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Como Superar o Grande Cansaço? – Eduardo Fukushima

2 COMPONENTE: CORPOREIDADE

2.2 Como Superar o Grande Cansaço? – Eduardo Fukushima

Em todo acontecimento existe realmente o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis aí, o momento chegou; e o futuro e o passado do acontecimento não se julgam senão em função deste presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna.67

Gilles Deleuze

Eu acho que tem duas coisas muito importantes na minha vida. Uma foi o antes de eu assumir que eu queria dançar mesmo, que foi numa época super difícil, que eu entrei numa angústia profunda, de não conseguir sair da cama, não sabia o que eu queria fazer da vida, não sabia nem que existia uma vida de dançarino, não sabia que a dança existia como profissão. E foi uma época muito dura, essas coisas de depressão, de não conseguir sair da cama, e que eu precisava transformar isso, mas eu não sabia como. Isso foi um ponto importante que eu trago até hoje para minha dança. É até meio clichê falar, mas uma angústia me move, me move muito para eu transformar ela em outra coisa. Então a dança me ajudou a me resolver nessas minhas aflições. Isso foi uma primeira coisa. A outra foi ter trabalhado com a coreógrafa Key Sawao68. Foi a primeira pessoa que eu trabalhei, e

lá eu tive um contato com esse modo de criação individual, de você por as suas questões na roda, em forma de gestos. E também foi com quem eu tive um primeiro contato com as técnicas corporais orientais, seitai-ho, chi kung e alguns princípios do butô. Eu acho que isso me influencia até hoje, como treino, como prática, como olhar para a dança de outro jeito, de não ser uma coisa reprodução de passos, entendeu? (Fukushima, 2012).

O paulista Eduardo Fukushima desenvolveu uma pesquisa coreográfica a partir da pergunta: ―Como superar o grande cansaço?‖ (estreia em 2010). A questão da fadiga nasceu por meio de experiências particulares e perguntas existenciais do artista, que encontrou inspiração nos textos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), os

66 É praticante de balé clássico, dança contemporânea, natação, técnicas corporais orientais Chi-kung

e Seitai-Ho. Formado no curso de graduação Comunicação das Artes do Corpo (PUC/SP). Realiza pesquisa individual em dança desde 2007, tendo criado os solos Canto (2007), Entre contenções (2008) e Como superar o grande cansaço? (2010). No entanto, seu trabalho profissional na área de criação em dança e performance iniciou em 2005, com Key Sawao e Ricardo Iazzetta. Como intérprete-criador, trabalhou com Célia Gouvêa, Ângelo Madureira, Ana Catarina Vieira, Luis Fernando Bongiovanni e Miyako Kato. Estudou capoeira angola e dança clássica indiana.

67 Deleuze, op. cit., 2009a, p. 154.

68 Key Sawao nasceu em São Paulo, é bailarina e diretora da Key Zetta e Cia. Sua biografia encontra-

quais abordam o niilismo da sociedade ocidental no século XIX e as alternativas para atravessar seu principal sintoma: um ―grande cansaço‖.69 De acordo com Nietzsche, a força para superar o cansaço consiste na ―vontade de potência‖, impulso que o filósofo considera a própria consistência da vida. Ele escreve: ―O ser vivo necessita e deseja antes de mais nada e acima de todas as coisas dar liberdade de ação à sua força, ao seu potencial. A própria vida é vontade de potência‖ (Nietzsche, 2001, p. 23). Tal vontade seria chave para a compreensão do mundo:

Todo processo mecânico, na medida em que é alimentado por uma força eficiente, revela precisamente uma ―vontade-força‖. Suponho, finalmente, que se chegasse a explicar toda nossa vida instintiva como o desenvolvimento da vontade — da vontade de potência, é minha tese — teria adquirido o desejo de chamar a toda energia, seja qual for, vontade de potência. O mundo visto por dentro, definido e determinado por seu "caráter inteligível" seria — precisamente ―vontade de potência‖ e nada mais. (Nietzsche, 2001, p. 49).

