proposta artística. No momento em que fez sua primeira série de imagens para Dom Quixote, em 1945, o pintor estava situado no grande centro das vanguardas artísticas.

Nova York começou a se tornar um importante pólo cultural no início do século. Várias exposições foram organizadas reunindo todas as tendências artísticas européias do século XIX até aquele momento1. Com a eclosão da Primeira Guerra, muitos artistas europeus lá se refugiaram, entre eles, Marcel Duchamp e Francis Picabia, que junto com o fotógrafo Man Ray formavam um grupo ativo de dadaístas.

O surrealismo chegou em Nova York, na década de 40 quase en bloc, contando entre seus exilados com o próprio Breton e outros pintores famosos como Max Ernst (1891- 1976), Roberto Matta (1911 - ), Salvador Dalí e André Masson (1896-1987).

Peggy Guggenheim, casada com Ernst, cedeu ao grupo um centro para suas atividades, a Art of This Century Galllery, inaugurada em 1942. Os surrealistas logo começaram a conquistar adeptos do movimento em solo americano. Desde a depressão da década de trinta a arte americana havia sofrido um retraimento e os olhares voltavam-se às vanguardas européias. Foi o surrealismo que reacendeu os movimentos artísticos nos

1 Um evento importante foi o Armory Show,em 1913 Exposição que, sob a curadoria de Arthur B. Davis,

reuniu o mais amplamente possível todas as tendências artísticas da época. Com a enorme difusão pelo país através da imprensa e da reprodução das obras sob a forma de cartões, a arte do século XX encontrou um novo tipo de cliente, passando dos milionários colecionadores de arte européia a pessoas cultas com interesse nas obras contemporâneas.

93 Estados Unidos. Pode-se dizer que, a partir dele se originaram outros, como o Expressionismo Abstrato2.

Nesse grande centro urbano, estavam situados os artistas que reagiam às grandes e rápidas transformações do século XX, e por meio de suas experimentações buscavam novas propostas artísticas.

Essas experimentações artísticas se relacionam intimamente com o surgimento da cultura de massa e estabelecem com ela um diálogo do qual depende a própria sobrevivência das artes.

O surgimento do cinema e das artes industrializadas em geral, como o disco, levaram a um questionamento das artes que estavam inseridas no velho processo de produção, o artesanal. O cinema é o grande marco desse período. Sua popularização levantou ao mesmo tempo uma suspeita e um fascínio. A minoria culta chocou-se. Acostumada a freqüentar concertos e museus, repentinamente viu a massa comprando ingressos aos milhares. Com assombro via formar-se o star system, a massa cultuando Rodolfo Valentino, que em pantomima e entrecortado por legendas que diziam “eu te amo!”, multiplicava-se em várias salas de projeção espalhadas pelo mundo.

O cinema também exerceu uma influência, no sentido formal e poético através do milagre de manipulação de imagens. Com o surgimento dos efeitos especiais, repentinamente o monstro se transformava diante dos atônitos espectadores. O teatro utilizava recursos ilusionistas semelhantes, mas era sempre ao vivo. Os recursos técnicos do cinema permitiram um tipo de articulação jamais vista até então3.

2 Arshile Gorky é considerado o artista da transição entre o surrealismo e o expressionismo abstrato que tem

como principal expoente o pintor Jackson Pollock. É interessante notar a semelhança entre um depoimento de Pollock com um trecho do Manifesto Surrealista de Breton, de 1924, onde a idéia de uma “dinâmica contínua” que marca a produção do primeiro parece derivar da escrita automática proposta no manifesto. Disse Pollock em 1947: “Quando estou na pintura, não tenho consciência do que estou fazendo. Só vejo o que fiz depois de um período de ´conscientização`. Não tenho medo de fazer mudanças, destruir a imagem, etc., porque a pintura tem vida própria. Tento deixar que ela se expresse. É só quando perco contato com a pintura que o resultado é ruim. Caso contrário, há pura harmonia, uma troca tranqüila, e a pintura fica ótima”. André Breton no Manifesto: “ Depois que estiver acomodado no lugar mais favorável possível para concentrar-se em si, peça que lhe tragam algo com que escrever. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo que conseguir. Esqueça sua genialidade, seus talentos e os dos outros. Convença-se de que a literatura é o caminho mais triste que leva a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bem depressa para não lembrar e para fugir à tentação de reler o que já escreveu”. Cit. em Lucie-Smith, Edward “Movimentos artísticos a partir de 1945”, SP, Martins Fontes, 2006.

3 Walter Benjamin trata da questão do impacto que as técnicas de reprodução da obra de arte geraram no

contexto das produções artísticas e da sua recepção no famoso texto “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução” em Obras escolhidas, Vol.I, São Paulo: Brasiliense, 1994. Cf. Benjamin “alargando o mundo

94 As artes, diante dessas transformações, começaram a questionar sua própria identidade, colocando-se a questão da sua sobrevivência diante das artes industrializadas. Só no momento em que as artes encontrassem o que é próprio delas, insubstituível, é que poderiam atestar sua sobrevivência ao cinema e às artes do novo modo de produção.

