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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE ARTES – CEART DOUTORADO EM TEATRO

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DOUTORADO EM TEATRO

JUSSARA JANNING XAVIER

ACONTECIMENTOS DE DANÇA:

CORPOREIDADES E TEATRALIDADES CONTEMPORÂNEAS

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ACONTECIMENTOS DE DANÇA:

CORPOREIDADES E TEATRALIDADES CONTEMPORÂNEAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Teatro, área de concentração Teorias e Práticas Teatrais, na Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade.

Orientadora: Sandra Meyer Nunes

Co-orientadora: Vera Collaço

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central X3a

Xavier, Jussara Janning.

Acontecimentos de dança: corporeidades e teatralidades contemporâneas. / Jussara Janning Xavier. – Florianópolis, 2012. 233 f.: il.

Tese (Doutorado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2012.

Orientadora: Sandra Meyer Nunes

Inclui bibliografia.

1. Dança contemporânea. 2.Corporeidade. 3. Teatralidade. I. Nunes, Sandra Meyer. II. Universidade do Estado de Santa Catarina – Pós

Graduação em Teatro. III. Título.

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JUSSARA JANNING XAVIER

ACONTECIMENTOS DE DANÇA:

CORPOREIDADES E TEATRALIDADES CONTEMPORÂNEAS

Esta tese foi julgada aprovada para a obtenção do Título de Doutor, área de concentração Teorias e Práticas Teatrais, na linha de pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, pelo Programa de Pós-graduação em Teatro, do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 28 de maio de 2012.

Banca Examinadora:

Orientadora: _____________________________________________ Profa. Dra. Sandra Meyer Nunes

Universidade do Estado de Santa Catarina

Co-orientadora: _____________________________________________ Profa. Dra. Vera Collaço

Universidade do Estado de Santa Catarina

Membros:

________________________ __________________________ Prof. Dr. Charles Feitosa Profa. Dra. Rosa Primo

UNIRIO UFC

________________________ __________________________ Prof. Dr. Milton de Andrade Prof. Dr. André Carreira

UDESC UDESC

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Para Ana e Theo.

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AGRADECIMENTOS

As minhas orientadoras. Vera Collaço: incontestável potência. Sandra Meyer: devir-sol.

D. Giussani (1922-2005), responsável pelo encontro que faz da minha vida um acontecimento.

Aos meus pais, Newton e Relinde, e a minha irmã, Taciana (desde sempre minha primeira e excepcional leitora): graças a vocês e com vocês, absolutamente tudo na minha vida pode acontecer.

Um agradecimento infinito aos que amo e alimentam meu desejo de ser: Val, Marco, Luigi, Maria Clara, Valentina, Alvinho, Liziane, Susana, João, Eduardo, Tiago, Maria Fernanda, João Inácio, Rogério, Alda, André, Cássia, Juliano, Isabel, Miriam, Silvane, Fabiana, Frucchi.

Daniel: muitíssimo obrigada pelos vídeos, fotos, traduções, leituras, tantos momentos queridos de alegria, paciência e amor.

Sandra e Mila: obrigada por sua tamanha delicadeza e competência na administração deste processo acadêmico.

Alejandro Ahmed, Eduardo Fukushima, Erika Rosendo, Micheline Torres e Vanilto Lakka: muito obrigada pelas entrevistas e inspiração.

Agradeço a todos os artistas, grupos, pesquisadores e teóricos citados nesta tese. E a você que me lê.

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Fazer de um acontecimento, por menor que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrário de fazer um drama, ou de fazer uma história. Amar os que são assim: quando entram em um lugar, não são pessoas, caracteres ou sujeitos, é uma variação atmosférica, uma mudança de cor, uma molécula imperceptível, uma população discreta, uma bruma ou névoa. Tudo mudou, na verdade. [...] As verdadeiras entidades são acontecimentos, não conceitos. Pensar em termos de acontecimento não é fácil. Menos fácil ainda pelo fato de o próprio pensamento tornar-se, então, um acontecimento.1

Gilles Deleuze

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RESUMO

XAVIER, Jussara Janning. Acontecimentos de dança: corporeidades e teatralidades contemporâneas. 2012. 229 f. Tese (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas Teatrais) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de pós-graduação em Teatro, Florianópolis, 2012.

Esta tese discute a noção de dança contemporânea como acontecimento e realização de uma experiência em que a vida é intensificada e transformada num tempo-espaço único. Sendo assim, o contemporâneo na dança não é determinado por um valor cronológico, mas como arte suspensa em que passado, presente e futuro se atravessam. O trabalho é composto por diferentes ensaios analíticos. Suas partes se oferecem como possibilidades móveis de combinação, porções que se interpenetram, movimentos que circulam. Trata-se de um mapa relacional e transitório de fazeres-dizeres ligados a dança, em que, principalmente, os argumentos de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Giorgio Agamben, Josette Feral e José Gil são imprescindíveis. Um primeiro momento é dedicado a problematizar diferentes corporeidades: identifica jogos com a variação e plasticidade do corpo, como tentativas de se produzir novos modos de percepção e afecção. Neste sentido, apresenta uma pesquisa do método Percepção Física, desenvolvido pelo diretor Alejandro Ahmed junto ao Grupo Cena 11 Cia. de Dança (SC). E, ainda, discute atuações dos intérpretes e criadores Eduardo Fukushima (SP) e Micheline Torres (RJ), cujos corpos são pensados de modo contínuo como devir-outro. No espaço seguinte, a dança é investigada a partir da perspectiva teórica da teatralidade, ou seja, a dança é compreendida enquanto ato artístico de transformação do real e violação do cotidiano. Considera-se que a teatralidade resulta de dinâmicas perceptivas - do olhar que une um observado, seja sujeito ou objeto, a um observador, e somente assim, faz emergir a ficção. Para pesquisar diferentes possibilidades de ação da contemporaneidade na cena, criações que fabricam efeitos de estranhamento em relação ao familiar, bem como, deslocamentos e desvios, são analisadas. Artistas e grupos como Vanilto Lakka (MG), Erika Rosendo (SC) e Cena 11 são considerados.

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ABSTRACT

XAVIER, Jussara Janning. Dance events: contemporaries‘ corporealities and theatricalities. 2012. 229 f. Thesis (Doutorado em Teatro – Área: Teorias e Práticas Teatrais) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de pós-graduação em Teatro, Florianópolis, 2012.

This thesis discusses the concept of contemporary dance as event and realization of an experience in which life is intensified and transformed into a single space-time. Thus, the contemporary in dance is not determined by chronological factor, but as a suspended art where past, present and future crosses each other. The work is composed of different analytical essays. Its parts are offered as movable possibilities of combination, portions that are intertwined, flowing movements. It is a relational and transitory map of doings and sayings related to dance, in which, mainly, the arguments of Gilles Deleuze, Félix Guattari, Giorgio Agamben, Josette Feral and José Gil are essential. The first part is dedicated to problematize different corporealities: identifies games with the variation and plasticity of the body, such as attempts to produce new modes of perception and affection. In this sense, it presents the method Percepção Física, developed by director Alejandro Ahmed with Grupo Cena 11 Cia. de Dança. And also discusses performances of dancers and coreographers such as Eduardo Fukushima (SP) and Micheline Torres (RJ), whose bodies are permanently conceived as a becoming-other. Next, dance is investigated from a theoretical perspective of theatricality, that is, dance is understood as an artistic act that transform reality and violation of ordinary life. It is considered that theatricality results from dynamic perceptions – the look that links the observed, either subject or object, to an observer, and only thus, gives rise to fiction. To search for different possibilities of action in the contemporary scene, creations capable of producing surprising effects related to the habitual, as well, displacements and deviations, are analysed. Artists and companies such as Vanilto Lakka (MG), Erika Rosendo (SC) and Cena 11 are considered.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Vaslav Nijinski 45