Em Como superar o grande cansaço? Fukushima aliou o quase esgotamento à potência da vontade para investigar gestos, intenções e compor sua dança. Composição que só acontece em tempo real. O bailarino e criador encontrou uma qualidade específica de movimentos que, ao longo do trabalho, conduz o artista a um estado corporal genuíno, pleno de agenciamentos velozes. A fadiga do intérprete não interrompe a continuidade de sua movimentação, ao contrário, no limite, novos acordos se desdobram no corpo, que mantém um jogo permanente entre força e fragilidade, estabilidade e precariedade. A dança incomum nasce no entre e se realiza no caos.

Fukushima se diz essencialmente interessado na própria ação de dançar, considera que cada dança arrasta um tipo de corporeidade e, nesse sentido, busca

[...] uma corporeidade mais crua mesmo, o próprio gesto [...]. Eu busco muito a crueza do gesto, o movimento como principal mesmo. Eu acho que é uma corporeidade muito depoimental, um testemunho pessoal, que se transforma e que vai além do pessoal por causa dessa coisa do pesquisar. Acho que vai além do pessoal, mas parte disso, de depoimentos. Busco essa corporeidade, aí a forma vem como consequência. Acho que ela é importante, mas ela vem como

69 No blog dedicado ao compartilhamento da pesquisa, Fukushima cita como referências os seguintes

livros de Nietzsche: Genealogia da moral: uma polêmica; Ecce Hommo: como alguém se torna o que

é; Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Em http://fukushima.wordpress.com/.

consequência, ela não é a que primeira coisa que me vem: ‗eu quero dançar assim‘. Eu danço assim por causa de uma outra coisa antes. Perceber o que que me move hoje, para viver, para existir. (Fukushima, 2012).

Como superar o grande cansaço? apresenta um Fukushima que se agita, se

revira, retorce, corre, escorrega, faz pausas, espera. Acelera e desacelera. Seu fazer toca a condição e definição de corpo segundo as palavras de Lapoujade: ―o corpo é aquele que não aguenta mais, aquele que não se ergue mais‖ (2002, p. 82). Lapoujade explica que o corpo não aguenta mais todas as formas de adestramento e disciplina, ou seja, tudo aquilo a que submetemos o corpo ―do exterior‖, que por sua vez agem e se impõem no ―interior‖ para organizá-lo, subjetivá-lo, fixá-lo. É o contrário de um corpo ativo, trata-se de um corpo que ―sofre de um ―sujeito‖ que o age‖, diz Lapoujade (2002, p. 82-85).

Se Fukushima traz à cena um corpo ―que não aguenta mais‖, é porque assume um corpo diminuído, desmoronado, deformado, ressentido, no limite da impotência e do anestesiamento. Vive o corpo entregue e exposto ao sofrimento, e é exatamente aí que, paradoxalmente, encontra uma potência própria, a qual libera em ação. Um corpo é capaz do acontecimento ao sofrer suportando o insuportável, ao viver o inviável, ou seja, ao abraçar um modo que possibilita criar para si um corpo outro:

A potência do corpo (aquilo que ele pode) se mede pela sua exposição aos sofrimentos ou às feridas. [...]. Ser forte consiste primeiro em estar à altura de sua fraqueza. [...]. O ―eu não aguento mais‖ não é, portanto, o signo de uma fraqueza da potência, mas exprime, ao contrário, a potência de resistir do corpo. Cair, ficar deitado, bambolear, rastejar são atos de resistência. (Lapoujade, 2002, p. 86-89).

Fukushima utiliza a ideia de cansaço no corpo para efetuar uma composição em dança e, assim, faz o próprio corpo explodir um pensamento de dança. Trabalha o corpo enquanto catalisador de sensações e parece treinar um corpo-pensamento, capaz de manifestar diferentes possibilidades comunicativas. Para o coreógrafo, seu corpo-cansaço se constitui a partir da experiência diária de viver na cidade de São Paulo, um local que

[...] exige muita coisa, você sempre rápido nas coisas, você sempre pendente o tempo inteiro parece, você não dá conta de fazer tudo. Eu acho que é um cansaço bem cotidiano, de viver num lugar super

barulhento o tempo inteiro, um cansaço de muita informação, muito barulho, desse corpo que no fim do dia está no chão, com gestos duros, secos, staccatos, acho que bem cotidiano. (Fukushima, 2012).

