• Nenhum resultado encontrado

"No roldão das horas e do vento": o tempo em A ostra e o vento, de Moacir Costa Lopes

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share ""No roldão das horas e do vento": o tempo em A ostra e o vento, de Moacir Costa Lopes"

Copied!
124
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

“NO ROLDÃO DAS HORAS E DO VENTO”: O TEMPO EM A OSTRA E O VENTO, DE MOACIR COSTA LOPES

THALLYS EDUARDO NUNES DE ARAÚJO OLIVEIRA

NATAL/RN 2020

(2)

THALLYS EDUARDO NUNES DE ARAÚJO OLIVEIRA

―NO ROLDÃO DAS HORAS E DO VENTO‖: O TEMPO EM A OSTRA E O VENTO, DE MOACIR COSTA LOPES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, como requisito para obtenção do título de Mestre.

Área de concentração: Literatura Comparada. Linha de pesquisa: Poéticas da Modernidade e da Pós-modernidade.

Orientadora: Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves

NATAL/RN 2020

(3)

THALLYS EDUARDO NUNES DE ARAÚJO OLIVEIRA

―NO ROLDÃO DAS HORAS E DO VENTO‖: O TEMPO EM A OSTRA E O VENTO, DE MOACIR COSTA LOPES

DATA DA DEFESA: 31 de janeiro de 2020

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves (Orientadora) (Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN)

Prof.ª Dr.ª Juliane Vargas Welter (Examinadora Interna) (Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN)

Prof. Dr. Orison Marden Bandeira De Melo Junior (Examinador Interno) (Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN)

Prof.ª Dr.ª Concísia Lopes dos Santos (Examinadora Externa) (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN)

(4)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Oliveira, Thallys Eduardo Nunes de Araujo.

"No roldão das horas e do vento": o tempo em A ostra e o vento, de Moacir Costa Lopes / Thallys Eduardo Nunes de Araujo Oliveira. - 2020.

124f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Natal, RN, 2020.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves.

1. A ostra e o vento - Dissertação. 2. Tempo na narrativa - Dissertação. 3. Narrativa fantástica - Dissertação. I. Gonçalves, Marta Aparecida Garcia. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

(5)

O tempo é o lenço de toda a lágrima. (Mia Couto)

(6)

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

A minha mãe, Gessa, e a meu pai, Paulo, pelo apoio incondicional e pelo amor de sempre. A meu irmão, Pablo, e a minha irmã, Laiz, pela cumplicidade e pelo carinho desmedidos. Ao querido Professor Henrique, exemplo profissional e pessoal, por ter despertado em mim o gosto pela leitura e pela pesquisa literárias.

A minha orientadora, Professora Marta, pelas conversas, pelas trocas e, sobretudo, por me possibilitar descobrir que eu podia mais do que eu acreditava.

À Professora e grande amiga Lanaiza, por ter me apresentado a literatura de Moacir Costa Lopes e pelas longas e prazerosas conversas a respeito dela.

A meus amigos Genilma, Glênio, Madson, Naide e Rayara, por me encorajarem nas horas mais difíceis, pelos passeios – os resgates necessários – e pelas risadas compartilhadas.

A minhas amigas, bests da vida toda, Emília e Isa, por terem acompanhado de perto cada passo desse estudo, pelos conselhos e pela amizade sempre sincera.

À querida Gabi Kelmer, amiga de todas as horas, pelas repetidas leituras, pelos apontamentos precisos e pela gentil preocupação com o bom andamento da minha pesquisa.

A Fernando Paulo, meu ―amigo dos fluxos‖, por ter passado dois anos me perturbando a mente, perguntando se o tempo dava uma dissertação – parece que sim!

A Aparecida, Ingrid e Kleitinho, por sempre estarem presentes, mesmo quando ausentes. A minhas amigas e a meus amigos da graduação e do mestrado, em especial a Amanda, a Bianca, a Camila, a Eliene, a Jéssica-Có, a Jéssica-Crazy, a Guilherme, a Leocy, a Nadja, a Paulo, a Sérgio e a Tarsila, pelas conversas descontraídas e conhecimentos compartilhados. Às professoras Ana Cláudia e Vaninha, por insistirem para que eu trilhasse o árduo porém prazeroso caminho das palavras.

Aos Professores Derivaldo e Juliane, membros de minha banca de qualificação, pela leitura cuidadosa, pelas críticas construtivas e pela contribuição imensurável.

Às Professoras Concísia e Juliane – esta, parceira já de outros tempos – e ao Professor Orison, por terem, tão gentilmente, aceitado o convite para compor a banca examinadora.

Aos Professores da UFRN, principalmente a Andrey, a Carla e a Palhano, por proporcionarem o meu crescimento intelectual e pessoal.

(7)

Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo tempo tempo tempo És um dos deuses mais lindos Tempo tempo tempo tempo

(Caetano Veloso)

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; o tempo está em tudo.

(Raduan Nassar)

A cada passo o tempo volateia e nele somos jogados. O vento, o toque dos sinos que desce dos picos, o odor de manjericão, jasmim e rosas, a água deslizando no córrego, tudo dentro do tempo.

(8)

RESUMO

Moacir Costa Lopes estreou no cenário literário em 1959, com a publicação de Maria de cada porto, romance que explora com profundidade a temática marítima, na época pouco comum nas letras nacionais, foi recebido com apreço pela crítica de então, que destacou, além desse aspecto inovador, o manejo diferenciado a que o autor submeteu a categoria narrativa do tempo. A preocupação com a temporalidade se mostra evidente em toda a literatura de Lopes, podendo-se, inclusive, apontar o uso experimental desse elemento como marca estética da produção ficcional do autor, que procurou manipulá-lo de forma diferenciada em todos os seus romances, ora em maior ora em menor grau. Será em A ostra e o vento (1964), quarto romance de Lopes, que o tempo se insurgirá na narrativa como elemento central, sendo explorado com engenho pelo autor no âmbito estrutural e no âmbito temático. Esta dissertação objetiva analisar o tempo no romance A ostra e o vento, tanto no que diz respeito à configuração estrutural desse elemento na narrativa em questão quanto no que se refere à relação que nela se estabelece entre o tempo e o fantástico, aspectos de absoluto relevo no corpus selecionado. Fundamentam nossa análise os estudos de Gérard Genette (1979), Benedito Nunes (1988) e A. A. Mendilow (1972) acerca do tempo na narrativa; de Tzvetan Todorov (2008) e Remo Ceserani (2006) acerca do fantástico na literatura, além de outros autores. Os resultados da pesquisa apontam para a imprescindibilidade da configuração temporal na construção dos sentidos da obra analisada, já que interfere na composição dos demais elementos estruturantes do texto narrativo (enredo, personagem, espaço e narrador) e da atmosfera fantástica que caracteriza o romance, além de suscitar reflexões acerca do próprio conceito de tempo.