Figura 2 e 3: Pina Bausch 58

Figura 4: Merce Cunningham 59

Figura 5 e 6: La La La Human Steps 60

Figura 7 e 8: Grupo Corpo Cia. de Dança 61

Figura 9 e 10: The Forsythe Company 62

Figura 11 e 12: Grupo Cena 11 Cia de Dança 114

Figura 13 e 14: Eduardo Fukushima 124

Figura 15 e 16: Micheline Torres 140

Figura 17 e 18: Micheline Torres 147

Figura 19 e 20: Grupo Cena 11 Cia de Dança 182

Figura 21 e 22: Grupo Cena 11 Cia de Dança 183

Figura 23 e 24: Vanilto Lakka 191

Figura 25 e 26: Vanilto Lakka 192

Figura 27, 28 e 29: Jérôme Bel 197

Figura 30, 31 e 32: Erika Rosendo 207

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1 O QUE É A DANÇA CONTEMPORÂNEA? 24

1.1 ACONTECIMENTO 29

1.2 MULTILÍNGUE 46

1.3 PERCEPÇÕES ILIMITADAS 63

1.4 ALÉM DO CLICHÊ 70

2 COMPONENTE: CORPOREIDADE 83

2.1 PERCEPÇÃO FÍSICA– ALEJANDRO AHMED E CENA 11 100

2.2 COMO SUPERAR O GRANDE CANSAÇO?– EDUARDO FUKUSHIMA 115

2.3 MEU CORPO É MINHA POLÍTICA– MICHELINE TORRES 125

3 ENTRE DOIS 148

4 COMPONENTE: TEATRALIDADE 156

4.1 COMPOSTOS MÚLTIPLOS 161

4.2 TEXTOS EM COMUM 168

4.3 OPERAÇÕES DE TEATRALIDADE 173

4.4 SIM – AÇÕES INTEGRADAS DE CONSENTIMENTO PARA OCUPAÇÃO

E RESISTÊNCIA– GRUPO CENA 11 CIA. DE DANÇA 176

4.5 O CORPO É A MÍDIA DA DANÇA? OUTRAS PARTES– VANILTO LAKKA 184

4.6 THE SHOW MUST GO ON– JÉROME BEL 193

4.7 RETRATO DO OUTRO– ERIKA ROSENDO 198

5 ENTRE TANTOS 209

CONCLUSÕES TRANSITÓRIAS 216

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INTRODUÇÃO

O contemporâneo na dança reflete uma visão particular de mundo e não se restringe a um único modo de composição no corpo e na cena. Tampouco carrega a missão unívoca de negar uma técnica ou movimento artístico qualquer. Se ocupa em perguntar, conhecer e escolher. Tal liberdade criativa permite desde a apropriação da poética etérea da dança clássica, à qualidade expressionista da dança moderna, à variedade das danças populares, de salão e de rua, até o uso de gestos cotidianos e a própria recusa do movimento enunciada pela dança pós-moderna americana nos anos 1960. A função conservada se refere à de questionar, e até mesmo demolir, suas próprias categorias de enunciação e elementos compositivos. Desfazer a si mesma. Não cansa de interrogar e criticar seus contextos: arte e vida. Localizada num território sem leis fixas, modelos e convenções imutáveis, a dança contemporânea desenha linhas que antes de dividir, apontam outros caminhos de pesquisa e significação.

Dado o caráter híbrido e transformador desta dança, não me parece adequado procurar seu núcleo duro, ou seja, defini-la como uma substância ou como uma fronteira delimitada ao lado de outras. Trata-se de um mapa movediço, que não cessa de mover-se e expandir-se. Então, do que falamos quando tratamos da dança contemporânea? O campo nomeia uma infinidade de realizações artísticas, muitas próximas à experimentação e sem formas de existência conceituadas a priori. São tempos-espaços potenciais para manifestações artísticas elaboradas e extremamente heterogêneas, que entrelaçam corpo e ambiente, modificando-os. Mundos que evidenciam o desejo de explorar com radicalismo opostos aparentes como vazio e cheio, mobilidade veloz e imobilidade, perfeição e erro, interior e exterior, realidade e ficção, ação e percepção. A dança é confirmada como possibilidade desimpedida que preserva e enaltece a indeterminação e o risco, caminhos importantes para descobridores obstinados.

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autor para abraçar criações do contexto europeu por ele observadas e marcadas pela indistinção, dado a recorrência dos atravessamentos que as compõem: combinações entre dança, música, circo, teatro, mímica, tecnologia, performance, entre outros meios, resultam numa associação cênica singular. Sendo assim, preceitos sobre o teatro pós-dramático funcionam como pistas de investigação. Trata-se de um terreno no qual prevalece a percepção simultânea e multifocal (que substitui a linear-sucessiva), o pluralismo dos fenômenos, o caráter imprevisível, a coexistência de concepções divergentes, a fragmentação da narrativa. Lehmann adverte que neste campo ainda não foram encontradas ―regras gerais‖, pois consiste

em inovações que persistem na procura por novas ―junções de modos de trabalho,

instituições, lugares, estruturas e pessoas‖ (2007, p. 30-38). Podemos considerar que sua regulação decorre precisamente da ausência de normas?

Processos de transformação do real, do corpo, do espaço e do tempo: teatralidades (Féral, 2003). A expressão teatralidade aplica-se a um jogo entre realidade e ficção, provocado com a semiotização dos signos presentes em cena. A teatralidade é o resultado de uma dinâmica perceptiva: do olhar que une o observado (sujeito ou objeto) e um observador. Esta relação pode brotar tanto da iniciativa de um intérprete que manifesta a intenção de jogo, como de um espectador que transforma o que vê em matéria espetacular. Trata-se de uma operação contínua, ligada em grande parte ao espectador, o qual participa da criação artística e da mudança nela implicada. Assim, a teatralidade não se ocupa somente da natureza do objeto que ela aborda, como por exemplo, o bailarino, o espaço de atuação, o cenário; e também não se firma na ilusão ou na fantasia criativa que um objeto pode representar. Mas diz respeito a uma produção ligada a um olhar criador de um espaço de alteridade, o qual faz emergir a ficção (Féral, 2003).

Féral observa que a condição da teatralidade é a identificação de um espaço diferente do cotidiano (que ela denomina ―espaço potencial‖), um espaço virtual gerado pelo olhar (2004, p. 91). Enquanto campo de experimento aberto que articula produção e olhar, a dança contemporânea, pensada a partir da noção de teatralidade aqui exposta, chama o espectador para jogar e trabalhar na sua tessitura. Convoca um olhar ativo, disposto a trocar ficticiamente suas próprias

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condição de fruição. Uma enunciação polifônica desdobra-se para alcançar o sensível.

Na hipótese de Féral (2003) não é possível medir a teatralidade em graus de intensidade e, portanto, é necessário um despojamento da prática que emite juízos valorativos acerca dos espetáculos cênicos, ou seja, uma mudança de parâmetros para falar sobre teatralidade. Assim como seria um despropósito falar em algo mais teatral ou menos teatral, seria inadequado nos termos deste estudo, designar a dança contemporânea como mais dançante ou menos dançante. É bastante comum a análise de espetáculos de dança a partir de comparações que atribuem escalas de mais dançado ou menos dançado, obras com mais dança ou menos dança, e até

mesmo a interrogação ―mas isto é dança?‖ ou a exclamação ―mas isto é muito parado, não é dança!‖. Na ótica da teatralidade, portanto, a dança é proposta como um ato artístico de transformação do real, de transgressão do cotidiano e não pode ser regulada por escalas gradativas de movimento, mas sim de intensidades2.

