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O Livro Ilustrado no Surrealismo

No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 44-48)

Os surrealistas ampliaram as potencialidades do livro ilustrado. Esse movimento que valorizou a imagem, já pressupunha sua presença no texto.

Não apenas os artistas do movimento ilustraram seus contemporâneos, como foram buscar os “antecessores”. Apropriaram-se de artistas do passado como se fossem seus contemporâneos, porque viam neles proposta de valores revolucionários.

Assim, voltaram-se para Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Lautréamont. Este último em especial e seus Cantos de Maldoror, pareciam colocar em prática os anseios do movimento, não apenas através da fúria com que estilhaçava as regras morais e os próprios padrões literários, mas também pelo padrão estético proposto pelo texto.

As comparações presentes no texto e que se mostram através de uma sucessão de “belos-como”, fornecem um novo padrão estético que se evidencia na total subversão do conceito de beleza, que Lautréamont faz através da figura retórica da comparação, cujo mecanismo será totalmente desmontado. A cumplicidade implícita é desvinculada de um modo particular das leis da lógica e da noção de real, tal como a compreende o senso comum. Essas comparações acabam por gerar imagens estranhas e irreais, vertendo-se em algo que não encontra, para ser qualificado, um comparante do mundo cultural a que pertencemos.

Entre muitos “belo-como” presentes no texto, o mais comentado pelos surrealistas será:

“É belo como a retratilidade das garras das aves de rapina; ou ainda, como a incerteza dos movimentos musculares das feridas das partes moles da região cervical posterior; ou melhor, como essa ratoeira perpétua, que sempre é armada de novo pelo animal capturado, que pode pegar sozinha os roedores, infinitamente, e funcionar até mesmo escondida sob a palha; e, principalmente. Como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação de uma máquina de costura e um guarda-chuva”18

Essas novas possibilidades para a imagem, através da justaposição de elementos díspares e o revolucionário texto, repleto de imagens cinéticas em constante

18 Lautréamont, “Os Cantos de Maldoror”, em Obras Completas, (tradução Cláudio Willer, São Paulo:

metamorfose, sugeriram aos surrealistas novos caminhos em relação a linguagem, seja ela verbal ou visual.

Atentos a uma nova relação entre texto e imagem, agora desvinculadas dos processos simbólicos tradicionais, os surrealistas buscaram, na criação de seus livros, um jogo ousado de simultaneidades que alterou o estatuto semântico do verbal e do visual. Um exemplo disso são as parcerias que atuaram na produção do livro tipicamente surrealista, como o trabalho de Paul Éluard e Man Ray em Facile19, onde os poemas eram inseridos nas fotografias, nas quais contornos de corpos nus ditavam a diagramação. Como a colaboração se dava desde a gênese do livro ilustrado, com as imagens e o texto nascendo simultaneamente, fica difícil saber se cabe neste caso a utilização do termo “ilustração”.

Os artistas do movimento aproveitaram a liberdade a eles concedida pelo texto e responderam com intensidade às provocações suscitadas por ele. A preocupação não era traduzir o texto, mas assegurar a continuidade de seu fantasma, ou a produção de uma espécie de eco distorcido. As ilustrações de Magritte e as de Dalí para os Cantos de Maldoror mostram essa capacidade. Apesar da multiplicidade de obras produzidas e ilustradas pelos surrealistas, todas apresentam em comum um contexto de metamorfoses e justaposições. Fazem com que o leitor vivencie essa dissolução dos processos miméticos e as relações estáveis. Os ilustradores, ao invés de considerar o texto como um modelo para o qual têm que providenciar um signo visual equivalente, tratam-no como um estímulo para sua imaginação, colocando-o em contato com suas obscuras e remotas forças inconscientes.

O livro surrealista tende a negar os traços e a referencialidade do mundo reconhecível. Sendo assim, o leitor é jogado de uma cômoda aderência, para um universo marcado pela transformação, numa desconcertante paisagem onde novos elementos emergem, onde a terra coabita o espaço do céu. Contornos e cores não podem ser circunscritos por linhas. A paleta tem que ser reinventada.

O leitor é conduzido a uma participação visionária de um outro mundo, e isso é especialmente forte nas obras ilustradas por Dalí. Destacamos, além da já citada obra de

19 Paul Eluard, Facile, fotografias de Man Ray (Paris: G.L.M., 1925) apud Renée Riese Hubert, Surrealism

Lautréamont e o Dom Quixote, objeto de nosso estudo, o conjunto de imagens que Dalí executou para Alice in Wonderland de Lewis Carroll20.

André Breton “ilustrou” Nadja com fotografias de Jacques-André Boiffard que desorientam o leitor habituado com a idéia de cópia da realidade ou de função documental, pois a ambigüidade de seu relacionamento com o texto, ao invés de assumirem o papel descritivo ou documental, são demonstrações, senhas, documentos, blefes, falsificações21, segundo Walter Benjamin. Breton se referia às fotografias como “ilustrações fotográficas”, as lentes são focadas nos objetos reais como se fossem objetos imaginados. Num processo de “iluminação profana” desloca-os para uma rede imaginária. Desde o princípio se verifica, em Nadja que as inter-relações entre imagem e palavra se desenvolvem de forma enigmática.

Para Breton, a fotografia tem que se distanciar da documentação e reproduzir seu olhar subjetivo sobre as coisas e as pessoas. Isso vai ao encontro da concepção de Johannes Molzahn de que “a fotografia seria uma das mais eficientes armas contra a intelectualização, contra a mecanização do espírito”22. Em outras palavras, seria um agente ativo na guerra surrealista contra a dominação burguesa.

Dessa forma, as “ilustrações” compartilham com o texto o processo de dissolução e depreciação estabelecido das técnicas ficcionais. Tanto as palavras, quanto as imagens falham em representar. É no final do livro que o leitor entende que Breton subverteu a banalidade da fotografia e metamorfoseou-a no maravilhoso.

Hubert nos lembra que as fotografias contidas em Nadja devem ser vistas numa perspectiva verbal ou mesmo literária, mesmo porque dois terços delas contém escritos. Porções de textos mais ou menos fragmentadas levam o leitor a identificar as imagens decifrando as palavras: nomes dos edifícios, comentários acerca dos desenhos, reprodução de páginas de livros. Mesmo aquelas nas quais não se tem a presença de palavras, o observador estabelece elos verbais – retratos dos escritores surrealistas, cenas de peças, pinturas que apresentam títulos, num jogo intertextual intrincado.

20 Alice in Wonderland, Woodcuts by Salvador dalí. Randon House, 1969.

21 Benjamin Walter, “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”em Obras completas:

Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1992 p.174

22 “photography will be one of the most effective weapons against intellectualization, against

mechanization of the spirit” apud Hubert, Renée Riese, Surrealism and the book. USA, California Press, 1988

O texto não segue uma clara seqüência narrativa, mas a estrutura da fantasia de Breton, que assume o papel do flâneur, do modo como Baudelaire definiu o termo no século XIX. Esse observador compulsivo da realidade manifestava o olhar dos surrealistas sobre os objetos antiquados e o obsoletos, que segundo os integrantes do movimento, escondiam as mais bizarras coincidências que assombravam, e portanto caracterizavam, as experiências da vida moderna.

As presenças interativas entre o texto verbal e os signos visuais, eliminam os paralelismos e forçam o leitor a uma série de perturbações que se repetem, cada qual conduzindo o prazer estético de decodificar um artifício oculto.

No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 44-48)