(9)

ABSTRACT

Moacir Costa Lopes started his literary career in 1959 with the novel Maria de cada porto, which explores, in depth, the theme of the sea at a time when it was not commonly written about. He was well received by the critics of the time, who praised him for this innovative aspect of his work as well as for the different ways the category of time was used in his narrative. His concern with the theme of time is shown relevant in Lopes‘s oeuvre, and the experimental use of this element can be pointed out as his aesthetic mark of fiction production. He manipulated it in different ways, to a greater or lesser degree, throughout his novels. Only in 1964, when Lopes wrote his fourth novel, titled A ostra e o vento, was time used as a central element in the narrative, being inventively explored in its structural and thematic planes. This thesis aims to analyze time in the novel A ostra e o vento in terms of the structural configuration of the narrative as well as in the relation it is established between time and the fantastic, aspects of great relevance to the selected corpus. The analysis is theoretically based on studies by Gérad Genette (1979), Benedito Nunes (1988) and A. A. Mendilow (1972) on time in narratives, as well as Tzvetan Todorov (2008) and Remo Ceserani (2006) on the fantastic in literature, among others authors. The research results point to the indispensability of the temporal configuration to the work‘s production of meanings, since it interferes in the composition of the other structuring elements of the narrative, such as plot, character, space and point of view, and of the fantastic atmosphere that characterizes the novel. Moreover, it prompts reflections on the concept of time.

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...11

1 MOACIR COSTA LOPES: O NAVEGANTE DO TEMPO...15

1.1 O MARINHEIRO QUE ESCREVIA ROMANCES...15

1.2 O ROMANCISTA DO MAR TEMPO...19

1.3 DE OLHO NOS PONTEIROS: UM BREVE HISTÓRICO DO TEMPO…...29

1.4 O TEMPO NA NARRATIVA...35

1.4.1 O tempo da história...36

1.4.2 O tempo da narrativa...40

2 O TEMPO EM A OSTRA E O VENTO...43

2.1 O RESUMO DA OBRA: UMA HISTÓRIA QUE SÃO DUAS...43

2.1.1 A história do inquérito: tempo no tique-taque do relógio...46

2.1.2 A história do crime: tempo no tique-taque da mente...51

2.2 DE OLHO NAS ENGRENAGENS: TEMPO, ESTRUTURA E SENTIDO...57

2.2.1 Ordem...57

2.2.2 Duração...61

2.2.3 Frequência...67

3 O TEMPO E O FANTÁSTICO EM A OSTRA E O VENTO...72

3.1 O FANTÁSTICO NA LITERATURA...72

3.2 O SOBRENATURAL EM A OSTRA E O VENTO...74

3.2.1 As ilhas misteriosas...75

3.2.2 O sobrenatural relatado: as histórias de que fala a história...80

3.2.2.1 O navio fantasma Palestina...81

3.2.2.2 O mito de Ícaro...88

3.3 A NOITE: O TEMPO DO FANTÁSTICO...93

3.3.1 O tempo simultâneo: uma noite que são duas...100

3.4 SAULO: O PRISIONEIRO DO TEMPO...107

3.4.1 Da criação à eternidade...107

3.4.2 A dor do ser-para-sempre...113

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...118

(11)

INTRODUÇÃO

O tempo é, sem dúvida, o elemento mais misterioso que acerca as nossas vidas, de modo que desvendar o seu mecanismo sempre preocupou a mente curiosa do homem nas mais diversas épocas. No entanto, mesmo depois de ter sido alvo de exaustivas especulações em torno de sua natureza, tanto da filosófica e subjetiva quanto da física e objetiva, o tempo permanece indevassável, e a resposta à instigante pergunta ―o que é o tempo?‖ continua a mesma desde a mais remota Antiguidade até os dias de hoje: nós não sabemos.

Essa incompreensão, minimizada pelos postulados de Galileu, de Newton e, mais recentemente, de Einstein, cientistas que nos ajudaram a entender melhor o modo como nos relacionamos fisicamente com o tempo, não impediu que o homem, dentro de certos limites, o manipulasse: antes mesmo dos egípcios terem inventado o relógio de sol, há cerca de cinco mil e quinhentos anos, o próprio planeta Terra, em revolução em torno de si mesmo, funcionava como relógio, possibilitando a contagem do tempo físico. Desde então, o relógio foi aperfeiçoado – relógio de sol, de areia, de parede, de pulso, relógio atômico – e o tempo foi dividido em horas, minutos, segundos, milissegundos etc., de modo que, assim, podem pensar os mais ingênuos, o homem passou a controlá-lo. O que acontece, porém, é justamente o contrário: expressões como ―ainda é cedo‖ e ―é tarde demais‖, ou ―estou adiantado‖ e ―estou atrasado‖, derivadas de nossa relação com a medição física do tempo, longe de ratificarem seu assujeitamento ao homem, evidenciam o oposto – o tempo é que nos subjuga e nos controla, por vezes compassivo, por vezes, cruel.

Na dimensão filosófica, assim como na física, o tempo se mostra indevassável. Problematizado já por Platão, que o compreendeu como uma imitação da eternidade, ou uma cópia imperfeita de um modelo perfeito, o tempo também foi objeto de reflexão de Aristóteles, para quem seu conceito estaria relacionado ao número do movimento segundo o antes e o depois. Kant, por outro lado, entendeu o tempo como uma condição subjetiva intimamente relacionada à natureza da mente humana, sendo, desse modo, destituído de realidade própria. Poderíamos acrescer a esses pensamentos os de filósofos como Bergson, Husserl, Heidegger, Nietzsche, Hegel e de tantos outros, e, mesmo assim, não chegaríamos a uma definição que abrangesse, de forma absoluta, a noção de tempo.

A literatura, semelhante à física e à filosofia, e ainda a outros campos do saber, como a psicologia, a sociologia e a antropologia, por exemplo, não permaneceu indiferente ao fascínio ante os mistérios do tempo. Seu interesse, porém, não está em defini-lo ou, mais estritamente, em compreendê-lo, mas em experimentá-lo, problematizando-o em suas mais

(12)

diversas acepções. Assim é que, tanto na expressão lírica, quanto na épica e na dramática, o tempo tem se inserido como elemento crucial, ora de modo mais evidente, ora menos, mas sempre intimamente relacionado à vivência humana, sem a qual parece impossível concebê-lo ou representá-lo. Nesse sentido, podemos afirmar que o tempo permeia toda a produção literária desde a sua mais antiga realização, abrangendo até mesmo as narrativas de natureza oral, praticadas desde tempos imemoráveis.

Foi no século XX, porém, de acordo com Mendilow (1972), que o conceito de tempo passou a integrar, de modo quase obsessivo, os escritos literários. Isso se daria em decorrência da tentativa de representação do estilo de vida da época, marcado pela transitoriedade e pela rapidez das mudanças econômicas e sociais, que ―retiraram do homem aquele sentimento de estaticidade social, aquela certeza de permanência que parece ter marcado períodos de transformação mais confiantes e mais vagarosos‖ (MENDILOW, 1972, p. 6). Desse modo, o tempo da organização – até certo ponto pouco percebido – passou, nas obras literárias, ao tempo do caos, da desintegração, da precariedade e da finitude, sendo trazido ao primeiro plano narrativo por autores como Marcel Proust, James Joyce, Dorothy Richardson, Virginia Woolf e William Faulkner, por exemplo.

Na literatura brasileira, o tempo figura como elemento fundamental em obra de escritores como Raduan Nassar, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, dentre outros. Mas foi com Moacir Costa Lopes que esse elemento ganhou estatuto – por que não dizê-lo? – de protagonista do texto narrativo. Fascinado pelo tempo, Lopes apontou a si próprio, em seu Guia prático de criação literária (2001), como um dos autores que mais tem se preocupado, conscientemente ou não, com a importância da noção de temporalidade na obra de ficção, o que se comprova ao longo de toda a sua produção literária, que tem, no manejo diferenciado do tempo, bem como na sua tematização, uma de suas principais características.

