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SIM Ações Integradas de Consentimento para Ocupação e Resistência – Grupo Cena 11 Cia de Dança

4 COMPONENTE: TEATRALIDADE

4.4 SIM Ações Integradas de Consentimento para Ocupação e Resistência – Grupo Cena 11 Cia de Dança

[...] os Outros são mundo possíveis, aos quais as vozes conferem uma realidade sempre variável, conforme a força que elas têm, e revogável, conforme os silêncios que elas fazem. Elas são ora fortes, ora fracas, até que se calam, por um momento (com um silêncio de cansaço). Ora elas se separam e até mesmo se opõem, ora se confundem.95

Gilles Deleuze

O projeto coreográfico do Cena 11 intitulado SIM - ações integradas de

consentimento para ocupação e resistência é uma ação proposta em sessões para

95 Gilles Deleuze. Sobre o teatro: um manifesto de menos; o esgotado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

grupos restritos de pessoas.96 A ideia é colocar à prova o comportamento dos bailarinos e do público, simultaneamente, por meio da interação. Dispõe palco e plateia no mesmo espaço, união física que propõe uma nova relação e arrasta outro modo de conhecimento. SIM promove uma experiência sensitiva, na qual os corpos dos bailarinos se deixam afetar pela plateia, ao mesmo tempo em que procuram afetar o espectador, incluído para desenvolver o procedimento criativo. A dinâmica passa de signos transmitidos para energias co-vivenciadas. O envolvimento corporal do espectador transfere sua atenção da ilusão para a própria posição no espaço- tempo. Assim, a presença e o lugar por ele ocupado se tornam tema central da coreografia. Novos modos de percepção são intensificados.

Não são poucos os esbarrões e as tensões provocadas no decorrer do processo, que projeta uma luta de forças constante entre artistas e participantes. Num encontro promovido pelo Cena 11 para discutir o experimento Plateia teste97, o público foi solicitado a descrever a situação vivida. Os relatos atestaram que a proposta de mistura (elenco e plateia) funcionou tanto para aproximar quanto para separar. Sensações de confinamento, coerção, opressão, submissão foram denunciadas por um público que se disse paralisado diante da vontade de intervir na cena em choque com um sentimento de exclusão. Todas as falas e contribuições foram consideradas pelo diretor do grupo Ahmed, sem qualquer insinuação sobre qual seria o modo mais ―correto‖ de se comportar. A conversa explicitou a feição de teste da coreografia: experimento que ocorre numa esfera instável, pois cada ação procede necessariamente por escolhas, tanto possíveis quanto impostas.

Ao juntar espectadores e artistas no palco, a companhia buscou provocar uma alteração significativa em ambos os papéis, convocou o público para construir uma possibilidade de dança e realizar uma experiência. Ofereceu a obra como processo, transformando a cena em uma situação provocativa para todos - bailarinos e espectadores. Corpos se colocaram como obstáculos para outros corpos, impediram suas passagens, impuseram vontades. As relações eram

96 No Teatro Pedro Ivo de Florianópolis (SC) a quantidade máxima foi de 45 pessoas. Estive presente

na sessão de 14 de abril de 2011.

97 Plateia teste foi o nome da ação que antecipou a produção final de SIM - ações integradas de

consentimento para ocupação e resistência. Participei deste procedimento no Teatro Pedro Ivo,

Florianópolis, dia 13 de abril de 2010. O encontro posterior teve como objetivo conversar sobre esta pesquisa coreográfica com interlocução da Professora Doutora Fabiana Britto. Foi realizado no dia 27 de maio de 2010. Programa do Festival Múltipla Dança, Teatro SESC Prainha, Florianópolis.

continuamente modificadas, as formas deformadas e, assim, toda e qualquer ação atingia uma percepção direta. A dança como devir solicitava um engajamento pessoal.