Muitas foram as experiências nesse processo de busca de identidade. As artes abriram-se para as mais diversificadas e abertas propostas. Um elemento importante passou a operar nos processos de criação: o acaso.

John Cage (1919-92), na década de quarenta, começou a compor sua música com fragmentos aleatórios. A cada execução, a mesma música soava diferente. Uma das idéias básicas de Cage, que se aproxima muito da proposta surrealista, era “desfocar” a mente do espectador: o artista não cria uma obra separada e fechada, mas sim algo que torna o espectador mais aberto, mais consciente de si mesmo e de seu ambiente. Cage diz:

“Nova música, nova audição. Não uma tentativa de entender o que está sendo dito, porque, se algo estivesse sendo dito, os sons teriam forma de palavras. Apenas uma atenção à atividade dos sons”4.

Nas artes plásticas, Jackson Pollock rompeu com a principal ferramenta do pintor, o pincel, e deixou que respingos caíssem aleatoriamente sobre o suporte. Sua intervenção no quadro era pouca, se comparada ao papel do observador, que se perdia diante desses enormes painéis que pareciam um perpétuo continuum.

O que é chamado de acaso em arte, vale ressaltar, é um tipo de atitude do artista, que consente em abrir mão de parte do controle da obra. O senso comum entende o acaso como se este fosse o ato de abrir mão totalmente do controle. Na verdade ele abre mão apenas de uma parte. Se o compositor vai sortear altura, notas, intensidade, ainda está sob seu controle a própria decisão de como vai proceder ao sorteio e de como manipulará os resultados obtidos. O pintor continuava a usar tinta e tela. Pollock ainda segurava o instrumento que fazia com que os respingos caíssem na tela e, de uma forma ou de outra, guiava sua trajetória. O procedimento mantém o controle apenas de parte do processo, deixando outra para o acaso. O produto, porém, é imprevisível.

dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido visual como no auditivo, o cinema acarretou, em consequência, um aprofundamento da percepção”.

95 Houve um grande intercâmbio das artes, que buscavam nas mais diversas fontes possibilidades novas de criação.

Também foi significativo para a mudança de percepção da época, a difusão cada vez maior das técnicas psicanalíticas. Ficou cada vez mais evidente de que há algo por trás de tudo o que é visto ou de que as pessoas não são apenas o que elas mostram. A idéia que se formava era de que havia algo oculto em cada coisa que se julgava conhecer.

Em 1933 Dalí publicou um artigo na revista Minotaure sobre o tema da “beleza horrível e comestível” presente na art noveau. Essa conjunção dos termos “horrível” e “comestível” era típica de Dalí, que foi nesse contexto aplicada às formas da arte decorativa. Na página oposta havia uma série de fotografias de Brassaï, nas quais apareciam objetos encontrados ao acaso, como bilhetes de ônibus dobrados ou um papel amassado, fotografados isoladamente e deslocados de seus contextos habituais. O fotógrafo enquadrou-as de forma que ocupassem a totalidade da fotografia e que pudessem ser vistas em todos os seus detalhes. Pôde assim capturar formas incomuns desses objetos que fantasmagoricamente apareciam como a sobra descartável da cidade moderna. O artigo de Dalí também celebrava a arquitetura de Gaudí em Barcelona, e era o perfil dessa arquitetura que Dalí comparava, por analogia visual, com uma fotografia feita por Brassaï de uma entrada art noveau do metrô de Paris.

Depois de Psicologia da Vida Cotidiana, de Freud, os lapsos que ocorrem no desenrolar de uma conversa, outrora despercebidos, adquirem significados inesperados. Abre-se um leque de possibilidades de análise da realidade outrora perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas. Os surrealistas valorizavam isso e acreditavam que esse era um espaço de manifestação do poético, do maravilhoso, do autêntico que se escondia atrás das aparências da realidade.

As artes visuais, nesse processo, acabaram por assumir que seu papel, definitivamente, não é a imitação do real, e daí outras possibilidades surgiram: o abstracionismo, o geométrico, ou seja, a arte em sua própria especificidade.

Os artistas ligados ao movimento surrealista foram atraídos pela cultura industrial. Os objetos cotidianos interessavam pelo mistério que os circundava, pelos aspectos ocultos que revelavam quando não estavam mais em moda. A possibilidade de “surrealizar” o

96 mundo estava unida ao uso dos novos meios de expressão da cultura de massa e aos materiais produzidos por ela.