Nesse sentido é que essa pesquisa objetiva desenvolver um estudo acerca do tempo em A ostra e o vento, publicado em 1964, quarto e mais importante romance de Lopes, mais estritamente no que se refere à construção desse elemento na estrutura da obra e à sua relação com a natureza fantástica que a caracteriza, aspecto esse intimamente ligado a algumas questões que, no plano do conteúdo, também se relacionam à temporalidade, como solidão, memória, finitude e eternidade, principalmente. Para tanto, tomamos como base para nosso estudo conceitos oriundos do campo da narratologia, que tem como representantes Gérard Genette e Tzvetan Todorov, além de tantos outros.

A adoção de tal caminho teórico não nos impede, porém, de, além de investigar o texto literário em sua estrutura, como propõem os postulados desses teóricos, lançarmos nosso

(13)

olhar para aspectos que extrapolem esse recorte analítico, de modo que também serão foco de nosso interesse questões relacionadas à semântica e à simbologia do tempo na obra analisada. Procedendo assim, pretendemos dar conta das duas esferas de significação do texto literário, a da forma e a do conteúdo, e, desse modo, desenvolver um estudo que contemple, tanto quanto possível, a complexa peculiaridade que acerca o tempo naquela obra de Lopes.

É importante ressaltar a existência de alguns estudos que, antes do nosso, já abordaram a temporalidade em A ostra e o vento, como é o caso da dissertação de Lanaiza do Nascimento Silva Araújo (2012) – em que, para atestar a complexidade da personagem Marcela, a autora recorre, dentre outros recursos, à estratificação temporal – e da tese de doutoramento do americano Michael Fody III (1978) – em que são estudadas as estruturas dos seis primeiros romances de Moacir Costa Lopes. Esses estudos, embora apresentem legítima contribuição para a fortuna crítica de Lopes e para os estudos literários, mostram-se limitados no que se refere à compreensão do tempo em A ostra e o vento, uma vez que trazem a análise do aspecto temporal aliada à compreensão de outras categorias da narrativa, sendo a questão do tempo apresentada de forma panorâmica.

Dentre os estudos cujo foco analítico mais se aproxima do nosso, está a dissertação de Sônia Maciel, defendida em 2006 pela PUC de São Paulo. Em sua pesquisa, a autora analisa, numa perspectiva comparada, a temporalidade no romance A ostra e o vento e no filme homônimo, adaptado da obra de Lopes por Walter Lima Júnior em 1997. Este estudo, no entanto, apesar de trazer uma discussão bastante significativa em torno da obra de Lopes em questão, dedica-se, de forma mais específica, a entender a construção temporal da adaptação fílmica, deixando o tempo literário em segundo plano.

Tendo em vista, pois, a realização de uma análise que priorize a temporalidade em A ostra e o vento, aspecto até então examinado de forma pouco aprofundada, conforme ressaltamos, dividimos este estudo em três capítulos. No primeiro, de título ―Moacir Costa Lopes: o navegante do tempo‖, apresentamos uma rápida biografia do autor, enfatizando, além de seus dados bibliográficos, alguns aspectos de sua vida pessoal, que conferem à figura do escritor uma carga de humanidade. Em seguida, falamos da importância que o tempo tem na produção literária por ele assinada, tendo sido tratado de forma diferenciada, ora em maior ora em menor grau, em todos os seus romances. Traçamos, depois disso, um breve histórico do tempo ao longo da história da humanidade, de modo a enfatizar o interesse que esse estranho elemento sempre despertou no homem e, por último, tecemos algumas considerações sobre o tempo na literatura, em seus aspectos artístico e teórico.

(14)

No segundo capítulo, ―O tempo em A ostra e o vento‖, analisamos o romance que constitui o nosso corpus enfatizando a construção peculiar da categoria estética do tempo que nele se processa. Assim, depois da apresentação do resumo do enredo da obra – quando descrevemos e tecemos considerações acerca das duas histórias que, juntas, compõem sua trama –, realizamos um estudo do tempo enquanto elemento da estrutura narrativa do romance, apontando, amparados principalmente pelos estudos de Genette (1979), os modos de organização dessa categoria no que diz respeito à ordem, à duração e à frequência das ações narradas. Nesse caso, buscamos, mais do que descrever a estrutura temporal do romance, compreender como essa estrutura participa da construção dos sentidos da narrativa.

No terceiro e último capítulo, intitulado ―O tempo e o fantástico em A ostra e o vento‖, analisamos a relação entre a temporalidade e a atmosfera fantástica que caracteriza o romance. Nesse sentido, depois de apresentarmos breves considerações sobre o estudo do fantástico na literatura, tratamos dos aspectos sobrenaturais presentes na obra, tanto dos que envolvem o espaço das ações nela narradas – uma ilha –, por si só tradicionalmente relacionado à ocorrência de fatos que transpõem o âmbito das experiências humanas naturais, quanto de outros que, sendo apenas relatados pelas personagens, têm também aí seu fundamento. Em seguida, abordamos a relação entre a noite e o fantástico na narrativa em análise, tratando da importância da ambientação noturna para a ocorrência de eventos estranhos e analisando a simultaneidade temporal que, a certa altura da trama, se processa no romance. Por fim, tratamos do fantástico em relação a Saulo, personagem que é apresentada como eterna, assumindo, mediante essa característica, uma condição estranha em relação ao tempo, já que escapa à finitude que ameaça todas as coisas.

(15)

1 MOACIR COSTA LOPES: O NAVEGANTE DO TEMPO

1.1 O MARINHEIRO QUE ESCREVIA ROMANCES

Sou marinheiro, flutuo como ondas nessa existência entrecortada, somos feitos de despedidas e saudades, é o mar que assim quer.

(Moacir Costa Lopes)

Moacir Costa Lopes nasceu em 11 de junho de 1927, em Quixadá, no interior do Ceará, terra do também escritor Jáder de Carvalho, e onde viveu durante boa parte da vida a escritora Rachel de Queiroz. Filho de Delmiro Lopes da Costa, falecido em 1929, e Odete Oliveira Costa, que morreu também ainda durante a infância do futuro romancista, em 1938, Lopes não teve uma infância fácil. Em entrevista ao Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1960, ele revelou que ―Aos 5 anos, auxiliado por meu irmão Mario e minha irmã Lourdes, fazíamos a comida, arrumávamos a casa, costurávamos, para que minha mãe trabalhasse de sol a sol no Grupo Escolar de Quixadá para trazer nosso sustento‖ (PONTES, 1960, s/p)1

. Órfão aos 11 anos, ele foi viver, junto com os irmãos, na casa de um tio em Baturité, cidade onde deu continuidade aos estudos iniciados em Quixadá. Em 1940, o tio com quem morava decidiu mudar-se para Fortaleza, cidade onde o futuro escritor concluiu o curso primário, no Colégio Salesiano, e cursou o ginásio, na Escola Fênix Caxeiral. Era bom aluno, destacando-se em disciplinas como latim, aritmética, álgebra e geografia. Mas era a disciplina de língua portuguesa que mais o encantava e atraía, de modo que, mesmo antes de ir para a escola, ele já lia. Tendo sido alfabetizado em casa por uma tia, dedicava-se à leitura de cordéis e de alguns poucos folhetins literários que chegavam a Quixadá. Suas histórias favoritas eram As aventuras de João Valente e o Dragão de Três Cabeças, O homem que virou cavalo, Proezas de João Grilo e Pavão Misterioso, entre outras.