Estudos da dança contemporânea originados a partir de seu próprio contexto ainda são escassos. Porém, diante do crescente interesse em se aproximar deste fenômeno complexo, novas perspectivas metodológicas são buscadas. Esta tese se apoia em teorias recentes acerca do corpo e da teatralidade. Ao articular teatralidade e dança, desejo realçar os procedimentos que tornam possíveis as produções cênicas contemporâneas e a interlocução com o conceito de experiência. Acredito que a dança contemporânea desenha escrituras particulares e a teatralidade forja-se como asserção teórica eficaz para delinear especificidades e esboçar traços na cena apontada. Como se trata de possibilidades criativas numa esfera de operação multiforme e que abastece uma conceituação viva, procurei explorar relações com aportes teóricos que se afastam da lógica cartesiana e mecanicista. Me aproximo então de conceitos desenvolvidos por filósofos como Giorgio Agamben (contemporâneo) e Gilles Deleuze e Félix Guattari

2 No livro Paisagens críticas. Robert Smithson: arte, ciência e indústria, o filósofo Nelson Brissac

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(acontecimento), dado que seus pensamentos, dinâmicos e inventivos, iluminam a compreensão das ações e possibilidades na contemporaneidade. Em seus escritos encontrei dispositivos concretos para incentivar, desenvolver e sustentar meus diálogos nesta tese, que persigo e percorro como acontecimento. ―Estar à altura do

que nos acontece é a única ética possível‖ (Pelbart, 2008, p. 37). O propósito de verificar ressonâncias entre filosofia e dança não visa, no entanto, priorizar um sobre o outro.

É possível verificar ao longo deste trabalho que os artistas investigados também se interessam por leituras de âmbito filosófico, conhecimento que é referenciado nos seus modos particulares de pensar-fazer dança. Tal constatação evidencia a intensificação do diálogo dança-filosofia no contexto considerado e torna irrevogável minha proposta de aproximação destas duas disciplinas. Ademais, sendo a dança contemporânea o assunto desta tese, julgo insuficiente debruçar-me apenas em descrições formais, ignorando sua dimensão filosófica e seu potencial de pensar e transformar o mundo. O fato de uma dança despertar questões filosóficas e da filosofia pautar-se numa reflexão sobre dança, não anula a autonomia das áreas em questão. Contudo, criar movimentos dialéticos entre as mesmas traduz-se, para mim, como rica possibilidade argumentativa e crítica.

Como pensar a consistência de um conjunto composto de singularidades e multiplicidades sem sucumbir a um esquema totalitário e unificador? Como reunir num plano de composição a diferença, em oposição à homogeneização e ao vale-tudo? Busco desenhar princípios de efetuação da dança contemporânea, sempre enfatizada como proposta inconstante, que opera na diversidade de comportamentos, cruzamentos e agenciamentos. O objetivo é problematizar processos criativos e inovações cênicas, em especial, as que investigam diferentes proposições para a ação no corpo, manifestam estratégias inusitadas no uso do tempo-espaço e estimulam outras percepções do espectador. A hipótese deste estudo é a de que a dramaturgia contemporânea trabalha o corpo e a cena a partir de acontecimentos.

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sentido) como indicador de efeitos de ações e paixões, de encontros e misturas entre corpos. O autor mostra que o acontecimento não é substantivo nem adjetivo, nem se reduz a uma coisa ou a uma proposição. O acontecimento é, então, um modo de ser tornado devir-ilimitado (é fluxo, atemporal, não se enquadra em categorias) e sintetizado em paradoxos e fronteiras: simultaneamente passado e futuro, mais e menos, ativo e passivo, causa e efeito. Seu sentido está no expresso de sua proposição e sendo assim, o acontecimento é o próprio sentido (2009a).

A possibilidade de captar o acontecimento na dança está no cartografar da experiência, o que implica alcançar o virtualmente dado e produzir conhecimentos coerentes com a processualidade da realidade pesquisada. Processos intensos de transformação do real oferecem pistas para mapear teatralidades peculiares à dança contemporânea. Conecto aqui ações de artistas e grupos como Micheline Torres (RJ), Eduardo Fukushima (SP), Erika Rosendo (SC), Cena 11 (SC) e Vanilto Lakka (MG) para realizar um mapeamento. Neste contexto, ressalto a consideração de mapa como um modo de representação voltado

[...] para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos [...]. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. (Deleuze; Guattari, 1995, p. 22).

Sendo assim, cada capítulo apresenta ensaios sobre artistas e trabalhos específicos. São tentativas de análise caracterizadas por uma visão particular de síntese e de tratamento crítico. Por meio destes ensaios, busco coordenar elementos e não subordiná-los. Assim, todas as partes desta tese se oferecem como possibilidades móveis de combinação, porções que se interpenetram, movimentos que circulam. Um mapa relacional e transitório de fazeres-dizeres da dança.

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fenômeno particular pode valer para todos os casos do mesmo gênero e, paradoxalmente, tornar-se capaz de construir um amplo conjunto problemático. Agamben afirma que todo fenômeno paradigmático tem sua própria origem, e sua historicidade está no entrecruzar diacronia e sincronia (2010a, p. 40-41). Trabalhar por meio de paradigmas ou exemplos - Percepção física e o Cena 11; Como superar o grande cansaço? e Eduardo Fukushima; dentre outros; não corresponde a fixar hipóteses para explicar a dança contemporânea. Mas sim, fazer inteligível uma série de fenômenos dotados de multiplicidade que, no problematizar da pesquisadora, revelam certo ―parentesco‖, quer dizer, alguma relação. Não se trata de constatar semelhanças, mas de produzí-las por meio de operações de conhecimento. Portanto, o paradigma não é algo pronto, mas gerado. Nestes termos, os exemplos de dança aqui tratados são diferentes e, ao mesmo tempo, análogos de outras danças. Ao afastar a dualidade entre fenômeno singular e total, entre o particular e o universal, pretende-se investigar o campo da dança contemporânea por meio de uma exposição paradigmática de casos singulares.

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matéria – corpo, outros modos de ser. Entendem que a dança pertence a ordem da vida: sempre inconclusa.

Outro motivo está ligado à compreensão implícita de que um espaço escolhido para dançar nunca é neutro, mas concilia uma ideologia, uma memória, materializa um modo de experiência. Mesmo um palco italiano - caixa preta concebida como espaço neutro, por exemplo, traz uma carga simbólica própria, demarca uma hierarquia entre artistas e público e providencia a separação entre mundos distintos. Neste sentido, muitas das criações e criadores aqui citados evidenciam a importância do espaço em que se dança, conformando-o como lugar vivo e determinante para confrontar a potência do humano. Em suas propostas artísticas é possível identificar uma intervenção da teatralidade na realidade, principalmente por sua capacidade de alterar e ampliar as possibilidades de diálogo com o espectador, de afetá-lo por meio da dança. Tal estratégia é verificável nos experimentos aqui mencionados do Grupo Cena 11, Vanilto Lakka e Erika Rosendo.

Em se tratando de uma pesquisa social qualitativa no campo artístico, as escolhas metodológicas objetivaram propiciar um percurso gerador de articulação entre conceitos e práticas. O estudo ocorreu a partir da observação de aulas e espetáculos, bem como, de registros em vídeo. Como o objeto escolhido implica a compreensão de perspectivas pessoais e experiências dos artistas, entrevistas com os mesmos foram realizadas. Supõe-se que o estudo proposto irá ampliar e atualizar entendimentos acerca da cena contemporânea de dança, especialmente a brasileira, ao mesmo tempo em que contribuirá para delinear sua possível cartografia. Ao indicar aspectos norteadores para a compreensão deste contexto; jornada teórico-prática desafiadora; presumo provocar novas conexões e movimentos. E ainda, contribuir com o exercício crítico e estimular pesquisas nos termos da teatralidade enquanto recurso para interrogação do sentido. A interlocução entre estudos de dança, teatro e filosofia potencializa a atividade criativa, abrindo caminhos para o questionamento e escrituras múltiplas.

