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CABEÇAS QUE EXPLODEM, AUSÊNCIA DE ROSTO

No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 143-148)

Para definir a idéia de caos, de desintegração da ordem existente, os surrealistas buscavam em suas obras a fragmentação, a decomposição, a dispersão. Numa era de integridade perdida, o mundo era constantemente evocado aos pedaços56.

Além do sentimento de vazio e desilusão que desmanchava as expectativas otimistas anteriores à guerra, também é marcante na retratação desses corpos fragmentados, a influência das descobertas de Freud e da psicanálise.

Devo ressaltar que não é nosso objetivo tentar mostrar nenhuma espécie de coerência entre as postulações ou obras surrealistas com a ciência psicanalítica, mas apenas mostrar como essas teorias influenciaram a produção de determinadas obras artísticas.

Essa influência é inserida num contexto em que a arte buscava, desde meados do século XIX, novos parâmetros formais. Os artistas voltaram-se a uma valorização do “irracional”, do espontâneo, de uma expressão livre das amarras da tradição, que ditava a eles o que e como pintar. Foi com esse sentimento que os artistas começaram, no início do século XX, a interessar-se pela arte africana, naifs, de loucos internados em hospício57.

A descoberta do inconsciente por Freud veio reforçar essa tendência. O mundo artístico estava abalado com a máxima de Cézanne – a natureza está no interior – e pela ênfase expressionista na subjetividade. Desta forma, o inconsciente freudiano se tornou possibilidade de fonte temática e formal para a criação artística. A noção de inconsciente cabia perfeitamente no ideal de retorno às origens que a arte almejava e permitia, pela oposição ao racional, consciente, intencional, a irradiação de imagens livres das convenções estéticas.

56 Ver Moraes, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. A autora aponta uma

trajetória nas artes visuais em que a fragmentação da consciência, fenômeno marcante do pensamento da modernidade, transparece na desfiguração da anatomia humana. O corpo não apenas se desmaterializa em direção a uma pintura abstrata, mas sofre um gradual processo de desantropomorfização, em que sua figura é fragmentada em direção a sua destruição. Embora faça reservas em relação a essas atribuições diretas, em se tratando de arte pictórica esse estudos faz analogias muito ricas em relação ao movimento surrealista com a metáfora de Lautréamont já evocada diversas vezes nesse trabalho e certas manifestações artísticas que retratam a desantropomorfização da figura humana.

57 Em 1922, Hans Prinzhorn, psiquiatra e crítico de arte alemão publicou diversos trabalhos pictóricos

recolhidos durante anos em instituições psiquiátricas alemãs. Esse livro causou um grande impacto no meio artístico. Paul Klee fez diversas referências a esses trabalhos.

153 Os surrealistas, então, passaram a adotar procedimentos plásticos que aproximavam a concepção da criação artística do campo que a psicanálise designa como seu: os atos falhos, os sonhos, os sintomas neuróticos, os lapsos de linguagem.

Além do que, Freud estabelecia um parentesco entre a neurose e a criação artística, entre os sintomas neuróticos e as obras de arte.

“O neurótico, diz ele, é alguém que se rebela contra a realidade que se opõe à satisfação de seus desejos e se refugia então na doença. Se esse rebelde possuir, contudo, talentos artísticos, ele encontrará na criação um desvio que o leva de volta à realidade, graças ao fato de que outros com ele compartilham sua obra. Em suma, o artista aspira a uma espécie de auto-liberação e através de sua obra ele a partilha com outros indivíduos que sofrem a mesma restrição inevitável a seus desejos. É nesta medida que o artista daria forma, em sua obra, às suas fantasias narcísicas e eróticas – idéia que encontrou, no mundo da arte, diversos e irados oponentes. As forças pulsionais em jogo na criação artística, insiste o criador da psicanálise, que levam à psiconeurose e à formação das instituições sociais.”58

O cadáver exquis, as colagens e frottages de Max Ernst e o método paranóico crítico de Dalí nasceram do entendimento e incorporação dessa idéia.