A curadora Christine Greiner nomeia o solo como ―autobiografia sem palavras‖ ao escrever sobre Fukushima em texto para o Panorama SESI de Dança

2010:

A sensação de não poder acordar e se levantar, a descoberta do movimento que desfaz os padrões vigorosos e se transforma em salva-vidas, a dificuldade de articulação entre o pensamento e a palavra que salta da boca. As referências da sua formação eclética (e angustiada) são embaralhadas: o corpo circense, o corpo atleta, o corpo oriental, o corpo de uma dança popular brasileira, o corpo de uma dança contemporânea possível. O que parece generalista e abstrato se repensa com clareza na exploração de espacialidades, linhas e gestos nascidos das articulações. É quando Eduardo transita entre a verticalidade disposta na encruzilhada construída no canto das paredes e o espaço semi-aberto de um corpo colado no chão. Na passagem entre o invisível (quase-gesto) e o que se dá a ver, todos os estigmas do passado são banidos e arrancados do enclausuramento (o quarto de dormir, as lembranças tristes, as narrativas fictícias). É quando se abre, finalmente, uma nova trilha, desta vez, para estar-em-casa-no-mundo.

Uma dança ―de verdade‖, realizada como testemunho pessoal ou no campo que acolhe trabalhos percebidos pelo pesquisador Óscar Cornago (2009) como ―fenômenos da confissão‖, ―tecnologias do eu‖ e ―estéticas da existência‖. No texto para imprensa e divulgação assinado pelo próprio Fukushima, ele confessa: ―A partir do meu grande cansaço [...] chego a essa pergunta e desenvolvo-a em linguagem corporal‖. O artista transforma sua confissão em ato performativo, apresenta-se em primeira pessoa dançando experiências recuperadas e inscritas no seu corpo. Ou seja, dança um passado que continua atravessando o presente. A proximidade espacial com o público, disposto ao redor da cena em que acontece a dança, colabora para a ocorrência de um encontro entre todos os presentes e diferentes. A teatralidade emerge neste espaço em que histórias, atitudes e experiências se confrontam.

Trata-se de um gesto de afirmação e de dúvida ao mesmo tempo, de afirmação de uma necessidade de encontrar um sentido para uma(s) história(s) e de dúvida sobre como fazê-lo. Somente uma coisa fica clara, o caminho é através do outro, a confissão não faz sentido, não pode ter verdade, se não for através da confrontação com quem está em frente, uma necessidade de comunicação explícita distinta da que teve a dança em outros momentos. (Cornago, 2009, p. 107).

A memória perpassa a dança não apenas no nível de uma vivência pessoal do cansaço. Com uma política da repetição dos movimentos, Fukushima lembra a importância da memória no aprendizado da dança. Toda aquisição de conhecimento, qualquer aprendizado, necessita de um tempo dedicado à repetição, que longe de corresponder a uma não-mudança, diz respeito a um modo relacional e dinâmico, precioso a todo processo de modificação. O coreógrafo exalta o processo de repetição em suas pesquisas, que explica como um

Martelar numa mesma tecla até que ela se transforma em outra coisa. [...]. a repetição se dá muito mais numa intenção, repetir uma intenção, do que repetir os mesmos gestos. Para mim os mesmos gestos vem como uma consequência, o que eu busco é achar uma qualidade de estar e de se movimentar. O que me interessa mais é esse estar e esse movimentar que gera uma qualidade, e eu não me preocupo muito se o gesto está exatamente assim, se a mão está na esquerda, no alto... não importa. É o todo. É a repetição para eu achar qualidade onde eu possa ficar livre para fazer o que eu quiser de gestos. É a repetição mais para eu achar um lugar [...]. (2012).

A dança de Fukushima tem princípio essencialmente poético e não figurativo, realizando um composto de sensações. Neste contexto a ação do corpo tem papel central e constrói uma narrativa cinética (e não mimética ou representativa). Numa relação não banal, a dança se apodera de Fukushima, que se entrega a uma experiência própria de metamorfose. Como superar o grande cansaço? se desenvolve a partir de transformações de um corpo como sensação, que molda acontecimentos. Fukushima estabelece novas conexões ao explorar a repetição e expansão da ação no espaço. O bailarino não exalta o resultado coreográfico, mas seu próprio modo de produção. Suas improvisações representam uma experiência para si mesmo,

[...] relativizada pela sua frequência e pelo exame atento de seu desenrolar. Uma vez que não se espera a aparição mágica de um produto excepcional, o interesse se desloca em direção à soma de processos que poderiam eventualmente levar a um produto provisório, também questionado. (Ryngaert, 2009, p. 91-92).