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Cada foto reporta a uma dança, um corpo, um homem, uma mulher, uma ideia. Relaciono este meio especial de expressão à minha escrita para produzir outros afetos, figurar outro modo de percepção, cognição e imaginação. Assim, meu discurso sobre as práticas e espetáculos de dança se faz entre palavras e imagens que remetem a um partilhar de memórias-evidências de acontecimentos. Barthes colabora com a compreensão desta proposta ao enunciar que a fotografia é uma referência, pois fala ―daquilo que foi‖ e atesta que ―a coisa esteve lá‖. Pontua: ―Toda fotografia é um certificado de presença‖ (1984, p. 114-116, 129). Por outro lado, Soulages aponta o caráter ambíguo da fotografia, ao dizer que a mesma

[...] não fornece uma resposta, mas coloca e impõe esse enigma dos enigmas que faz com que o receptor passe de um desejo de real a uma abertura para o imaginário, de um sentido a uma interrogação sobre o sentido, de uma certeza a uma preocupação, de uma solução a um problema. A própria fotografia é enigma: incita o receptor a interpretar, a questionar, a criticar, em resumo a criar e a pensar, mas de maneira inacabável. [...]. Não podemos esgotar uma foto, pois, por meio dessa tensão entre seu material e seu referente para sempre perdido, ela nos escapa como nos escapam o mistério do outro, a realidade do mundo exterior, o problema da existência, a separação do passado, o enigma da morte ou a identidade de nosso eu. (2010, p. 346).

Devir-doutora. Deleuze e Guattari ensinam que devir não é imitação nem identificação. É extrair partículas a partir do que se é, tem e faz para instaurar

―relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas

daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo‖ (1997b, p. 55). As conexões desta tese sugerem um esquema ―rizomático‖, na medida em que desconsidera uma sequência linear com começo, meio e fim para dar lugar a falas intercalares e acomodar intervalos, repartição de desigualdades, ―densificações, intensificações,

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para ser desdobrado. Trata-se, muito mais, de um processo inventivo em variação contínua. Trata-se da dança contemporânea.

HISTÓRICO DA PESQUISA

Desde 1994 atuo como profissional da dança contemporânea em diferentes funções.3 Minha trajetória foi acompanhada pelo desejo crescente de aprofundar conhecimentos e dispor de novos recursos para desenvolver processos criativos, organizar programas em festivais, acessar obras com as quais entrava em contato, além de elaborar falas e escritos sobre. Ao lado disto, constatava intrigada a designação do contemporâneo por muitos eventos e escolas como uma técnica, modalidade ou estilo de dança que pode ―tudo‖. Discursos de amadores e profissionais também explicavam a dança contemporânea pelo viés cronológico, ou seja, mera realização feita no momento histórico presente. Deste ângulo, todas as danças que existem hoje seriam contemporâneas (mas então, quando estas mesmas danças se tornam coisas do passado deixam de ser contemporâneas?). Considero este entendimento de fácil recorrência, redutor, equivocado e, principalmente vazio, pois não esclarece coisa alguma. Sobretudo nos dias de hoje, o contemporâneo é utilizado como um rótulo informativo pronto que serve para qualificar uma obra de dança. Parece moda dizer que se faz dança contemporânea, ou seja, algo como uma veia automática para se tornar ―bacana‖. Se alguém não

sabe o que está fazendo, é porque está fazendo dança contemporânea! Como?

Na base de dados da dança contemporânea brasileira disponível no site4 do Instituto Itaú Cultural (São Paulo), cuja última atualização data de 2009 – e na qual

3 Bailarina e ensaiadora do Grupo Cena 11 Cia. de Dança; bailarina do Álea Grupo de Dança;

pesquisadora da base de dados Rumos Dança do Instituto Itaú Cultural; crítica do Jornal A Notícia

(SC); organizadora e curadora de encontros como Corpos que Falam, Conexão Sul,Tubo de Ensaio e

Múltipla Dança; professora da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil a da graduação em Artes Cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina; diretora de projetos e espetáculos como Laboratório Corpo e Dança, Laboratório das Artes do Corpo, Auto-retrato, Retrato do Outro e Nós. Co-organizadora dos livros Tubo de Ensaio – Experiências em dança e arte contemporânea (2006),

Pesquisas em dança - Coleção dança cênica 1 (2008) e Histórias da dança - Coleção dança cênica 2

(2012). Bolsa de Pesquisa Crítica em Dança da Funarte 2008 para realização do vídeo documentário

Ballet Desterro. Contemporaneidade na dança catarinense.

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participei como pesquisadora, é possível verificar a ínfima quantidade de trabalhos acadêmicos e publicações originadas na área. A pesquisa revela a produção de apenas 30 teses, sendo a metade proveniente do estado de São Paulo, basicamente nos cursos de Doutorado em Artes da Universidade Estadual de Campinas e Doutorado em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O levantamento também informa a publicação de 50 livros em âmbito nacional. E ainda, a existência de 245 grupos, companhias e coletivos de dança contemporânea (nesta soma não são incluídos os profissionais que atuam em criações solo que, aliás, é possível constatar, são muitos). Ou seja, há um descompasso entre a produção teórica e espetacular, esta última em número bem maior.

Sob uma perspectiva histórica, a produção de pesquisas teóricas em dança no Brasil é uma prática bastante recente. Com a crescente abertura de cursos de graduação em dança pelo país há, no entanto, um processo de constituição de um campo de estudo em estágio inicial e, ao mesmo tempo, acelerado. No caso da dança contemporânea de modo específico, as fontes bibliográficas são ainda mais escassas, quando não conceitualmente frágeis e de difícil acesso material.

Diante dos dados expostos acima, propor um projeto para pensar a dança contemporânea significou a possibilidade de gerar contribuições na construção e sistematização teórica de saberes. E na possibilidade de colaborar para o reconhecimento e a consolidação da dança enquanto área de conhecimento, na medida em que procuro enriquecer o instrumental para sua produção e análise.

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do corpo humano, o jogo de imagens e sentidos, a oferta da arte à percepção do outro, a busca pela identidade na construção da diferença.

Procedimentos cênicos multifacetados proliferam na cena contemporânea e estreitam vertiginosamente os laços entre dança, teatro e artes visuais, fazendo emergir teatralidades híbridas desta fusão. O conceito de teatralidade se impôs

como ―instrumento eficaz de operação teórica‖ da cena contemporânea, especialmente por levar em conta a proliferação de falas ―que manejam, em sua

produção, e em diferentes graus, múltiplos enunciadores do discurso‖ (Fernandes, 2010, p. 113). Estudar e discutir dança a partir da perspectiva teórica da teatralidade colaborou para a compreensão conceitual e apreensão deste modo artístico. Possibilitou refletir sobre sua lógica compositiva, particularidades e possibilidades de pensamento e formalização da contemporaneidade na cena da dança.

O curso ainda proporcionou uma aproximação com os textos de Deleuze, desconcertantes, inéditos, apaixonantes e densos para mim. Tenho consciência de que minha compreensão ainda é ―não filosófica‖, como disse Deleuze, mas aliei o incentivo do autor de me deixar afetar por seus conceitos e buscar fazer algo diferente dos mesmos. Tentei, então, traçar movimentos lógicos e filosofar. Expor sua definição de acontecimento tornou-se um modo concreto de discutir suas ideias, impulsionar esta atividade intensa de pensar e, principalmente, modificar as condições do problema por mim colocado. Meu interesse foi direcionado para um espaço outro (o da filosofia da diferença, com a qual encontrei afinidade) que não é o da história (da dança ou da filosofia), da comunicação e das ciências cognitivas, matérias frequentemente exploradas nos estudos recentes de dança.

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presente momento, não descobri trabalhos científicos brasileiros nas áreas da dança e do teatro em que o acontecimento deleuziano é elemento de análise. De qualquer modo, guardo a sensação de que ler e pensar um autor como Deleuze nunca será suficiente, assim como a tarefa de falar sobre qualquer obra de dança contemporânea: será algo eternamente inacabado. Questão que apenas confirma para mim a imensa vivacidade das realizações e leituras que me interessam.