As memórias da época em que viveu na casa do tio são pouco felizes, uma vez que, conforme revelou Lopes em mais de uma das entrevistas que concedeu, ele e os irmãos eram severamente castigados, quer pelo que faziam, quer pelo que deixavam de fazer. A esse respeito, Susana Frutuoso, que escreveu uma breve biografia do autor, relata:

1 Ao longo deste estudo, algumas citações encontram-se sem identificação de página, e mesmo de data, tendo em

vista que foram retiradas de textos críticos que, em sua maioria oriundos de jornais, foram digitados e guardados pelo próprio Moacir, compondo uma espécie de coleção. Esse material nos foi gentilmente cedido pela, também pesquisadora da obra de Lopes, Drª. Lanaiza do Nascimento Silva Araújo.

(16)

Diariamente, tia Maria [esposa de Oscar, o tio que adotou Moacir e seus irmãos] guardava uma relação de ―queixas‖ para apresentar ao marido quando ele chegasse do trabalho cansado e mal-humorado. Sob qualquer alegação de malfeitoria, fosse por ter varrido mal o quintal, a calçada ou haver sujado sua blusa, era iniciada a sessão de tortura. ―As mãos ficavam inchadas e roxas, nem dava para fechar!‖ (FRUTUOSO, 2017, p. 27).

Foi devido aos constantes castigos a que era submetido que Lopes fugiu da casa do tio, em 1942, para Maranguape. Pouco tempo depois, tendo sido localizado, retornou a Fortaleza, onde passa a planejar nova fuga, desta vez para o Rio Grande do Norte. Os preparativos já iam adiantados quando, certo dia – contou Lopes em entrevista – uma menina chamada Maria lhe disse: ―Moacir, vamos até a praia de Mucuripe ver uns navios que chegaram? Você já notou que o mar é uma coisa formidável?‖ (PONTES, 1960, s/p). Esse incidente serviu-lhe como um chamado, de modo que, com apenas 15 anos, o futuro romancista ingressou na Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará.

Como marinheiro, Lopes participou de inúmeras missões navais durante a Segunda Guerra Mundial, o que lhe possibilitou conhecer a costa brasileira e ainda viajar para outros países da América do Sul e para os Estados Unidos. A vida marítima cativou o futuro escritor, chegando inclusive a figurar como tema principal da maioria de suas obras. O autor se inspirou, por exemplo, em duas ilhas que conheceu, o Atol das Rocas e a Ilha da Trindade, para criar dois de seus romances. Além disso, a vida nos portos, onde convivia com os mais variados tipos humanos, foi fundamental para a criação das personagens vívidas e marcantes que povoam suas narrativas. É o que afirma Frutuoso (2017) ao declarar que ele

Quase sempre, em suas histórias, retrata figuras do povo. Ele costumava dizer que as pessoas humildes sempre o atraíram por serem mais autênticas e por nelas encontrar uma identidade com as origens dele, oriundo que era de uma família de gente simples. Conviveu com flagelados durante as secas no Ceará, com marinheiros e prostitutas, bêbados e vagabundos de beira de cais (FRUTUOSO, 2017, p. 63-64).

A bordo dos navios em que serviu, Lopes dedicava-se, nas horas livres, à leitura literária e à escrita de poemas. Em entrevista, já quando escritor, relatou ter usado as longas viagens em alto mar para conhecer a obra de importantes autores da literatura mundial, como Victor Hugo, Flaubert, Dostoievski, Goethe e, dentre os nossos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, dentre outros. Além de literatura, o jovem marujo lia também obras voltadas a temas como filosofia, mitologia, antropologia e psicanálise, por exemplo, dedicando-se, sobretudo, ao estudo da cultura brasileira, amplamente retratada em suas obras

(17)

por meio de mitos e lendas. Essas leituras foram fundamentais para a construção do estilo literário autêntico que viria a caracterizar os escritos do autor quixadense.

Durante o período em que esteve embarcado, Lopes começou a escrever um romance que contava já com mais de 400 páginas quando foi descartado, pois o então marinheiro não sabia como terminá-lo. A dificuldade em encontrar o tema certo levou-o a aconselhar-se com alguns escritores cuja obra ele admirava. Assim, em 1946, após um encontro de muitas horas com o potiguar Câmara Cascudo, o então marinheiro tinha um rumo a seguir: escreveria sobre a vida de seus companheiros de mar, sugestão dada pelo mestre da cultura brasileira, que alegou ser o tema pouco explorado na literatura nacional.

Passaram-se 13 anos desde o encontro entre Lopes e Cascudo até a publicação de Maria de cada porto, que, depois de rejeitado por inúmeras editoras, foi custeado pelo próprio autor e chegou às livrarias em dezembro de 1959. Bem acolhido pela crítica e pelo público, o romance teve sua tiragem de cinco mil exemplares esgotada em apenas três meses e conquistou os prêmios Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, e Fábio Prado, da União Brasileira dos Escritores de São Paulo. Com isso, o nome do autor estreante deixou o anonimato e passou a ocupar as páginas dos suplementos literários dos jornais da época, que em sua maioria teciam elogios ao estreante conterrâneo de Rachel de Queiroz.

Seguiu-se à Maria a publicação de Chão de mínimos amantes, em 1961, romance em que Lopes explora a temática regionalista. Em Cais, saudade em pedra, de 1962, o autor retorna à temática marítima, no que seria, para o crítico Wilson Martins (1962), uma imitação do primeiro romance. A impressão negativa causada pela terceira narrativa foi logo esquecida com o lançamento de A ostra e o vento, em 1964. Considerada por muitos a mais importante narrativa de Lopes, a obra chamou a atenção da crítica estrangeira, principalmente nos Estados Unidos, rendendo muitos estudos acadêmicos, dentre os quais algumas teses.

Em 1968, ele publica Belona, latitude noite, obra que, nas palavras de Antônio Olinto, ―vem contribuir para nossa renovação de linguagem‖ (1968, s./p.). Quatro anos depois, Por aqui não passaram rebanhos, de 1972, chega às livrarias e, como os anteriores, é saudado com entusiasmo por críticos importantes. Nessa nova obra, o já experiente escritor, pela segunda vez, afasta-se do tema marítimo que caracterizou suas produções mais aclamadas, sem, no entanto, abrir mão do vigor poético que marca toda a sua ficção. O romance seguinte viria apenas em 1982, sob o título de O passageiro da Nau Catarineta, inspirado no poema português Nau Catarineta, que Lopes conhecera na infância.

Durante todos esses anos, muitas coisas aconteceram na vida do homem Moacir Costa Lopes: ele deu baixa na Marinha por tempo de serviço; fixou residência no Rio de Janeiro,

(18)

onde trabalhou no comércio, atuou como colaborador em jornais e deu aula em universidades na área de comunicação social; casou-se duas vezes e teve quatro filhos, dois dos quais, Cristina e Fábio, perdeu de forma trágica: vítimas de um acidente doméstico e de um câncer, respectivamente. Abalado, ele se afastou de seu ofício de escritor por algum tempo, mas graças ao apoio dos outros dois filhos, Clarice e Saulo, e da segunda esposa, a também escritora Eduarda Zandron, voltou a se dedicar à produção literária.