Na dramaturgia contemporânea de Fukushima, improvisação e composição estão em confluência num corpo que se oferece como passagem. Um corpo que vomita e devora os próprios gestos. O coreógrafo propõe um modo de dançar originado numa sensação específica e insistente. O senso comum evoca a improvisação como território de invenção, novidade, originalidade, ruptura.

Considero mais apropriado pensá-la no terreno da tentativa insistente, da busca teimosa, do cruzamento de possibilidades, da tessitura de relações para emergência de outras formas e sentidos, em um campo de embates e encontros. É a construção da simplicidade em oposição à artificialidade, bem como, ao excesso de ordenação clássica e linear. Como pensar o acontecimento em Como superar o grande

cansaço? Pode-se dizer que ele surge com a obstinação e vontade de experiência

de Fukushima, que desenvolve um gestual improvisado e por isso, arriscado, indo ao encontro e confundindo-se com o mundo.

No improviso meus braços se acabam.

Quero chegar nesse cansaço, como um oposto de um corpo cansado, uma luta no corpo no chão, como se essa luta fosse a causa do cansaço, a não entrega, o expurgo do cansaço.

Ao contrário do cansaço, o corpo potente, indo nos seus instintos, desesperos e alívios.

Bem árdua essa parada.

Percebo algumas células de movimentos que aparecem e continuam, umas por escolhas, outras não, essas me fazem sentido após o fazer e assistir...

célula 1: movimento da perna que desde o começo aparece.

célula 2: balanço com o tronco, um corpo que não aguenta, mas continua porque está vivo.

célula 3: espasmos com o cotovelo, queda ombro, queda cabeça e desistência.

célula 4: o empurrar o chão, o corpo que quer sair do chão e desiste, sede.

célula 5: batidas com o braço no tronco, como se fosse uma automutilação, a dor.

Não quero cair no dramático, mas não tenho como fugir no momento. Não quero dançar à toa, mas no momento não tenho como fugir, preciso dançar muito à toa, para conseguir chegar a uma razão. Dançar por uma razão, ou sem nenhuma razão. Escolhas… (Eduardo Fukushima, 2011).

Nessa fala, Fukushima expõe algumas das forças essenciais que atuaram no desenvolvimento de sua movimentação. Ou seja, pode-se perceber alguns dos princípios testados e encontrados pelo coreógrafo no processo de pesquisa, como balançar o tronco, tombar partes do corpo, tentar desgrudar do chão. Numa investigação de dança voltada para a construção de uma dramaturgia no corpo, é provável que não exista um ―objeto de estudo‖, mas ―princípios organizativos‖, como apontou Greiner, os quais remetem às inquietações, hipóteses e ações do coreógrafo (2010a, p. 82). Vale então, esclarecer e distinguir dois modos compositivos em dança: um em que prevalece uma coordenação determinada de passos memorizados, no qual a coreografia se estabelece de forma normativa e

mimética a partir de um modelo idealizado; outro em que a configuração obedece a princípios organizativos, com a intenção de romper com modelos sedimentados e estabelecer

[...] em cada acontecimento - ensaio ou apresentação - um tipo de relação neuro-sensório-motora que não esteja completamente mapeada [...]. Isto possibilita a busca por novas soluções a determinadas questões colocadas ao corpo em uma situação na qual a contingência será sempre ressaltada como um dos fatores de acordo entre corpo e ambiente no instante dançado. (Leste, 2010, p. 30).

Tal é a proposta coreográfica de Fukushima, que se afasta de um modelo de comunicação determinística de transmissão de informações. Ao invés, afirma-se como um processo que pretende estabelecer e manter vínculos, considerando a probabilidade como parâmetro. Na consideração de Baitello:

Comunicar-se é criar ambientes de vínculos. [...] os vínculos procedem de atmosferas afetivas, quer dizer, procedem de espaços da falta [...]. Corpos não transmitem bits e bites, não dosam ―informações‖ de maneira digital nem enviam ―informações‖ de modo analógico. Corpos mostram-se, apresentam-se, de maneira complexa, múltipla e, além disso, frequentemente enigmática [...]. Por meio de seus enigmas é que capturam a atenção de outros corpos. Corpos não emitem sinais unidirecionais, mas geram atmosferas saturadas de possibilidades de sinais que se transmutam em vínculos e elos quando auscultados por outros corpos. (2008, p. 100- 101).