O corpo dilacerado, que sempre foi esteticamente explorado pelas artes plásticas desde pelo menos o século XVI, aparece aqui como uma nova possibilidade, como símbolo das manifestações inconscientes: o medo da castração, o impulso da morte, o estranhamento59.

Partes desmembradas ou mutiladas evocam o estranho, mas também o podem fazer um texto ou uma imagem “desmembrada” em que as peças são justapostas de um modo não familiar. O mesmo ocorreria com um “duplo”, um espelho, um espírito guardião ou uma imagem repetitiva.

Algumas figuras de Dalí apresentam Dom Quixote de uma maneira que, aparentemente desvincula-se do texto. Trata-se da figuração do cavaleiro desprovido de rosto ou com sua cabeça explodindo. Estamos no contexto de um movimento que aponta para o rompimento com todas as identidades tidas como estáveis. Tudo é submetido ao

58 Rivera, Tânia. Arte e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

59 Um dos estudos de Freud, no qual elabora o medo da castração foi desenvolvido a partir do conto de

E.T.A.Hoffmann, “O Homem de Areia”. O fotógrafo Hans Bellmer produziu uma série de fotografias de bonecas desmembradas, depois de ter assistido a uma apresentação do conto.

154 imaginário e ao desejo. Ao proclamar a crise do objeto, os surrealistas pretendiam que esses jamais fossem idênticos a si mesmos. O visível é apenas uma das possibilidades. Se o objeto permanece impalpável, se sua presença não oferece nenhuma resistência material, ele resiste a se transformar no objeto ordinário, conservando assim sua integridade e sua realidade total. Dalí deixa Dom Quixote desprovido de uma face identificadora. Dalí aqui parece querer, ironicamente, descolar Dom Quixote do lugar comum, ou da face tradicionalmente impressa por Doré no imaginário popular.

Ao mesmo tempo, temos o tema do duplo, que vai culminar na angústia do período surrealista em referência aos seus manequins ou simulacros. O duplo aqui se separa de seu protótipo, seu espectro se condena a uma errância solitária pelo mundo. Essa temática aparece com variações na literatura desde o século XVIII. Uma das possibilidades desse “espectro” é a identificação, dentro da angústia surrealista do homem com um cavaleiro perdido em um mundo de rápidas transformações, onde sua identidade é colocada em jogo e não resta mais nada a não ser travar um combate com essa realidade alucinada.

155 Dalí, além de eliminar a possibilidade de uma identificação única para o personagem, ainda o destitui, em alguns momentos, de seus atributos racionais. Sua cabeça, que parece estar em permanente explosão, evoca a recusa em fixar sua forma humana segundo qualquer possibilidade estável ou consistente. Os surrealistas acreditavam que a chave para a ampliação da consciência era o êxtase. André Breton, ampliando a metáfora do belo de Lautréamont, terminou Nadja proclamando que doravante a beleza seria convulsiva. Em sua obra intitulada Hidden Faces (1943), Dalí transformou a beleza convulsiva de Breton em comestível. Max Ernst ainda foi mais longe: “a identidade será convulsiva ou não será”. Os três transformam, paulatinamente, as concepções estéticas em algo visceral60. A beleza, aqui num sentido amplo e moderno do termo, passa pela convulsão, pelo digerir e por fim, identificando-se com a própria identidade, é explodida.