Assim, em 1995, chega ao público uma coletânea de contos intitulada O navio morto e outras tentações do mar. Cinco anos depois, sai pela Editora Quartet, que passaria a publicar as novas produções do autor, além de reeditar alguns de seus livros antigos, O Almirante Negro (Revolta da Chibata - A vingança), romance histórico que homenageia o marinheiro João Cândido. Vieram depois Onde repousam os náufragos (2003) e As fêmeas da Ilha da Trindade (2006). Outro romance histórico, desta vez sobre a Guerra de Canudos, A ressurreição de Antônio Conselheiro e de seus 12 apóstolos (2007), encerra a vasta produção assinada pelo Romancista dos Mares, como ele ficou conhecido.

Além de onze romances e uma coletânea de contos, Lopes escreveu ainda dois livros infanto-juvenis – As viagens de Poti, o marujinho (1974) e A pedra das sete músicas (1978) – e um texto poético-teatral – A dança do tarô (1994). Na esfera não literária, responde por inúmeros ensaios e um livro técnico – Guia prático de criação literária (2001) – em que apresenta conceitos ligados à teoria literária e esclarece alguns dos procedimentos de escrita por ele utilizados na tessitura de suas obras. Por fim, teve um de seus romances adaptado para o cinema: A ostra e o vento (1997), inspirado no romance homônimo do autor cearense, foi dirigido por Walter Lima Júnior e premiado em vários festivais, nacionais e internacionais, como o de Veneza, o Internacional de Friburgo e outros.

Conhecido nacional e internacionalmente, Lopes faleceu em 21 de novembro de 2010, no Rio de Janeiro, vitimado por um câncer descoberto já em estado avançado de desenvolvimento. À época, trabalhava na escrita de um novo romance, O olho clandestino do farol, e na finalização de suas Memórias, obras que não chegou a publicar. Hoje, mais de meio século depois da publicação de seu primeiro livro, a literatura de Lopes continua a encantar seus leitores, que se deixam envolver pelas tramas criativas e pela dimensão humana de suas personagens; além de mostrar-se uma fonte profícua para o campo dos estudos literários, que nela tem encontrado precioso material investigativo, tanto no que se refere às temáticas retratadas nas obras quanto em relação à questões estruturais, que ele procurou sempre inovar ao longo de toda a sua produção ficcional.

(19)

1.2 O ROMANCISTA DO MAR TEMPO

A problemática do Tempo vem, embora precariamente, desde Maria de Cada Porto, desenvolvendo-se em Cais, Saudade em Pedra e assumindo proporções de tema essencial a partir de A Ostra e o Vento. É uma preocupação permanente em todos os meus livros. Não representa uma fuga pela alienação, mas uma fuga do homem ao seu interior, que é eterno, permanente, circular, incontaminado.

(Moacir Costa Lopes)

O mar sempre desempenhou um papel de singular importância na vida do homem, servindo, desde as mais remotas épocas, como rota comercial e de transporte, como fonte de geração de energia e de extração mineral, e até mesmo como área de ação militar. Nesse sentido, atuou de modo decisivo no desenvolvimento das sociedades que, direta ou indiretamente, têm dele alguma dependência, e não só no campo prático, mas também no lúdico e imaginário, inspirando inúmeros artistas e escritores, que, fascinados pelo seu mistério e por sua potência aventuresca, utilizaram-se dele na composição de suas obras.

De fato, o mar já aparece como importante espaço literário nas narrativas épicas de Homero e Camões, por exemplo, que exploraram lendas e mitos a ele relacionados, além de no texto bíblico, onde se insere como locus da ação divina em inúmeras passagens, como na abertura do Mar Vermelho, feita por Moisés e narrada no livro do Êxodo, e na caminhada de Cristo sobre as águas, relatada no evangelho de Mateus. Na literatura brasileira, foi explorado tanto na poesia, como em Navio Negreiro, de Castro Alves, e em inúmeros poemas de Zila Mamede e Jorge Fernandes, quanto na prosa, principalmente em narrativas de autores que viveram em cidades litorâneas, como José de Alencar, em seu Iracema, e Jorge Amado, em Capitães da Areia, com a representação do cais de Salvador, dentre outras.

O que se percebe, porém, da leitura de muitas dessas obras, é que nelas o mar aparece apenas para compor a paisagem, de modo a imprimir na narrativa a cor local dos espaços onde elas se desenvolvem. Algo diferente acontece nas narrativas de Lopes, autor que, em praticamente todos os textos que escreveu, localizou o mar como espaço central de suas tramas, de modo que, em suas obras, o ―universo marítimo está configurado nos fatos narrados, no próprio modo de narrar, na perspectiva temporal adotada, nas personagens e suas visões de mundo, na linguagem utilizada, nos espaços descritos e em todo o contexto social ordenado nessa estrutura‖ (ARAÚJO, 2017, p. 287). Essa representação tão vívida do mar fez com que Jorge Amado, na apresentação da primeira edição de Maria de cada porto, atribuísse a Lopes a alcunha de ―Romancista do Mar‖, que é como ele é lembrado até hoje.

(20)

Embora não neguemos a pertinência dessa designação, há outra que, igualmente justa, sobretudo devido ao tratamento diferenciado a que Lopes submeteu a categoria que a nomeia, merece ser apontada, e é a de ―Romancista do Tempo‖. Flávio Moreira da Costa, em uma resenha sobre Por aqui não passaram rebanhos, publicada pelo jornal Diário de Campos, afirma acreditar que ―mais importante [nos textos de Lopes] que a presença do mar são essas duas constantes preocupações: o tempo – sua Metáfora maior – e a alienação – esse ‗mar‘ que afoga pouco a pouco o homem da era tecnológica‖ (COSTA, 1972, s/p). Além disso, conforme dissemos anteriormente, o tempo sempre figurou como uma das principais preocupações de Lopes em sua literatura, sendo explorado com diferenciado manuseio desde Maria de cada porto, obra em que o autor recusa a predominância do tempo cronológico, muito comum na literatura brasileira produzida até aquela época.

Nesse livro, é narrada a angustiosa espera de resgate, em alto mar, empreendida por um grupo de marinheiros náufragos, dentre eles Delmiro, o protagonista, que padecem de fome e sede, em balsas à deriva, depois que o navio onde serviam, o cruzador Bahia, foi a pique. As ações situadas no presente da narrativa, tumultuadas por alucinações e sonhos das vítimas do desastre, que aos poucos vão morrendo, misturam-se, graças ao uso da técnica do flashback, a lembranças de outras viagens, outros portos, das ―Marias‖ que aguardam em terra o regresso de seus amados, de modo a enlaçar passado e presente – real e onírico – em um turbilhão de imagens e fatos temporalmente pouco precisos. Esse modo de estruturação da narrativa é apontado pelo pesquisador norte-americano Michael Fody III, um dos pioneiros no tocante à pesquisa da literatura de Lopes, como consequência da ―[...] maneira normal de passar as horas intermináveis de rotina na imensidão do mar [...]‖, onde tudo que se pode fazer é ―[...] recordar, reviver e relatar‖ (FODY III, 1978, p. 28), ações em que, via de regra, as relações de causalidade inexistem ou existem de forma pouco evidente.