Por fim, cabe dizer que o diálogo entre dança e teatro é intenso no contexto das artes cênicas catarinenses na atualidade (2011). Dado que não existem cursos de graduação e pós-graduação de dança no estado de Santa Catarina, muitos bailarinos frequentam a graduação, o mestrado e doutorado em teatro no Centro de Artes (CEART) da UDESC5. A presença de importantes profissionais da dança, como os professores doutores Sandra Meyer e Milton de Andrade na instituição, colabora para reforçar os estudos do corpo e composição, contaminando o teatro pela dança e vice-versa. Muitos alunos que ingressaram nos cursos do CEART interessados na formação de atores, acabaram por adentrar o universo profissional da dança como, por exemplo, Volmir Cordeiro, que integrou a Lia Rodrigues Companhia de Dança, e Marcos Klann, no elenco do Grupo Cena 11 Cia. de Dança, dois núcleos estáveis de dança relevantes no Brasil. Vale lembrar que da união entre alunos ou destes com professores surgiram no CEART grupos como Octus Companhia de Atos, Andras Cia de Dança-Teatro e Coletivo Génos Teatro Dança. E constatar ainda, que a diretora e coreógrafa Zilá Muniz determinou rumos promissores ao Ronda Grupo de Dança e Teatro, após ingressar no CEART como professora da graduação em artes cênicas e mestranda em teatro no ano de 2002. Foi a partir de 2006 que o Ronda, grupo criado em 1993, passa a desenvolver pesquisas, montagens e espetáculos com a colaboração de atores e bailarinos.

5 A dança também se faz presente nos outros cursos de graduação voltados ao teatro existentes em

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1 O QUE É A DANÇA CONTEMPORÂNEA?

As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço em que nunca uma palavra penetrou [...].6

Rainer Maria Rilke

Em 1991, Deleuze e Guattari (2010) publicaram um livro para fixar uma pergunta extrema, a qual dá título à sua publicação: ―O que é a filosofia?‖. Para os autores, tratava-se de uma questão fundamental a ser enfrentada de modo concreto:

―o que é isso que fiz toda a minha vida?‖, indagavam. Ao ler esse livro, percebi que não seria vão colocar a mesma sentença em relação à dança contemporânea. Afinal, tal é o ponto central que mobilizou meu projeto de pesquisa e que, do mesmo modo, há tempos, funda minhas atividades profissionais. Por que não ser direta? Resolvi encarar a questão, ciente da complexidade que a envolve e de que entrarei numa zona própria de indeterminações. Um mergulho no caos, numa dança cujo modo de composição conserva profunda atração pelo caos7. Para Deleuze e Guattari, a criação surge sobre um plano que recorta a variabilidade caótica:

A arte capta um pedaço de caos numa moldura, para formar um caos composto que se torna sensível, ou do qual retira uma sensação caoide enquanto variedade; [...] a luta com o caos só é o instrumento de uma luta mais profunda contra a opinião, pois é da opinião que vem a desgraça dos homens. (2010, p. 242-243).

Não à toa, o primeiro capítulo do livro acima citado abre com a pergunta: ―o que é um conceito?‖ A este respeito, aponto a seguir algumas noções desenvolvidas por Deleuze e Guattari (2010), importantes para empreender esta tese. Em primeiro lugar, a consideração de que todo conceito é uma multiplicidade8, mas nunca tem

6 Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L&PM Editores, 2006. p. 23.

7 A característica do caos é a velocidade infinita com que as determinações são esboçadas e

apagadas. O caos não é uma mistura ao acaso. Muito mais do que a desordem, trata-se da rapidez com a qual toda forma é dissipada, ou seja, se desfaz assim que é desenhada (Peixoto, 2010, p. 214-215).

8 A multiplicidade se define pela desterritorialização, a qual faz com que ela mude de natureza ao se

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todos os componentes (não é universal). De contorno irregular, todo conceito totaliza seus elementos em um todo que é fragmentário. O conceito é consistente quando seus componentes se tornam inseparáveis nele (distintos, heterogêneos e não separáveis). Conceitos são criados em função de problemas e carregam pedaços vindos de outros problemas, assumindo novos contornos. Os componentes do conceito também podem ser considerados conceitos. Todo conceito remete a outros conceitos, em sua história, em seu devir ou em suas conexões atuais. O conceito é absoluto e relativo. As relações no conceito são de ordenação e seus componentes são variações, processuais e modulares. O conceito é um incorporal e autorreferencial, é conhecimento de si, é condição que possibilita um acontecimento.

Deleuze e Guattari (2010) determinam três grandes formas de pensamento: a arte, a ciência e a filosofia. Segundo os autores, a filosofia procura salvar o infinito, dando-lhe consistência e, para tanto, pensa por conceitos; a ciência renuncia ao infinito para ganhar a referência, pensa por funções; e a arte deseja criar um finito que restitua o infinito e pensa por sensações. Tais pensamentos podem se cruzar, o que nos ajuda a entender porque, frequentemente, a dança contemporânea é reconhecida como ―conceitual‖. Mais do que mera tentativa da dança de se aproximar da filosofia, trata-se de um fazer que repensa a si mesmo, que opera por conceitos e lança ideias próprias. Tal modo de criação se faz conhecimento e intervém na concretude do mundo.

Se a dança é uma maneira de pensamento e cada artista pensa por si, formula e responde as suas próprias questões, encontra meios exclusivos para resolver problemas, resta-nos investigar os procedimentos criativos destes pensadores, normalmente designados como coreógrafos ou diretores artísticos. Descobrir, ainda, o modo de funcionamento de seus pensamentos, sua lógica. Esta tese fala de uma dança cujo pensar é contemporâneo e, para tanto, tenta alcançar

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A resposta à pergunta ―o que é a dança contemporânea?‖ é tecida ao longo

deste estudo por meio de falas que costuram exemplos, e não dada em uma única página, frase ou parágrafo condensado. Ao considerar a dança contemporânea como acontecimento, estamos diante de composições que operam por variações, de métodos criativos autorais e muito diferentes entre si. E ainda, defronte a pesquisas que buscam o como desencadear sensações ou como revelar na matéria aquilo que desaparece no mesmo instante que se revela. Ao afirmar este modo especial de pensar e fazer dança, quer dizer, o devir, faz-se uma contraposição a procedimentos de reprodução e à constituição de modelos similares e constantes neste campo. Na formulação de Deleuze (1992), o devir é sempre minoritário, é exatamente uma maneira de criticar o dominante, de pensar a diferença sem subordiná-la à identidade. Se supomos que em toda técnica de dança há uma forma de expressão imperativa, o contemporâneo é aquele que opera uma traição e se desterritorializa em relação ao modelo, no momento em que elabora sua própria fuga. É, também, aquele que dá um tratamento intensivo à dança para criar seu próprio modo de ser, inacabado por excelência. Para exemplificar, reproduzo uma fala do diretor e coreógrafo do Grupo Cena 11 Cia. de Dança, Alejandro Ahmed, onde se identifica uma necessidade permanente de perseguir e descobrir a diferença:

[...] eu procuro um corpo que não tenha medo de perder os parâmetros que o definem, não tenha parâmetros de definição como se fossem tesouros, entendeu? Que não tenha parâmetros como se fossem bens materiais, como se fosse ter um apartamento, um dinheiro, uma joia, um carro, sabe? Nem corpo nem movimento... Não pode considerar que a dança dele é uma conquista econômica, uma conquista estética. Tem que ter outro lugar, não sei exatamente qual, mas ele tem que... ele é mais desapegado a isso, e a gente mesmo tem que começar a alargar um pouco esse lugar, que é difícil né? Tu conquistas um lugar: ‗ah, esse é o corpo do Grupo Corpo‘, ‗esse é o corpo do Cena 11‘, ‗esse é o corpo...‘ Só que eu quero que esse corpo seja um modo de pensar corpo, que não seja uma foto que o outro me propõe para que eu de alguma forma anime essa foto e ele entenda que esse sou eu. Eu não posso ser o que o outro quer que eu seja. (Ahmed, 2012).