A conversão dos espectadores em participantes produz uma ―situação social‖, onde estes percebem o quanto sua experiência depende de si mesmos e dos outros (Lehmann, 2007, p. 173). Em SIM - ações integradas de consentimento para

ocupação e resistência, os eventos de dança se efetivam nos moldes de uma

experiência que intensifica a partilha de energia (e não de uma comunicação na qual a informação corre de um emissor a um receptor). A fruição depende da participação do espectador, disponível e inclinado ou não para ativar memórias e significados.

A professora e pesquisadora portuguesa Cláudia Marisa Oliveira explica que um espetáculo sempre instaura um espaço dialético de subjetividade, ou seja, envolve continuamente um movimento criativo e não passivo (2009, p. 15-33). A passividade existiria apenas como entrega e escuta. Tanto a ação quanto o efeito de uma obra de arte dependem de um investimento afetivo, na crença daquilo que fazemos (dançando/atuando ou observando). A proposição artística de Ahmed incita a troca e um estado adaptativo do corpo, a todo instante forçado a se locomover no espaço e rever seu lugar. Trata-se de um tipo de adesão que empurra a ação de quem dança e faz ―dançar‖ quem saiu de casa para o teatro com a mera intenção de observar.

O público se vê inserido numa rede caótica, permeada de eventos e encontros. A simultaneidade de ocorrências impede um olhar totalizador. Diante das várias opções em curso, cada um decide como montar a sua própria dança. Um jogo se arma e uma experiência se oferece por meio deste. Como é proposta (e não imposição, já que ninguém é impedido de ir embora), apenas faz experiência aquele que arrisca e se dispõe a jogar.

Na lógica de provocação do Cena 11, a experiência é algo singular e impossível de ser reproduzida. Artistas e espectadores são conduzidos a enfrentar um acontecimento e, ainda que inseridos numa mesma situação, não fazem a mesma experiência. Pois

[...] é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria. [...] a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. [...] a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ―pré-ver‖ nem ―pré-dizer‖. (Bondia, 2002, p. 27-28).

A movimentação ―típica‖ da companhia forma-se por saltos e quedas. Antes de buscar exprimir ou significar algo, o corpo que dança realiza e testa seu potencial no plano do fazer. Mostra-se o corpo como matéria submetida à lei da gravidade, como corpo-pessoa que age e não como corpo-instrumento do qual se serve para realizar. A radicalidade com a qual o corpo se lança no espaço e cai no chão intensifica uma sensação de ordem fisiológica (dor, susto, surpresa, medo) que faz o real vibrar aos olhos de quem observa. ―Quando o palco se iguala à vida, quando a banalidade real se despeja nele, surge o medo quanto à integridade de quem atua‖ (Lehmann, 2007, p. 355). Cada ação de dança busca tirar o outro do hábito, indicar a existência da vida e, deste modo, manifesta o plano do real na composição. Ao enfatizar o gesto da dança como ação e não como ilustração ou ―passo‖ de dança, o grupo Cena 11 arquiteta uma fisicalidade que incorpora o real, firmando compromisso com a realidade cotidiana.

Com um elenco de constituição física diversa, a companhia afasta a ideia de corpo ideal para enfatizar imagens corporais que exploram posturas inusitadas, quedas, gestos cotidianos (o andar e o correr estão lá sempre), o som em falas, cantos, gritos, risadas e choros. Em SIM um andar exaustivo cobre todas as direções e percursos no espaço. São caminhadas que afirmam, lançam suspeitas, arriscam, transgridem, conjeturam operações enunciadoras que, porém, não se reduzem aos seus traçados gráficos. Vozes e ruídos misturam-se para gerar associações na imaginação do espectador. A cena auditiva articula-se a dramaturgia visual para produzir novas relações espaciais, emotivas e corporais.

O ritmo domina o espaço; aspectos negativos como peso, carga, dor e violência se antepõem à harmonia, que era preciosa para a tradição da dança. [...] na queda e na elevação, na dor e no erotismo provocante pergunta-se com Nietzsche pelo ―deus dançarino‖, procura-se um ser anterior a toda determinação dialética, que [...] se encena no riso e na transgressão. (Lehmann, 2007, p. 340).