Fody levanta ainda outras questões relativas à construção do tempo em Maria de cada porto, uma das quais se refere à divisão das partes do romance, em que cada capítulo corresponde a um dia nas balsas, quatro ao todo, além de um prólogo – ―O naufrágio‖ – e um epílogo – ―Porto seguro‖. A cronologicidade dessa sequência temporal linear, marcada por expressões como ―O dia ia-se esvaindo vermelho por trás do mar, o segundo dia, uma quinta-feira de julho‖ (LOPES, 2002, p. 117) e ―Estamos no fim do terceiro dia, a febre vai subindo em meu corpo, meus olhos estão se apagando, tudo escurece‖ (LOPES, 2002, p. 189), é subvertida pela memória das personagens, que Fody afirma compreendida em vários planos dentro do tempo interno das lembranças, a saber: ―o passado recente, antes da última viagem do cruzador Bahia; o passado mais remoto das viagens anteriores, navios, aventuras, portos,

(21)

Marias; o passado marítimo lendário [...]; e projeções do passado no futuro ou conjeturas a respeito do futuro‖ (FODY III, 1978, p. 28).

Toda essa elaboração estética no tocante à construção e à representação do tempo em Maria de cada porto advém de uma preocupação que acompanhou Lopes ao longo de toda a sua trajetória de escritor. Em seu Guia prático de criação literária, o autor elenca vários aspectos aos quais, para ele, deve-se atentar quando se pensa na problemática do uso do tempo em uma obra de ficção:

1. O tempo cronológico ou cronométrico da trama romanesca. 2. O tempo dentro do tempo.

3. O tempo cronológico do envolvimento dos personagens. 4. O tempo vital, ou tempo mítico, tempo interior, subjetivo. 5. O tempo dos seres e coisas.

6. A dissonância do tempo vital entre personagens. 7. Tempo circular, a eternidade, o não-tempo.

8. Formas do corte do tempo na ficção (por ações, por mudança de espaço, por mudança de perspectiva de personagens).

9. Elementos referenciais de tempo (como fixação de datas, eventos, fatos, nos intertextos da obra).

10. O tempo de cada parte da obra – divisões, capítulos, parágrafos, frases ou orações, pausas de pontuação. (LOPES, 2001, p. 145)2

Esses aspectos, explorados já em Maria de cada porto, com especial destaque para a dissonância do tempo vital entre personagens – uma vez que, nesse romance, ―os náufragos, em cada uma das balsas, viviam um tempo cronométrico igual, emparelhados, mas o tempo vital de cada um era totalmente dissociado, no seu universo particular, cada um possuía um tempo vital próprio‖ (LOPES, 2001, p.148) –, passariam a compor um dos principais traços estéticos da literatura produzida por Lopes; e não apenas pela recorrência de seu uso, mas pelo modo diferenciado com que, agora podemos dizer, o Romancista do Tempo os manejou, muitas vezes ―subvertendo-os‖, conforme suas próprias palavras. Assim, constatamos, como o fez Araújo (2017) ao destacar a importância do mar na literatura de Lopes, que o tempo, na ficção desse autor, configura-se como elemento central, tanto no plano da forma, em que é reinventado, quanto no do conteúdo, interferindo na composição linguística, compondo os principais temas e, por vezes, inserindo-se na trama como possível personagem.

Talvez o romance de Lopes em que o tempo aparece de modo mais tradicional seja Chão de mínimos amantes, narrativa que, de acordo com Fody (1978, p. 57), ―se desenvolve sem complicações ou técnicas sofisticadas: a estória começa, desenrola-se sem interrupções

2 A concepção de Lopes relativa a esses aspectos será apresentada ao longo deste estudo na medida em que a eles

(22)

prolongadas, é contada no presente do indicativo, e acaba‖. Nesse romance, a história contada é a de Sitônio e Maria do Mar, que juntos promovem o desenvolvimento de Várzea Pequena, povoado fictício localizado em Quixadá – cidade onde nasceu Lope –, por meio do trabalho colaborativo e do compartilhamento dos lucros obtidos com a produção. A admiração pelo casal, porém, acaba por transformar-se em fanatismo, e a Sitônio e Maria são atribuídos inúmeros milagres, o que lhes confere uma aura mítica e, à narrativa, um tom fantástico.

Apesar da linearidade apontada pelo professor norte-americano, há, todavia, um recurso técnico relativo ao tempo que, referido por Fernando Py no prefácio à segunda edição desta narrativa, mostra-se de grande efeito: o aparecimento tardio de Sitônio, personagem que

[...] não nos aparece de corpo presente senão ao final da primeira parte do romance. Mas aí o leitor já possui todo um retrato psicológico do personagem. A habilidade de Moacir C. Lopes está em fazê-lo surgir através da boca dos habitantes do lugarejo, Várzea Pequena, em gotas lentas, miúdas, de maneira que tomamos conhecimento de opiniões diversas a seu respeito, estórias e lendas sobre ele narradas, e até mesmo a discussão das misteriosas origens do rapaz (PY, 1980, p. 15-16).

Em Cais, saudade em pedra, a estruturação diferenciada no que se refere à temporalidade volta a figurar como ponto chave da narrativa. A trama gira em torno de Gerson, marinheiro que, junto com alguns amigos, sobrevive ao naufrágio da corveta Camaquã e passa dezoito dias a perambular pelo cais de Recife, enquanto aguarda comando para um novo embarque. Os quinze dias imediatos após o naufrágio, além de inúmeros casos e incidentes envolvendo a tripulação ainda a bordo, são rememorados por Gerson, em poucas horas, nas três primeiras partes do romance, enquanto esta personagem aguarda sua amante sentado à beira mar. É interessante o jogo de repetição usado por Lopes na estruturação dessas três partes, feito de modo a sugerir uma quase estaticidade no tempo cronológico das ações narradas e uma distensão do tempo subjetivo vivenciado pelo náufrago sobrevivente.

Abaixo, temos os fragmentos que iniciam cada uma das três partes referidas:

Aqui estou eu neste quebra-mar entre meu passado, que afundou há quinze dias com a corveta Camacuã, e um futuro que não existe ainda. O presente são estas pedras onde estou sentado, é essa lua travessa nascida faz pouco, ondas molhando meus pés, é a cidade de Recife atrás de mim, é este banzo de mar, é Tolinha por quem espero (LOPES, 1963, p. 1).

Aqui neste quebra-mar desfio lembranças. Quinze dias são passados. Hoje, nervos retemperados para futuras viagens. Hoje sei que voltarei a ser o

(23)

marinheiro de antes. Tolinha que não chega com meu uniforme para, metido nele, percorrer ruas, procurar Estela (LOPES, 1963, p. 65).

Sim, aqui estou neste quebra-mar, entre meu passado, que afundou há quinze dias com a corveta Camacuã, e um futuro que não existe ainda. O presente são estas pedras onde estou sentado, é essa lua há muito nascida, é este banzo de mar, é Tolinha por quem espero e demora demais (LOPES,1963, p. 113).