De acordo com esta proposição, o corpo distancia-se de uma funcionalização qualquer para ganhar o sentido de ambiente, atmosfera, corporeidade multifacetada, pensamento em ação, diferença encarnada. Que modo próprio de corpo assume o ―corpo-cansaço‖ de Fukushima? Como opera na geração de sua dança? A mera intenção de se fazer ―cansaço‖ seria insuficiente para transformar o comportamento de Fukushima. O desafio vencido pelo coreógrafo foi o de se afastar da lógica da causalidade e se voltar para a criação de estados, colando intenção e ação.

As intenções que surgem no decorrer da própria ação – a intenção na ação – refinam a atenção e propiciam a emergência de novos conteúdos, micro-sensações e, até mesmo, ações involuntárias. São ajustes que ocorrem pela própria natureza dos processos cognitivos, que negociam, permanentemente, as relações do corpo consigo mesmo e com o ambiente, considerando que uma ação nunca se repete de forma idêntica. [...] Trata-se de corpos que pensam ou de mentes encarnadas em corpos comprometidos (Nunes, 2009, p. 148).

A rapidez e fluidez dos movimentos aliadas a singularidade do estado corporal em Fukushima estão longe de ser um automatismo qualquer. Ao contrário, o criador não se afasta de sua atentividade e permanece vigilante em suas sensações. O esforço para despertar o corpo e arrancá-lo de sua condição anestesiada ocorre com o mesmo em ação, pois como sugere o filósofo Michel Serres (2004), o corpo em movimento tem o papel de federar os sentidos e descobrir sua própria existência.

Mas se mente e corpo são inseparáveis, por que aparentemente não permanecem sempre em estreita colaboração, no sentido que normalmente fazemos uma coisa e pensamos em outra? Por que somos pouco atentos? Por que nos separamos de nossa própria experiência? Os autores do livro A mente incorporada se debruçam sobre estas questões ao investigar a incorporação do conhecimento, da cognição e da experiência, propondo uma ponte entre as ciências cognitivas (estudo da mente na ciência) e a mente na experiência do cotidiano pelo método da tradição budista de meditação atenta. Na sua visão, a ―dissociação mente-corpo, consciência-experiência é o resultado do hábito, e esses hábitos podem ser quebrados‖ (Varela, Thompson e Rosch, 2003, p. 42). Para desenvolver a atenção e consciência que resultaria em aproximar a pessoa de sua experiência, sugerem uma reflexão incorporada.

Por incorporada queremos nos referir à reflexão na qual corpo e mente foram unidos. O que essa formulação pretende veicular é que a reflexão não é apenas sobre a experiência, mas ela própria é uma forma de experiência – e a forma reflexiva de experiência pode ser desempenhada com atenção/consciência. Quando a reflexão é feita dessa forma, ela pode interromper a cadeia de padrões de pensamentos habituais e preconcepções, de forma a ser uma reflexão aberta – aberta a possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que uma pessoa tem do espaço da vida. Nós denominamos essa forma de reflexão de reflexão atenta, aberta. (Varela, Thompson e Rosch, 2003, p. 43).

A proposta admite a reunião entre intenção e ato, a unidade entre o corpo e a mente, com o desenvolvimento de hábitos nos quais ambos permaneçam em plena coordenação. O resultado de tais acordos é um gesto controlado e preciso, tal qual é possível verificar no corpo afinado e agitado de Fukushima. Uma dança contemporânea que é dança no corpo (e não dança com o corpo), e que apresenta uma relação muito maior com as forças (do que com as formas), com o esgotamento

(do que com o virtuosismo) e com o acontecimento que se extrai da vida (do que com a vida como ela é). O acontecimento no corpo de Fukushima possibilita apreender um estado de desequilíbrio, vertigem e perturbação, bastante próprio ao mundo em que vivemos e que, portanto, também nos pertence.

Como superar o grande cansaço? (2010), Eduardo Fukushima. Fotos: Inês Correa.