Dalí desenvolveu uma linguagem que se encaixou perfeitamente na indústria. Dalí fez cinema, queria vender muito, tinha uma estratégia de marketing. Dalí entendeu muito bem esse contexto industrial, e se tornou um dos artistas mais reproduzidos da História da Arte. Suas obras foram estampadas em camisetas, calendários, capas de cadernos, pôsteres. Ele foi o primeiro artista a entender o poder da fotografia, da qual fez uma extensão de sua arte. A fotografia foi fundamental para Dalí em seu processo de auto-transformação em mito.

Há dois momentos na série de entrevistas que Alan Bosquet realizou com Dalí na década de 60 que mostram, no meio de suas conhecidas “explosões verbais” sua consciência dos processos industriais. Diz ele:

“Segundo as estatísticas, este quadro, do qual você não gosta [ele se refere a sua Ceia] é o best-seller de todos os quadros modernos. Foi muito mais reproduzido do que todos os Leonardo da Vinci e Rafael. Minha estratégia venceu: certa ocasião disse para mim que iria pintar telas mais populares do que qualquer coisa no mundo. O resultado foi maravilhoso. Eu diria mesmo que esse quadro é mil vezes melhor do que toda a obra de Picasso reunida. Um único quadro!”

E, em outro momento da entrevista:

“Pouco me importa ser considerado um pintor, um artista de televisão ou um escritor. O principal é que exista um mito Dalí, mesmo incompreendido, e mesmo inteiramente falso. Sou uma personagem extraordinária, que não se consegue classificar. Isso alimenta e endurece o queijo de gruyère total de minha personalidade.”5

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A Proposta

Salvador Dalí aderiu ao movimento surrealista em 1929. Ao ingressar no grupo liderado por André Breton, Dalí imprimiu nova força ao movimento. Com seu espírito arrojado levou a arte surrealista ao cinema, ao teatro e à dança. No início causou grande admiração nos membros do grupo, o próprio Breton não poupou elogios e reconhecia publicamente as qualidades do pintor. Porém esse entusiasmo durou poucos anos. Em 1934, num momento de severa disputa e troca de ironias com Breton, foi organizado um julgamento que resultou em sua expulsão. Dalí sabia que havia se transformado em expoente máximo do surrealismo, a ponto de, num de seus arroubos verbais, declarar que a diferença entre ele e os surrealistas “era que ele era surrealista”.

O movimento, na década de 40 não era mais o mesmo de sua época áurea, mas os artistas já haviam plantado as sementes que germinariam em solo americano, dando assim continuidade ao movimento que teve praticamente dois finais: um simbólico, com a morte de André Breton em 1966 e outro, como manifestação artística, com a morte de Dalí em 1989.

Salvador Dalí soube usufruir, nesse período em que passou nos Estados Unidos, da estrutura capitalista de museus e galerias, da crise do conceito de arte, que cobrava o novo e o original, fazendo com que o artista buscasse imprimir sua marca num mundo onde cada vez mais marcas visuais apareciam diante dos receptores. É significativa também a influência da propaganda, que nascia com força na década de 40. Dalí soube conquistar a condição de celebridade que era conferida às personalidades do mundo cinematográfico.

Dali certamente foi atraído pela personalidade de Dom Quixote. É indiscutível que, do ponto de vista comercial, ele seja o artista ideal para simbolizar os 400 anos de Dom

Quixote6. Dalí transformou-se em personagem de si mesmo e com ousadia e explosões

6 Na Espanha, berço do autor, foi lançada uma edição comemorativa dos quatrocentos anos, extremamente

luxuosa, destinada a ser o grande objeto símbolo da importância dessa obra na literatura ocidental. Trata-se de uma nova versão de Dom Quixote ilustrada pelo pintor catalão Salvador Dalí, apresentada pelo grupo Planeta e a Fundação Gala-Salvador Dalí, ao custo de 3.600 euros, numa tiragem de apenas 998 exemplares. Conforme divulgação da editora, por ocasião do lançamento, se trata de “una obra de arte única, irrepetible,

limitada y numerada. Edición limitada a 998 ejemplares en todo el mundo, numerados del 1 a 998, com certificación notarial, exclusiva, para bibliófilos y colecionistas. El número 1 de esta edición exclusiva, fue entregado a su Majestade el Rey Don Juan Carlos I el dia 6 de octubre de 2003 en el acto de presentación de esta auténtica obra de arte en el Teatro- Museo Dalí”. Essa apresentação, que parece anacronicamente saída

99 verbais criou uma imagem perturbadora que dificilmente conseguia contestar as qualidades que atribuía a si mesmo: gênio, louco, divino e genuinamente surrealista. Ganhou muito dinheiro e foi extremamente popularizado. Não há dúvidas de que Dalí vende. Dalí soube se inserir como produto na sociedade de consumo, seja no que diz respeito às suas obras quanto no que diz respeito à sua imagem.