Os últimos três dias, que correspondem à quarta parte do romance, referem-se aos acontecimentos posteriores ao encontro de Gerson com sua amante Tolinha, adiado até então. Aqui, a recorrência de flashbacks diminui de forma acentuada, e o tempo da história ganha um ritmo mais acelerado na medida em que a resolução dos conflitos da trama, reportados ao leitor por meio das rememorações de Gerson nas outras partes da obra, efetivam-se. Desse modo, o tempo da narrativa propriamente dito corresponde às horas em que Gerson revive o passado, mais esses três últimos dias, o que levou Fody a afirmar que, nesse romance, ―Lopes parece ter desprezado a intriga externa – a realidade externa da estória – em sua preocupação com a interna‖ (FODY III, 1978, p. 70).

Embora a estrutura temporal dos três primeiros romances tenha sido alvo da atenção de Lopes, que já neles tentou evitar a linearidade das tramas e variar as estratégias de construção desse elemento, é no quarto, A ostra e o vento, que ele faz da temporalidade a mola mestra de sua obra. A narrativa, estruturada sobre dois planos – um no presente, em que se investiga o desaparecimento dos habitantes de uma ilha, e um no passado, quando se dão as ações que culminam nesse desaparecimento – tem na rememoração seu principal recurso estético, como ocorreu já em Maria de cada porto e em Cais, saudade em pedra. Aqui, porém, o processo de lembrança se complexifica com a mistura das várias vozes que enunciam o romance entre Marcela, a protagonista, e Saulo, personagem criada por ela com o propósito de escapar da solidão que a vida em uma ilha lhe impunha.

Lopes, ao ser perguntado sobre o tempo nesse seu livro, afirmou:

A Ostra e o Vento foi um dos que deram muito trabalho porque eu resolvi subverter o tratamento do tempo narrativo, nem era aquela literatura linear, de princípio, meio e fim, nem era um livro louco. Foi um livro muito bem estruturado porque o tema exigia que fosse bem estruturado (ARAÚJO, 2011, s./p.).

De fato, nessa obra, o manejo com o tempo atinge alta complexidade, tanto no tocante à transição dos tempos narrativos – de modo que passado, presente e futuro misturam-se de

(24)

forma abrupta e, muitas vezes, perceptível apenas algumas linhas depois de realizada a mudança de um tempo para o outro –, à ocorrência simultânea de ações ocorridas em momentos distintos da trama e à circularidade do enredo, aspectos relacionados à forma, quanto no que diz respeito ao trato poético e simbólico conferidos ao tempo e ao uso de temáticas dele derivadas ou a ele subordinadas, como solidão e loucura, e finitude e eternidade, estes no plano do conteúdo.

O mesmo requinte em relação à temporalidade marca o romance posterior, Belona, latitude noite, tanto na perspectiva estrutural quanto na temática. A trama gira em torno de uma viagem empreendida pelo navio mercante Belona II, saído do Pará com destino à Bahia, mas que se perde, durante uma tempestade, em uma noite sem fim. A tripulação, composta de marinheiros e de um grupo de passageiros que embarcam contaminados pela gripe espanhola, vai morrendo enquanto o próprio navio se desintegra, corroído pela ferrugem acumulada em suas partes ao longo de muitos anos. Nesse sentido, temos simbolizada, ―[...] através do cargueiro Belona, velho, enferrujado, a própria vida, na viagem integral do Homem através do tempo‖ (LOPES apud BELISLA, 1968, p. 3).

No que se refere à estrutura, a inovação em Belona, latitude noite diz respeito a uma tentativa, empreendida pelo autor, do que alguns estudiosos chamaram de anulação do tempo, e que nós, para evitar a possível interpretação de que algo no romance se dá fora de uma perspectiva temporal, já que a própria noção de memória, por exemplo, se fundamenta no conceito de tempo, preferimos chamar de suspensão do tempo cronológico. Quando a narrativa tem início, o cargueiro Belona II já se encontra perdido na noite, de modo que todas as ações que precedem esse momento da história são apresentadas por meio de flashbacks. Além disso, como em A ostra e o vento, Lopes optou nesse romance pelo uso de um ponto de vista múltiplo para a apresentação do enredo. Assim, cada capítulo é narrado de um ângulo de visão diferente – uma estrela, a ferrugem que deteriora o navio, um espelho, um rato, dentre outros –, motivo pelo qual as ações narradas em um ângulo de visão parecem se repetir em outro, apenas sob nova perspectiva, numa sugestão de estaticidade temporal.

Por aqui não passaram rebanhos, o romance seguinte, tematiza a busca empreendida pelo homem de seu espaço no mundo, já que Emiliano, o protagonista, evade-se do lugar onde sempre viveu, inconformado por de ter de conviver com a maldade de seus semelhantes. Nessa obra, entra em cena o descompasso entre o tempo da existência de três personagens: Emiliano, que vive no presente real da narrativa; Selene, por quem Emiliano se apaixona e a quem ele encontra em uma caverna onde ela viveu há mais de três mil anos; e Sumé, um velho aguadeiro que vive em um tempo distinto do das outras duas personagens. A trama gira

(25)

em torno da convivência de Emiliano com Selene e Sumé e do desencontro entre esses últimos, que, mesmo habitando o mesmo espaço, são impedidos pelo tempo de compartilhar a existência um do outro.

Dias da Silva, em uma breve resenha sobre esse sexto romance de Lopes, aponta para um aspecto muito relevante no que se refere a sua estrutura, que consiste no fato de:

O leitor não distingue o começo, meio ou fim [da obra]. A narrativa poderia ter sido iniciada por uma parte qualquer do meio da obra. Isto porque o romance não está ligado a um esquema. Não há um tempo cronológico, nem sequência de causa e efeitos. Não significa, contudo, que seja uma obra desordenada. Absolutamente. De fato, existe uma unidade que fez com que ―Por Aqui Não Passaram Rebanhos‖ uma obra, uma bonita estória (SILVA, [19--], s/p).

Une essa segunda tríade de romances, composta por A ostra e o vento, Belona, latitude noite e Por aqui não passaram rebanhos, os seguintes aspectos: i. a interiorização dos conflitos norteadores da trama, com o deslocamento das ações narradas do espaço físico para o espaço psicológico e uma exploração profunda da subjetividade das personagens; ii. a ênfase naquilo a que o próprio Lopes denominou de ―o monstro em transição‖, cuja principal característica diz respeito à procura empreendida pelo homem moderno de suas origens e do conhecimento de si mesmo; e iii. a íntima relação entre o tempo e a natureza fantástica que caracteriza essas três obras, comparadas, sobretudo em decorrência de uma mistura entre o real e o imaginário, a obras de autores como Franz Kafka e Jorge Luiz Borges, e apontadas por inúmeros críticos, dentre eles Michael Fody III, como parábolas do tempo.

O traço fantástico está presente também em O passageiro da Nau Catarineta, romance em que mito e realidade se cruzam para compor a teia de mistérios que acercam a história de Luciano Papallemos, reconstituída pelo jornalista Dario a partir de três cadernos encontrados a bordo da Nau Catarineta. O conteúdo desses cadernos, escritos por Luciano e apresentados ao leitor conforme romanceados por Dario, que os reescreve preenchendo algumas de suas lacunas, refere-se a três lapsos temporais distintos da vida do misterioso protagonista, a saber:

O primeiro que viu era o diário de viagem, narrando a travessia da Nau Catarineta, desde sua partida, três meses antes, das margens do Rio Caucaciou, no Golfo do México, costas norte-americanas, até momentos antes de encalhar. [...]

Na primeira folha desse caderno estavam escritas as palavras Nau Catarineta – Decomposição.

