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OS MOINHOS DE VENTO

No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 123-133)

Em Monmartre, diante de uma multidão delirante, cercado por 80 jovens no limite do êxtase, enchi dois chifres de rinocerontes com farelos de pão mergulhados em tinta, e então... os amassei na pedra. O resultado foi um milagre que deve-se agradecer a Deus: os chifres dos rinocerontes formaram braços abertos do moinho de vento47.

Salvador Dalí

A forma mais emblemática para Dalí da manifestação e exaltação dessa loucura originária é a recorrência ao tema dos moinhos de vento.

“Lutar contra moinhos vento”: essa expressão se tornou o paradigma da luta pelas causas perdidas, ou a própria luta inútil.

Essa cena, descrita no capítulo 8 da Primeira Parte, se tornou a mais famosa e a mais retratada graficamente. Curiosamente ela é descrita em pouco mais de duas páginas, mas sem dúvida marcou e ajudou a fundar o mito quixotesco. A cena narra Dom Quixote e Sancho chegando a um lugar onde se avistavam trinta ou quarenta moinhos. O primeiro imagina tratar-se de desmesurados gigantes que agitam os braços ameaçadoramente, para surpresa do escudeiro que tenta convencer seu amo da realidade. Dom Quixote, como já havia acontecido desde sua primeira saída, desfigura a realidade para acomodá-la às suas fantasias cavaleirescas. Essa aparição dos gigantes justifica-se pelo fato de, nos livros de cavalaria, esses seres monstruosos aparecerem em abundância. O gigante é um elemento quase imprescindível do livro de cavalaria desde seus primórdios. E nas degenerações do gênero no século XVI, esta monstruosa espécie se prolifera enormemente. Dom Quixote sabia que os cavaleiros andantes haviam lutado contra esses monstros e vencido a todos

47 “In Montmartre, before a delirious crowd, surrounded by eighty girls on the verge of ecstasy, I filled two

hollowed-out rhinoceros horns with bread crumbs soaked in ink, and then...smashed them on the stone. The result was a miracle for wich God should be thanked: the rhinoceros horns had drawn the two opened arms of a windmill”. Todos os comentários de Dalí que aparecem em inglês foram fornecidos por Dirk Armstrong, curador assistente do Salvador Dalí Museum em St. Petersburg, FL. Esses textos foram apresentados na

133 eles. Era então “natural” que ao ver esses moinhos, o fidalgo os tenha associado aos gigantes, com quem poderia lutar e vencer. O mais interessante, no entanto, o que configura realmente a “loucura” da cena, não é ver trinta ou quarenta gigantes onde existem moinhos, mas arremeter sozinho contra todos eles. Isso mostra que a fantasia de Dom Quixote é consciente de sê-la. O fato de que uma das pás o tenha derrubado é uma bela solução literária. Ao ser repreendido por Sancho, Dom Quixote atribui ao mago Fréston a transformação dos monstros novamente em moinhos. Como aponta Gustavo Bernardo, o texto, ao atribuir o encantamento dos gigantes ao mesmo mago que encantou a biblioteca do personagem, sugere o combate entre ficção e realidade48. Dalí, ao recorrer ao tema em diversos momentos sugere ao leitor que assuma suas próprias fantasias e desejos e que lute contra a mediocrização da realidade, justamente uma das aspirações do movimento ao qual pertencia.

Numa das representações do episódio dos moinhos, conforme já comentamos, Dalí faz referência ao teste de Rorschach. O pintor derramou tinta preta numa das metades do papel e dobrou-o, de forma que as manchas criassem uma simetria, exatamente como as imagens do teste. Em seguida incorporou olhos, boca, nariz e orelhas de modo a conferir- lhe a aparência de um monstro. Essa figura ergue-se de uma paisagem onde se localiza, em primeiro plano, Dom Quixote e Sancho. Os personagens não passam de uma pequena marca que os torna reconhecíveis pela forma, mas são formados por rápidos rabiscos. O efeito é surpreendente e, embora não haja nenhum traço que remeta à imagem de um moinho, imediatamente sabemos que é a essa passagem que a imagem se refere, embora de uma outra maneira. Ao não ser retratada literalmente, ela atua evocando a cena não como um acontecimento, mas procura explicitar seu caráter de delírio do personagem.

exposição sob sua curadoria “Tilting at windmills: Dalí illustrates Cervantes ‘Don Quixote’”, em 2005. Trad. de Beatriz Karan.

134 Em outro momento Dalí se aproxima da metáfora dos moinhos de modo aleatório para nós, observadores. Um Dom Quixote híbrido (ou um cavaleiro das novelas de cavalaria) abre os braços diante de um outro gigante. Desta vez as manchas de Rorschach foram substituídas por quatro vigorosas pinceladas em X que saem das bordas e rumam ao centro do papel, onde se encontram apenas virtualmente. Desse ponto de intersecção saem nuvens que se expandem de forma a sugerir um ser monstruoso. Seus traços não são propriamente visíveis, são deixados para a imaginação do observador. Há nessa imagem

135 uma possibilidade de conotação sexual típica das obras de Dalí. É entregue ao observador a tarefa de conferir-lhe um sentido. Há, desta forma um novo deslocamento da metáfora dos moinhos.