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[...] todo sistema que a gente está inserido, ele te direciona para o oposto, ele te direciona para estabilizar, para encontrar raízes de segurança e proliferar produto. Vender, ficar rico, se aposentar. A vida é isso. Quem não faz isso já é estranho ou marginal ou no mínimo relapso, não se preocupa com a real necessidade de viver bem, de ganhar solidez, de ter as coisas que a gente precisa ter para ser um ser humano bacana, [...], ter saúde, ter roupa bonita. A sociedade de alguma forma e tu mesmo, te força a entrar nesse lugar da segurança, porque é vendido segurança em vários aspectos, desde segurança em termos de botar o muro na tua casa e as câmeras, [...] até tua segurança emocional, tua segurança de relacionamento, tua segurança de vida, que vai ser vendida, vai ser dada, vai ser discutida em vários aspectos. E se você cai nesse lugar, essa segurança te leva a não testar nada novo, quanto mais velho tu vais ficando, menos tu vais querer testar, mais tu vais ter certeza daquilo que tu já testou. E já está certo que eu não preciso pisar em outro lugar porque eu já descobri o meu lugar, já vendo bem isso... Posso dar curso de quedas, por exemplo9. (Ahmed, 2012).

A exposição de Ahmed colabora com a compreensão de que o contemporâneo designa um modo de dançar que nunca se encontra em seu próprio lugar, que deseja fugir à semelhança de si mesmo e se afastar de uma possível identidade fixa. É, pois, sempre uma pergunta que se desloca com a própria dança: o que é isto? Trata-se de uma instância paradoxal que apenas segue reformulando a si mesma. Dado que é assim, costumeiramente causa algum estranhamento por parte do público. Ao comentar a montagem do novo espetáculo - Cartas de amor ao inimigo (estreia prevista para agosto de 2012), Ahmed se mostra ciente do quão radicais são suas propostas de dança. O coreógrafo revela também estar consciente de que esta criação do Cena 11 irá gerar algum incômodo e até descontentamento na plateia, mas, ao mesmo tempo, declara a impossibilidade de voltar atrás, fazer o que já foi feito. Para Ahmed, seria como enganar a si mesmo:

[...] o nível que a gente está tentando é desagradável em alguns momentos porque, eu sinto... Tu achas que eu não sinto vontade de fazer uma coreografia bonita? No sentido de [começa a dançar] ―5,6,7,8, puxa aqui, virou‖. Eu não consigo mais, Ju. E cada vez mais, sabe o que eu faço com isso? Eu me desabilito a fazer. Então é como se você pudesse fazer uma coisa que agradasse o outro, só que isso não é mais a tua verdade. Agradar o outro com aquilo que de alguma forma ele quer. E aí você fica triste porque não pode agradar o outro, o outro fica triste porque não se agrada com aquilo que tu tens, mas tu tentas deixar ele alegre tentando ser o mais honesto possível com aquilo que tu acreditas agora, e isso é desagradável, é muito solitário. [...] As pessoas têm pressa de

9 O Cena 11 ficou marcado como um grupo que executa quedas radicais dos corpos, os quais se

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receber aquilo que elas estão acostumadas a receber, então elas têm muita pressa. As vezes é chato mesmo você ter que assistir uma coisa que leva um tempo pro teu corpo se permitir ver um outro lugar. Eu sei que é chato, mas eu não quero ser chato, mas ao mesmo tempo eu não posso fugir as vezes disso para não ser chato, corromper o caminho que eu investigo e que eu vejo que é aquilo que eu sei que pode acontecer. Se eu estou te falando uma coisa não é para te convencer, mas é para ti disponibilizar um labirinto do qual eu já passei, eu já sei qual é o outro lado e como se sai dali, entendeu? Então eu digo: ‗tenta entrar nesse labirinto, pode ser bacana, eu já andei ali, vamos tentar ver o que tem ali, essa parede, essa outra, vamos compartilhar esse lugar‘. (Ahmed, 2012).

Modificar-se. Sair de um posto contemplativo enquanto espectador dá mesmo

uma ―certa preguiça‖, constata a bailarina e coreógrafa Micheline Torres. Para ela, a dança contemporânea tem como característica a proposição de um outro lugar para o público, uma relação de outra ordem com a criação. Talvez, diz a artista, ―o que você está vendo te faz uma pergunta, te joga uma coisa e você vai deglutir aquilo ou você vai, a princípio, falar: ‗não quero‘, ‗não me interessa‘, ‗não gosto‘, ‗não me dá prazer‘ ou ‗não me faz refletir‘. Então, acho que a dança contemporânea propõe uma troca de lugares‖ (Torres, 2012).

No senso comum, artistas contemporâneos são frequentemente considerados malucos. Se doido designa um cara fora do habitual e extraordinário, não há erro em tal qualificação. E podemos ainda, com Deleuze, pensar o artista como

[...] um pensador que viu e ouviu algo grande demais, forte demais, intolerável demais, algo irrespirável que o esgotou, que colocou nele a marca da morte, mas também o faz viver através das doenças do vivido, tornando-o diferente. Escrever (ou dançar) é uma tentativa de libertar a vida daquilo que a aprisiona, é procurar uma saída, encontrar novas possibilidades, novas potências da vida. Pois, em continuidade com sua concepção do exercício do pensamento, ou do que significa pensar, a criação artística é, para ele, o ato de tornar visível o invisível, tornar audível o inaudível, tornar dizível o indizível – ou, para formular essa ideia em toda sua abrangência, tornar pensável o impensável. (Machado, 2010, 220-221, parênteses da autora).

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1.1 Acontecimento

Contra-efetuando cada acontecimento, o ator dançarino extrai o acontecimento puro que comunica com todos os outros e se volta sobre si mesmo através de todos os outros, com todos os outros. Ele faz da disjunção uma síntese que afirma o disjunto como tal e faz ressoar cada série na outra, cada uma voltando em si pois que a outra volta nela e voltando para fora de si quando a outra volta em si: explorar todas as distâncias, mas sobre uma mesma linha e correr muito depressa para ficar no mesmo lugar10.

Gilles Deleuze

Para explicar o que significa pensar a dança contemporânea como acontecimento, é necessário uma aproximação à filosofia antiga11, especialmente a formulação estóica12 acerca dos incorporais. Falar de ―incorporal‖ não é tratar de uma ―essência‖, pois a teoria dos incorporais é majoritariamente física e diz respeito a elementos concretos. Para os estóicos tudo é corpo, ou seja, tudo o que produz um efeito é corpo. Há um vínculo paradoxal entre corpos e incorporais, pois o incorpóreo é aquilo que é capaz de conter corpos ou de não contê-los. Os incorporais são quatro, nomeadamente designados como tempo, lugar, vazio e exprimível (Laêrtios, 2008, p. 194-213).

Os estóicos chamam vazio um espaço que não contém corpo algum, mas que é capaz de contê-lo. Exemplo: o vazio infinito que rodeia o universo e contém o mundo, corpo finito. Nesta passagem, o incorporal torna-se também um lugar. Os lugares são efêmeros, pois surgem e se dissolvem, segundo as determinações dos corpos que eles enquadram. Assim, o incorporal é chamado ‗vazio‘ quando nenhum corpo o ocupa, e ‗lugar‘ quando é ocupado por algum corpo, ou seja, é impossível pensá-los separadamente. Na teoria estóica, o tempo está suspenso em sua própria realização: invisível e intangível, ele só é corpo no momento presente. Antes e depois do presente (no passado e futuro) ele não é. Como incorporal está apto a

10 Gilles Deleuze. Lógica do sentido. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 2009a, p. 184. 11 Ver: Pierre Hadot. O que é a filosofia antiga? 2.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

12 Zênon ou Zenão de Citium é considerado o fundador da escola estóica no fim do século IV a.C. em

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acolher corpos, e este é o momento em que toma corpo. Esta constituição do presente é certamente ambígua, mas não abole o desenrolar do tempo. Sua disposição em uma ―sucessão simultânea‖, concebe de uma só vez o presente e a sua desaparição. Há uma espécie de intervalo, pausa ou suspensão do movimento do tempo, que é de natureza ilusória, pois só é uma parada em seu contínuo desenrolar-se. Por fim, o exprimível é aquilo que pode ser dito, o ‗linguajável‘. Ele é incorporal porque, assim como o vazio em torno do mundo, ele envolve um corpo finito, determinado, limitado, ao qual ele opõe sua ilimitabilidade e natureza indefinida. Também só é possível pensar esse incorporal a partir do corpo que ele envolve, pois entre um termo significante (um corpo) e o objeto designado pela palavra (também um corpo), há uma ponte que os liga: o sentido ou o incorporal como lugar do exprimível. O sentido como resultado de uma elaboração do pensamento provém de um trabalho invisível, intangível. Costurado por lembranças, costumes, classificações e ordenações, o sentido advém à palavra por um caminho do pensamento, caminho que é passagem e incorporal. Tempo, lugar e exprimível emergem contra um fundo de vazio que os contamina, têm sua existência minada pela incorporeidade do vazio à qual eles pertencem (Cauquelin, 2008).