Essas explosões marcam especialmente as imagens que pertencem ao portfólio de 1956-57. O editor francês Joseph Foret convenceu Dalí a trabalhar com a técnica da litogravura61. Foret forneceu a Dalí inúmeras pedras antiqüíssimas e assim em 06 de

Novembro de 1956, o pintor lançou-se ao desafio de criar um segundo projeto de Dom Quixote, mediante uma técnica totalmente nova para ele. Dalí queria que seu trabalho fosse totalmente diferente daquele produzido em 45. Utilizando o acaso como possibilidade primeira da criação, o pintor recorreu a vários artifícios. O primeiro deles foi a utilização de um arcabuz do século XV, que, ironicamente foi o tipo de arma que feriu Cervantes na famosa Batalha de Lepanto em 1671. Ele disparava balas repletas de tinta diretamente na superfície das pedras. Também recorreu aos mais variados objetos de forma que produzissem um efeito curioso ao derramar tinta sobre a superfície. Dalí então trabalhava a partir dessas inesperadas manchas que surgiam. Em Outubro de 1957 Dalí deu o projeto por concluído. A edição de lançamento desse portfólio incluía fotos e comentários de Dalí sobre o processo de produção. Destacamos alguns:

“Atirei, a bordo de um barco no Sena, a primeira bala do mundo a conter tinta litográfica.”

60 - Todas as minhas experiências são viscerais. Teilhard de Chardin pensava da mesma forma: tudo tem

início na boca, e vai em seguida para outros lugares do corpo, graças aos nervos. O primeiro instrumento filosófico por excelência do homem é a tomada de consciência do real pelos maxilares. Dalí em Bosquet, A. op.cit.

61 A litogravura é considerada o método mais direto de impressão. As imagens são executadas diretamente na

156

“A bala fragmentada inaugurou a era do “balismo”. Na pedra, uma mancha divina apareceu parecendo uma asa angelical, cujos detalhes aéreos e força dinâmica superou todas as técnicas jamais empregadas antes.”62S.D.

“Da mesma forma, a perseverança de Foret, que continuava a me trazer pedras, exasperava meu desejo anti-litográfico de poder (sic) ao limite de um hiper-esteticismo agressivo.”

“Enquanto neste estado, uma idéia angelical fez as mandíbulas do meu cérebro se abrirem, pois Ghandi já não tinha dito: ‘Os anjos controlam as situações sem precisarem de um plano’? Portanto, instantaneamente como um anjo dominei a situação do meu “Quixote”63.S.D.

“Novos disparos do arcabuz mais uma vez deu nascimento ao ‘D. Quixote’”64.

Dalí fez e oferece ao leitor uma leitura paranóico-crítica da obra, trazendo infinitas associações, desdobramentos e referências. A figura de Dom Quixote que temos em nosso imaginário desdobra-se na figura do artista, do louco e do homem moderno. Esse jogo de identidades cambiáveis está presente no texto, como vimos anteriormente e é ampliado pelos princípios e fontes modernas que o pintor traz para a obra. Mas para definir melhor esse processo pelo qual passamos até o presente momento, entregamos a palavra ao próprio Dalí, que assim definiu seu trabalho:

“Hoje... posso exclamar “Bravo, Dalí! Você ilustrou Cervantes. Cada uma de suas explosões contém, na verdade, um moinho e um gigante bibliográfico, e é o apogeu de todas as mais férteis contradições litográficas”65

Salvador Dalí

62 “I fired, on board a barge on the Seine, the world’s first bullet filled with lithographic ink. The shattered

bullet opened the age of ‘bulletism’. On the stone, a divine blotch appeared, a sort of angelic wing whose aerial details and dynamic strength surpassed all techniques ever employed before”

63 All the same, the perseverance of Foret, who kept bringing me stones, exasperated my anti-lithographic

will to power (sic) to the point of aggressive hyper-aestheticism. While in this state, and angelic idea made the jaws of my brain gape. Had not Ghandi already said: ‘The angels dominate situations without needing a plan’? Thus, instantly, like an angel, I dominated the situation of my ‘Quixote’.

64 New blasts of the harquebus once more gave birth to ‘Don Quixote’.

65 Today. . .I can exclaim: :”Bravo Dalí! You have illustrated Cervantes. Each of your explosions contains in

truth a windmill and a giant. Your work is a bibliographic giant, and it is the pinnacle of all the most fertile lithographic contradictions.”

RELAÇÃO TEXTO/IMAGEM:

No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 143-148)