Alain Bosquet em sua série de entrevistas realizadas com Dalí nos apresenta inicialmente os aposentos do pintor e sublinha: "Com efeito, entra-se na casa de Dalí como num moinho de Cervantes"7. Não há dúvidas que, além dos entrelaçamentos de nacionalidade, há um relacionamento forte entre os dois personagens, o cavaleiro de Cervantes e aquele criado por Dalí para si mesmo.

É impossível delimitar as fronteiras da teatralidade, da genialidade e da insanidade do pintor. Extremamente culto e capaz de executar obras de imensa maestria técnica, deve- se ter cuidado em julgar o artista pelo estereótipo em que se transformou. Entre diversas obras claramente apelativas e comerciais, existem obras geniais e de grande sensibilidade, dentre as quais incluímos as gravuras dedicadas ao Quixote. Como já disse o crítico Jean Cassou, “Dalí é artista apesar de si próprio”8.

Dali não pôde deixar de exibir em sua obra monumental uma imensa erudição em relação às tradições artísticas. Era seu desejo emular os artistas do Renascimento, de forma que não limitava seu talento somente à pintura, mas atuou também como escultor, cenógrafo, desenhista e escritor. Para Dali, pintura e literatura eram praticamente equivalente e o movimento surrealista enfatizou exatamente essa relação entre o poético e o pictórico. Em sua concepção todos os meios serviam para as manifestações artísticas. Dedicou-se ao cinema e não apenas um cinema surrealista, trabalhou com Alfred Hitchcock e Disney9.

Sendo ele mesmo um leitor voraz e portador de uma vasta cultura, se converteu também em escritor. Sua obra escrita inicia-se por volta de 1919, através de manifestos e

da pena de Cervantes, nos revela que ainda hoje as edições luxuosamente ilustradas atraem os colecionadores.

7 Bosquet, op.cit.

8 Coli, Jorge. Ponto de Fuga, SP, Perspectiva, 2004

9 Breve resumo das ambições cinematográficas de Salvador Dalí, filmes nos quais trabalhou como diretor ou

colaborador: Um cão andaluz, 1929 e A Idade do Ouro, 1930 com Luis Buñuel. Spellbound, 1945 com Alfred Hitchcock. Auto-retrato mole, 1966 com Jean-Christophe Averty e Robert Descharnes. Inacabados ou inéditos: Destino, 1947 com Walt Disney. História prodigiosa da Rendeira e do Rinoceronte, 1954 com Robert Descharnes.

100 artigos publicados em revistas em que ele refletia sobre os rumos estéticos das artes catalãs, rumando depois para uma produção literária que seguiu até praticamente o final de sua vida, dentro da qual destacamos sua autobiografia, A vida secreta de Salvador Dalí, e outras obras como: Faces Ocultas, Diário de um gênio, Sim ou a paranóia.

Para alguns clássicos que ilustrou, além do Dom Quixote, fez emergir dos textos o que nestes lhe interessava particularmente, e não deixou, no entanto de aprofundar-se em seu próprio mundo, suas descobertas técnicas e iconografias próprias. Seu universo pessoal, suas concepções, suas constantes mudanças se plasmam nestas ilustrações.

Dalí, como surrealista, interessado em cultivar uma espécie de mitologia moderna, voltou-se a personalidades e personagens do passado, procurando resgatá-los em seus trabalhos. Personagens como William Tell, Dom Quixote, El Cid, e pintores e autores como Vermeer, Meissonier, Cervantes, Lautréamont. Não lhe importava se os personagens eram fictícios ou reais, Dalí os evocou diversas vezes em seus trabalhos.

A relação de Salvador Dali com Cervantes iniciou-se em 1945, época em que vivia em Nova Yorque. Seu pai lhe enviou uma carta que parece ter sido crucial para iniciar o empenho do artista que, tocado pelas palavras “Es uma obra em la que tus facultates

podrán sobresalir extraordinariamente”10 imediatamente iniciou sua série de

experimentações que resultou na ilustração da obra. Não deixa de haver um forte laço cultural: o autor, castelhano, nascido em Alcalá de Henares. O pintor, catalão. O personagem, um cavaleiro manchego.

Foi também nesse período, em que viveu nos Estados Unidos de 1940 a 1948, que Dali declarou-se sentir-se “capaz de continuar a conquista do irracional” e converter-se “simplesmente em um clássico e prosseguindo a busca na Divina Proporção, interrompida desde o Renascimento”11. Isso mostra que para Dalí o tempo tinha outra relação. Mexer com Velazquez ou Cervantes na modernidade era pertencer a um processo atemporal muito maior, uma espécie de grande inconsciente onde tudo existe simultaneamente.

Para ilustrar as obras literárias, ou para produzir portfólios que as tivessem como base, Dalí pedia a Gala, sua esposa, que lesse para ele em voz alta. Embalado pela leitura,

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