Após esta brevíssima exposição, cabe dizer que para acompanhar a teoria estóica dos incorporais, é preciso renunciar à lógica ordinária que contempla princípios como a separação entre espírito e matéria, visível e invisível, e a equivalência entre invisibilidade e imaterialidade. Pois, ―o que une os corpos entre si

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corporais - corpos definidos e limitados. Em outra parte, esta linguagem escapa às definições e às limitações. Da mesma forma que o mundo se cerca do vazio, a fala é rodeada de um espaço de silêncio que permite ao sentido existir. Trata-se de um espaço sem coerção determinada, não evidente, invisível e intangível, mas cuja presença é simultânea ao discurso manifesto. Pois o vazio está presente com e ao mesmo tempo que toda enunciação, porque é a condição mesma dessa enunciação. Ou seja, a condição está compreendida naquilo que ela condiciona: se o vazio é condição da linguagem, quando um dizer em forma de dança se apresenta e entra

no jogo das significações, um ‗não-sentido‘ permanece presente como condição de

seu sentido. A linguagem da dança é também feita de um incorporal - o exprimível, que possibilita a ocorrência de um sentido e é capaz de gerar seu acontecimento.

Cauquelin (2008) examina de que maneira as obras contemporâneas - de modo específico nas artes visuais e digitais - se apoderam dos incorporais, e como deles se utilizam. A partir de suas considerações, formulam-se as interrogações que seguem. Em que medida uma composição de dança é incorporal? Como ela solicita o não-visto, o não-dito, o não-ouvido? Como, por meio dela, a incompletude, a imprecisão e o implícito nos alcança? Que espaço a dança concede para a emergência de sentidos? Como um espetáculo de dança pode alcançar a intemporalidade do tempo, tornar-se corpo que constrói uma temporalidade fugidia - o instante, para desfazer-se imediatamente? O que pode permitir que a dança acolha tempos heterogêneos sucessiva e simultaneamente? Que a mesma desoriente o tempo (não diferencie antes nem depois, seja tempo ilimitado)? Como uma dança pode construir o tempo fazendo-se sempre num presente que condensa uma multiplicidade? Como assinalar ao exprimível um espaço de possibilidades e divergências, aumentar a extensão para produção de sentido? Como fazer uma dança ser algo a mais do que é dançado? Não seria a dança contemporânea um espaço de manifestação dos incorporais – vazio, tempo, lugar e exprimível? Certamente, todas estas questões impulsionam o desenrolar desta tese.

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causalidade‖ que remete aos corpos (suas causas) e a outros incorpóreos (suas quase causas) (Machado, 2010, p. 302-303).

Dança como acontecimento. Acontecimentos de dança. A definição de acontecimento apresenta diversos sentidos e variadas concepções, principalmente no campo filosófico e semiótico. Nesta tese, o acontecimento não se restringe a um fato, seja comum ou excepcional, mas é um modo diferente de ser: um ―incorporal‖,

denominaram os estóicos. A teoria do acontecimento proposta (e certamente em vias abertas para exploração) por Deleuze (2009), denomina esse incorporal como

―quase-ser‖ e ―extra-ser‖: uma maneira especial de ser, que insiste e subsiste nas coisas. Nesta instância, o acontecimento não é algo (não é o corpo, não é o figurino, não é o objeto), mas acontece a algo, acontece neste algo. O acontecimento está em suas relações. Tal noção também é sublinhada por Foucault em aula inaugural no Collège de France no ano de 1970, quando analisa o estatuto do discurso na sociedade e suas formas de poder e repressão.

Se os discursos devem ser tratados, antes, como conjuntos de acontecimentos discursivos, que estatuto convém dar a esta noção de acontecimento que foi tão raramente levada em consideração pelos filósofos? Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material. Digamos que a filosofia do acontecimento deveria avançar na direção paradoxal, à primeira vista, de um materialismo do incorporal. (1996, p. 57-58).

Nesta fala, Foucault exalta a condição ambígua do acontecimento: se o

acontecimento é incorporal, como falar de um ―materialismo do incorporal‖? Ora, dizer que o acontecimento é um incorporal não contradiz a afirmação de que ele possui seu momento e sua expressão (por meio de, no entre). Ele se faz passagem entre os corpos que acompanha e, ainda que não evidente, sua presença é simultânea ao discurso manifesto. Os estóicos concebem o incorporal como condição de existência para um corpo qualquer13 e assim, ao considerar a dança

13 Exemplo: No dicionário Michaelis da língua portuguesa, numa concepção física, a palavra espaço é

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como acontecimento não se exclui seus corpos possíveis, mas se exalta relações de coexistência e interdependência entre seus elementos. Neste sentido, o acontecimento possibilita a realização de uma dança que sendo si mesma, é sempre diferente do que ela é. Uma única palavra – dança, pode indicar uma categoria objetiva e literal de designação e, ao mesmo tempo, pode remeter aos acontecimentos, aos sentidos expressos, a diferença que ocorre num dançar.

Deleuze diz que ―‗crescer‘, ‗diminuir‘, ‗avermelhar‘, ‗verdejar‘, ‗cortar‘, ‗ser

cortado´ etc. é de uma outra natureza: [...] acontecimentos incorporais na superfície,

que resultam‖ de misturas (2009, p. 7). Assim, na sentença um corpo cresce, temos a união entre um corporal e incorporal. O crescer é tomado por Deleuze como acontecimento, pois um corpo que cresce é maior do que era e, simultaneamente, menor do que será. Tal é o paradoxo do acontecimento (devir, identidade infinita). Torna-se claro, então, que tomar a dança contemporânea como acontecimento não corresponde a negar seus corpos (bailarino, iluminação, figurino, movimento, etc.), mas afirmar um modo especial e distinto de dançar. Buscar uma dança como diferença ao invés de considerá-la como identidade fixa e meio de reprodução.

Em termos deleuzianos, o acontecimento tem complexa constituição. A dança como acontecimento é um expresso, é um enunciado, um atributo lógico ou dialético, que manifesta efeitos sonoros, óticos, efeitos sobre a vida e a ação, entre outros possíveis. Aqui, interessa buscar a compreensão do acontecimento na dança, em um pensamento-ação que se materializa como dança. Quando a dança compõe-se de acontecimentos? O acontecimento na dança existe quando a mesma opera uma mudança, constitui um paradoxo (afirma dois sentidos ao mesmo tempo), uma fronteira, liga-se a multiplicidade, simultaneidade, conserva uma potência própria de prolongamento e variação, ultrapassa qualquer oposição e dualidade, encarna a variedade na singularidade. Sendo assim, nem toda a dança é acontecimento. A dança que denomino contemporânea (conforme a conceituação que se desenha nesta tese), é uma categoria (enquanto noção que serve para indagar a realidade) de coisas muito especial – a do acontecimento.

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Como podemos definir o que conhecemos por uma dança contemporânea? Um corpo ou vários corpos em movimento num espaço cênico, num palco ou na rua? Corpo(s) que executam passos e gestos harmoniosos, não-banais, virtuosos, arriscados, enfim, diferentes dos habituais em um certo ritmo ou ao som de uma música? Um corpo com figurino - vestido ou nu, iluminado ou não por refletores? Uma movimentação de objetos, uma coreografia de corpos e coisas em cenários inusitados? Uma proposta comunicativa de ideias materializadas sob a forma de movimentos frente a um público? Um conjunto de ações e agitações não-convencionais? Um sistema de signos corporais e audiovisuais? Como? O que é este campo complexo? Bastaria explicar seu passado, sua evolução no tempo cronológico, realizar comparações entre obras para saber? A meu ver, seja qual for a descrição proposta nestes moldes, independentemente do nível de seu detalhamento, sempre soará como simplista, redutora e insatisfatória para designar tal território. Tratar da dança como acontecimento é exaltar a diferença e aceitar a condição fugidia que se impõe nesta forma de arte: é devir, ou seja, escapa de uma forma dominante. O devir é pensado em contraposição à imitação, à reprodução, à identificação, à semelhança (Machado, 2010, p.213), e isto é perceptível nas danças aqui consideradas contemporâneas. Uma dança contemporânea efetua o acontecimento ao duplicar sua efetuação física com uma outra realização singular, a qual dá corpo ao impensável.