Numa das imagens Dom Quixote está deitado e aparentemente enfermo. Assim podemos localizá-la como referência ao final da primeira parte, quando Dom Quixote retorna para sua casa. No segundo plano, parecendo estar longe, contemplamos uma figura de um moinho que é traçado de forma semelhante à espiral com a qual Dalí representa muitas vezes o personagem. Suas pás, no entanto estão destruídas e em farrapos. Esse moinho não está localizado na terra, mas está submergindo no movimento de outra espiral, semelhante a um furacão que vai aos poucos engolindo-o. Toda aquela loucura simbolizada

136 pelos moinhos vai então sendo pulverizada, na medida em que Dom Quixote volta a ser Don Alonso.

Essa apropriação da metáfora dos moinhos por Dalí nos leva a questionar nossa leitura da obra herdada principalmente pelos românticos e que transparece com força no trabalho de Doré, que transformou Dom Quixote no herói que só luta contra as injustiças, roubando-lhe essa loucura fundamental ou, como definiu Foucault, essa consciência trágica.

137 Apesar dessa visão de um herói libertário, o termo “quixotesco” está presente nos dicionários com uma conotação pejorativa, características que não definem o “quixotesco” que existe em Cervantes. O autor nos revelou uma consciência bastante profunda em relação ao ser humano e nos oferece uma nova maneira de ler o mundo.

Os surrealistas acreditavam na poesia como motor do pensamento. Na época de Cervantes, Montaigne perguntava: “onde os autores antigos vão buscar todas as suas autoridades, senão entre os poetas? Dalí, tocado pelo contágio desse pensamento presente na obra literária nos mostra a doença de Dom Quixote como o retorno à realidade cotidiana, onde não há espaço para a poesia, para a imaginação e para o sonho. Sem eles somos perseguidos pelos fantasmas da realidade e integrados novamente na sociedade marcada pela sua enfermidade contínua.

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RABISCOS

Outras imagens de Dom Quixote nascem de traços vigorosos, mostrando o uso da linha traçada pela mão livre, assumindo a conotação de rabisco. Essa abordagem que se define contrária à precisão técnica e, conseqüentemente, à ordem racional e geométrica da vida moderna, funciona como um guia da mente, expressão livre do desejo, “sua mão nada mais [é] do que o instrumento de uma vontade longínqua”, nas palavras de Merleau-

139 Ponty49. Associados às qualidades grafológicas, é um diagrama vivo de forças psicológicas. Os esboços rápidos são distintos da elaboração cuidadosa e revelam assim, um estado característico da mente, na medida em que se dá liberdade ao fator motor. A dinâmica do ato de criação é um acréscimo valorizado contido nas formas criadas.

No Primeiro Manifesto Surrealista, foi deixado em aberto o modo como o “psico- automatismo em estado puro” deveria ser expresso, se por meio da palavra ou “outro meio qualquer”. O surrealismo afirmava, desse modo, o compromisso com a invenção, com o inesperado, com o mínimo de intervenção possível permitida ao consciente.

É interessante ressaltar que a escrita automática não é tão aparte da criação artística como se imagina. As criações, por mais previsíveis que se proponham, tem em algum momento uma parcela de si que escapa ao controle total do racional. Esse “delírio”, na falta de um termo melhor, é inerente à própria criação artística, à experiência poética. É esse componente, que pode ser chamado de delírio ou possessão, que move os poetas que Platão já havia banido de sua República, sustentando que poéticas, filosofias ou psicologias de criação deveriam ser centradas na reflexão e na elaboração50.

Essa ênfase nesse movimento espontâneo está relacionado com a postura que Dalí, inspirado pelos processos psicanalíticos, toma ao aproximar-se da obra literária num processo de leitura segundo a qual a descoberta do sentido de fato do texto literário é análogo ao processo de interpretação dos sonhos na psicanálise. Ele lê o texto como se sua forma, imagens ou história disfarçassem seu verdadeiro conteúdo, ou seja, como se o que é dito no texto fosse o conteúdo manifesto, espécie de tela que o inconsciente utiliza como discurso, uma pequena parcela da significância escondida no seu interior. O artista estaria, na verdade explicitando esse conteúdo latente, uma espécie de revelação do “inconsciente” do texto51.

Desse livre fluir da pena, várias imagens “rabiscadas” apareceram durante o processo de produção de imagens para Dom Quixote. Nesse processo de elaboração de formas que se repetem, o pintor extraiu uma nova imagem que se tornou o símbolo de seu próprio Quixote, totalmente integrado em seu repertório iconográfico: a figura em espiral.

49 Merleau-Ponty, M. O olho e o espírito. São Paulo: CosacNaify, 2004 50 cf. o Livro X da República.

51 Cf. Willer, Claudio. “A escrita automática e outras escritas”em Agulha Revista de Cultura 54. SP:nov/dez

140 Espécie de convulsivo movimento rotatório, como um furacão, ou uma peça de um tabuleiro de xadrez, ergue-se num movimento ascendente essa figura misteriosa, solitária e, principalmente, frágil. Não fica claro se ela se forma ou se extingue nesse movimento.

Essa figura em redemoinho nasceu das experimentações e inovações técnicas empregadas na confecção do portfólio de 1956. Tornou-se extremamente popular e Dalí criou variações nessa figura, com ou sem a presença de Sancho, durante as décadas de 60 e 70.

Espécie de monumento, Dalí repete várias vezes a figura, assumindo-a como uma marca. Um Quixote que brota espontaneamente desse processo de imagens, que evoca sonhos, interpretações pessoais, referências, e a própria arte e seu processo criador.

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No documento Vt pictvra poesis : Dom Quixote e Dali (páginas 123-133)