O público participa de uma circunstância projetada na esfera da instabilidade e do imprevisível, estigma da linguagem do Cena 11 que é de risco, marcada pela vulnerabilidade do corpo e pela descoberta de novas significações. O participante entra em cena duplamente: atua por meio de imagens projetadas em vídeo ―ao vivo‖, torna-se ainda mais próximo, passa da condição de representado para a de sujeito. As imagens reforçam a teatralidade de algo ativo, enérgico, real e presente, ressaltando e revelando qualidades e comportamentos humanos. Pois a exibição simultânea do rosto de um participante de modo ampliado na tela, por exemplo, afeta não somente aquele que vê sua face em destaque, mas outros participantes. Entra na disputa pela atenção. Tal dispositivo ressalta o interesse de Ahmed em provocar novas adaptações no corpo, que continuamente deve modificar a si mesmo para sobreviver. Trata-se, também, de explorar um ―presente dilatado‖, ou seja, de propor experiências para complexificar e reinventar a nossa percepção do tempo- espaço, de mobilizar o vivo (Pardo, 2011, p. 462).

Nos momentos que antecedem a finalização de SIM, duas bailarinas permanecem junto aos microfones falando sem parar. Em meio a outras sonoridades, projeção de imagens e movimentos que se misturam a ação das duas intérpretes, não é possível acompanhar nem identificar o teor dos seus discursos. Somente mais tarde, quando elas não estão mais na cena, as falas vêm à tona e revelam suas percepções individuais acerca do que se passara no palco até ali. São frases do tipo: ―Naquele momento eu caí com o rosto bem próximo ao pé daquele

senhor. Eu fiquei constrangida, mas ele nem se moveu‖. ―Por que aqueles dois

rapazes não foram para o outro lado junto com os outros? Por que eles não se mexem? Isso me irrita‖. Ao final de SIM, outros microfones são montados como oferta e convite para que o público fale sobre suas percepções. Os bailarinos se retiram do palco e os espectadores ficam sós com a opção de se expressar ou ir embora. Alguns falam. Outros saem. Outros ficam imóveis, um tanto estampa no rosto a pergunta de que se aquilo seria mesmo o término do ―espetáculo‖.

A natureza deste tipo de proposta é a de correr riscos, pois na medida em que envolve uma ação real que efetivamente dá vida ao seu objetivo e constitui o plano de ação, pode ou não ser eficaz. O trabalho do Cena 11 é instigante: Por que analisar e convocar o outro à análise? Que tipo de eficácia busca o grupo? O que deseja modificar e sensibilizar? Penso que a decisão de trocar e interrogar da companhia destaca seu incansável questionamento acerca da própria atividade, juntamente com a opção de apreender novos saberes e sentidos para seus movimentos. SIM é um modo de afetar e ser afetado num palco de puro contágio. Como isso é possível? Voltamos, novamente, a uma dança constituída como processo e experiência, pois seu formato só existe no embate entre bailarinos e espectadores. A capacidade de afecção de uma pessoa é sempre única. A teatralidade emerge como possibilidade efetivada num encontro, neste entre, acontecimento que jamais será o mesmo para todos.

A inter-relação é o procedimento utilizado em SIM para alcançar a diferença, algo inesperado. Uma dança que é crítica, pois opera na perspectiva de surgimento do novo. Com este agenciamento coletivo, o Cena 11 desvia-se do modelo que separa palco-plateia para dar acesso ao indefinido. A relação eleva-se como o mais importante da cena, como forma de compor intensidades e potencializar um espaço para realização de acontecimentos. Uma dança-experimentação que busca o informe e renuncia uma finalidade e uma significação a priori. Uma dança-mergulho no caos.

SIM - ações integradas de consentimento para ocupação e resistência (2011), Grupo Cena 11.

SIM - ações integradas de consentimento para ocupação e resistência (2011), Grupo Cena 11.