Ao afirmar a dança contemporânea como devir, enfatizo também sua singular relação com o presente. Deleuze afirma: ―Em todo acontecimento existe realmente o

momento presente‖, ou seja, não existe acontecimento fora de uma efetuação no espaço e no tempo. Contudo, o presente se desdobra em passado-futuro: é

―metaestável‖ (Pelbart, 2007, p.56), é ―instante móvel‖ (Deleuze, 2009, p.154). Via estóicos, Deleuze oferece uma outra noção de tempo14: ―Aion‖ ou ―entre-tempo‖

nomeia a temporalidade-paradoxal do acontecimento. Explica:

Segundo Aion, somente o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente que absorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem a cada instante o

14 A problematização do tempo em Deleuze é objeto da tese de doutoramento de Peter Pál Pelbart,

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presente, que o subdividem ao infinito em passado e futuro, nos dois sentidos ao mesmo tempo. (2009a, p. 169).

Ao problematizar o Aion como tempo do acontecimento, Deleuze utiliza a figura do ator:

[...] o presente do ator é o mais estreito, o mais cerrado, o mais instantâneo, o mais pontual, ponto sobre uma linha reta que não cessa de dividir a linha e de se dividir a si mesmo em passado-futuro. O ator é do Aion: no lugar do mais profundo, do mais pleno presente, presente que se espalha e que compreende o futuro e o passado, eis que surge um passado-futuro ilimitado que se reflete em um presente vazio não tendo mais espessura que o espelho. [...] É neste sentido que há um paradoxo do comediante: ele permanece no instante, para desempenhar alguma coisa que não pára de se adiantar e de se atrasar, de esperar e de relembrar. (2009, p. 153).

Assim, o tempo de efetuação do acontecimento não é o tempo cronológico (excessivamente humano, linear, homogêneo, cumulativo e pacificado, para Deleuze), pois o acontecimento requer e produz seu próprio tempo. Pelbart adverte que não se trata de um instante contraposto à permanência, de uma curta duração em oposição à longa, nem do efêmero frente ao eterno. Que o ―Aion‖ é um tempo

flutuante, o qual só conhece velocidades e afetos, é o tempo das multiplicidades, o tempo ―do meio‖, pois é no meio que os tempos mais diferentes se cruzam, num turbilhão (Pelbart, 2007, p. 112-113). Zourabichvili explica que o acontecimento se

dá no irreversível e no iminente, no ―estranho local de um ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por-vir-e-já-presente‖ (2004, p. 8).

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Com o acontecimento Deleuze invoca uma temporalidade plástica, trans-histórica. Convoca uma antimemória, uma relação, um contágio e uma propagação, o direito ao intempestivo e a diferença. Trata-se de velocidades que não se submetem a uma evolução orientada, mas de novas relações de movimento e repouso com potências correspondentes. Mesmo a imobilidade pode dar a ver tais velocidades:

Para ficar num exemplo estético retomado nos livros em torno do cinema, Deleuze menciona os planos fixos em que a imobilidade revela as velocidades diferenciais aparecendo em si mesmas, por si mesmas. Godard, por exemplo, em que as formas se dissolvem para deixarem aparecer as variações minúsculas de velocidade entre os movimentos compostos. Ou a dança de Fred Astaire ou dos negros, que ―escutam e executam todas as notas, todos os tempos, todos os tons, todas as alturas, todas as intensidades, todos os intervalos‖. O plano fixo pode ser, pois, visual (como no caso da imagem-tempo no cinema), sonoro (Boulez, Cage), escritural (Hölderlin, Kleist, Nietzsche) etc. Em todos eles, libera-se uma matéria não formada, impalpável, com movimentos variáveis, velocidades extremas, lentidões beirando a catatonia, desfalecimentos bruscos, afectos em deslocamento, sem relação com uma Forma ou um Sujeito, nem com um Caráter central em evolução direcionada. Trata-se antes de um plano de transmutação e de variação de velocidades. (Pelbart, 2007, p. 111-112).

O contemporâneo prevalece no acontecimento: um momento que é processo intempestivo para renovar a imagem do pensamento. O acontecimento deleuziano oferece um novo modo de pensar e falar da dança, afastado de qualquer determinismo e descrição purista, em que o sentido se dá como diferença e nos força sempre a re-começar. Trata-se de um instante produtivo, determinado a partir da afirmação simultânea de um presente, passado e futuro (o instante não opera uma divisão, mas uma totalização). O modo de pensamento de uma dança contemporânea é o intempestivo, impelido a atravessar o limite, afirmar o múltiplo e o acaso, encontrar a exaustão e o esgotamento, engendrar variações, pensar a força do tempo, o impensado. Nestes termos, o pensamento criativo é inseparável da definição de tempo que o preenche: um movimento infinito. Pelbart esclarece que

―o que está em jogo na teorização do tempo deleuziana, apesar de suas inúmeras

obscuridades‖, é a atividade de ―pensar um tempo consentâneo à invenção‖. Para o

autor, Deleuze explorou variadas imagens de tempo, como ―se elas expressassem

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Interessa lembrar que descontentes com o caráter da ciência, Deleuze e Guattari (1997a) propõem reflexões epistemológicas no volume 5 de Mil Platôs,

diferenciando dois tipos de ciências: a ―maior‖ (dedicada a uma ―teoria dos sólidos‖) e a ―menor‖ (que dispõe de uma ―teoria dos fluidos‖ e solicita procedimentos científicos renovados), cada qual com um modelo metodológico próprio, com noções de tempo e espaço específicas. Trato a seguir apenas das características da ciência

―menor‖, pois ajuda a entender diretamente o que importa: o acontecimento. A ciência menor é definida como um modelo de devir e de heterogeneidade (suas referências) em oposição ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao constante. É paradoxal, pois não mais se constitui segundo uma cópia. Assim, a ciência menor refere-se aos estados intensivos e incorporais da matéria, aos afetos de uma corporeidade - processos em variação contínua. A temporalidade deixa de ser cronológica para se fixar no acontecimento, o qual arrasta um espaço aberto e se mistura aos fluxos que o atravessam. Segundo os autores, tal modelo ―é

problemático, e não mais teoremático: as figuras só são consideradas em função das afecções que lhes acontecem‖. Completam: ―Enquanto o teorema é da ordem

das razões, o problema é afectivo e inseparável das metamorfoses, gerações e

criações na própria ciência‖. A ciência menor ou nômade não seria então uma ―simples técnica ou prática, mas um campo científico no qual o problema dessas relações se coloca e se resolve de modo inteiramente diferente‖, buscando captar ou

determinar singularidades da matéria ao invés de constituir uma forma geral. A ciência menor tem, assim, o acontecimento como objeto (Deleuze e Guattari, 1997a, p. 19-27).

Parto da constatação de que a dança segue o paradoxo da ―ciência menor‖,

ao se definir em um emaranhado de entres, um composto de relações. O que ocorre no entre? Entre palco e plateia? Entre tempos? Entre espaços? Entre corpos? Entre o dentro e o fora? Entre o começo e o fim? Entre os elementos cênicos? Entre o privado e o público? Entre o coletivo e o individual? Entre o natural e o cultural? Entre as partes de um corpo? Entre a realidade e a ficção? Entre isto ou aquilo? Pensar nos ―entres‖, refletir sobre algo expresso no entre, é buscar o acontecimento

Referências

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