No outro, em cuja capa escrevera a palavra Construção, Luciano Papallemos narra fatos ligados a sua origem, em Praia Fortuna, onde aparentemente nascera, mais de quarenta antes, e de onde fora sequestrado após uma noite

(26)

de batalha entre Cristãos e Mouros, no alto do Pico do Gajeiro.

No terceiro caderno, tendo na capa a palavra Esparsos, constavam escritos variados, digressões e confissões em forma de carta, reproduzindo fatos aparentemente reais de sua vida pelo mundo e também em Praia Fortuna, tentando compreender-se e definir a origem de Teresa, dentre outros enigmas que o atormentavam (LOPES, 1982, p. 14-15).

Na narrativa propriamente dita, o conteúdo desses cadernos é disposto de modo intercalado, em uma aparente aleatoriedade, de modo que, mais uma vez, a trama se apresenta de forma caótica em termos de temporalidade. Nesse sentido, o romance acompanha o estilo labiríntico característico dos textos de Lopes, na medida em que nele se instaura, segundo as palavras de Luiz F. Papi, uma ―espécie de fabulação que sepulta o tempo cronológico, retilíneo, nas proporções de passado, e em seu lugar entroniza o tempo descontínuo e muita vez desconexo, mas que ordenado no torvelinho de seu fluxo e refluxo pode constituir-se em mágica matéria de criação em prosa‖ (PAPI, 1983, s/p).

Em O Almirante Negro (Revolta da Chibata - A vingança), Lopes abandona o traço fantástico que marcou suas últimas obras e se volta à estética realista para retratar um dos episódios mais importantes da história da Marinha nacional: a Revolta da Chibata. Nesse romance, Lopes denuncia todo o horror vivenciado pelos marinheiros brasileiros, que, liderados por João Cândido, rebelam-se contra os castigos a que eram submetidos, o excesso de trabalho e a má qualidade da comida e tomam o controle da frota naval de guerra do País, a terceira maior do mundo naquela época, ameaçando devastar a cidade do Rio de Janeiro, capital da República, caso suas exigências não fossem atendidas.

Aqui, o aspecto histórico ganha especial relevo, uma vez que constam na obra vários elementos que situam a narrativa na primeira década do século XX, como a descrição do Rio de Janeiro, sob forte influência da Belle Époque, com menção às ruas da cidade e aos costumes de seus habitantes, além da transcrição de muitos documentos relacionados à revolta, como as mensagens enviadas ao presidente em exercício, o Marechal Deodoro da Fonseca, negociando um acordo entre os marinheiros revoltosos e o Estado, e a carta concedendo-lhes anistia, rasgada depois de suas rendições. Há, ainda, a certa altura do romance, a apresentação de inúmeras manchetes de jornais da época, que noticiavam, favoráveis ora a um ora a outro lado, o andamento da rebelião e os esforços para contê-la.

Chama a atenção, além dessa forte preocupação em representar os contextos cultural, social e político do tempo histórico em que se passa a trama, o modo como estão dispostos os episódios narrados. Contrariando as expectativas, uma vez que se espera de um romance histórico a linearidade dos episódios nele relatadas, Lopes opta novamente pelo desarranjo

(27)

cronológico das ações que compõem essa sua obra, desprezando as relações imediatas de causalidade, o que se pode ver já pelos títulos dos capítulos, compostos pelos locais onde e pelas datas quando se passam os fatos ali narrados: 1 - Praia do Flamengo, Rio de Janeiro - Terça-feira, 15 de abril de 1958; 2 - “Satélite” - Sábado, 24 de dezembro de 1910; 3 - Quartel-General do Exército - Sábado, 24 de dezembro de 1910; 4 - Encouraçado “Aquidabã” - Ilha Grande, Domingo,21 de janeiro de 1906; 5 - Santiago, Chile - Sexta-feira, 18 de setembro de 1910; e assim por diante.

O romance seguinte, Onde repousam os náufragos, conta a história do reboque do navio mercante Jaraguá, há anos encalhado na lama que margeia o Rio Beberibe, em Recife. Durante a operação, comandada pelo capitão-tenente Maurício, a antiga tripulação do navio, mais alguns convidados do seu ex-capitão, Dario, embarcados de forma clandestina, revive lembranças e resgata a história do Jaraguá, o grande protagonista da narrativa. O traço fantástico que permeia a obra de Lopes desde A ostra e o vento também marca Onde repousam os náufragos, uma vez que não se sabe, dentre os que seguem a bordo do navio rumo a seu último destino, quem está vivo ou morto.

Em relação à temporalidade, Lopes recupera nesse romance uma técnica usada em várias de suas obras precedentes, que consiste em iniciar a narrativa por seu clímax. A recorrência do uso dessa técnica de antecipação é comentada pelo próprio autor em seu Guia prático de criação literária, onde ele destaca que

[...] Em Maria de cada porto, o princípio é a explosão do cruzador Bahia; em Cais, saudade em pedra, é o personagem Gerson, o eu-narrador, no auge de seu trauma após o naufrágio de que escapou; em A ostra e o vento, é a chegada de um barco à ilha, cujo farol tinha sido apagado e desaparecidas as três pessoas que ali viviam. Em Belona, latitude noite, o começo é o navio se desintegrando em ferrugem e os tripulantes morrendo pela contaminação geral da epidemia, ou seja, a última noite, ou ―noite escura da alma‖, como citou a professora norte-americana Winnifred H. Osta, ao analisar esse livro na sua tese de doutorado (LOPES, 2001, p. 155).

No caso de Onde repousam os náufragos, o clímax é apresentado já no prólogo, quando Maurício, enquanto aguarda alguns amigos em um bar, após o reboque do Jaraguá, é indagado por inúmeros repórteres acerca do desaparecimento de dois homens da marinha que seguiam a bordo do navio e da morte misteriosa de três pessoas que tiveram seus corpos encontrados próximo ao local onde o velho cargueiro jazia encalhado.

A inovação na técnica do tempo nesse romance consiste, sobretudo, no modo de organização de suas partes integrantes, que seguem a linha cronológica do passar de apenas

(28)

24 horas, de modo que cada capítulo corresponde a uma hora, partindo da primeira, marcada às 23 horas do dia 29 de março de 1997, até a vigésima quarta, no dia 30 de março, às 22 horas. Há, além dessas vinte e quatro partes, um prólogo e um epílogo, ambos intitulados ―Zero hora‖. Apesar dessa linha sequencial que segue o curso das horas, o tempo ziguezagueia dentro dos capítulos, expandindo-se para dar conta das experiências subjetivas das personagens, que, por meio da técnica do flashback, têm seu passado, junto com o do Jaraguá, revelado ao longo da trama.

O penúltimo romance publicado por Lopes, As fêmeas da Ilha da Trindade, retoma, em certa medida, alguns aspectos de A ostra e o vento, uma vez que traz como mote narrativo as vivências, em uma ilha, de uma única mulher, Maristela, em meio a um grupo de homens. Levada pelo marido, o tenente Maurício, para viver na ilha onde ele assumiria o comando da guarnição de marinheiros lá fixada, ela acaba por despertar o instinto sexual desses homens, que antes de sua chegada costumavam se relacionar amorosamente com cabras e ovelhas que infestam o lugar. A descrição zoomorfizada dos marinheiros, que se comportam como bodes e carneiros, sempre a mastigar algo, como se ruminassem, ou fungando forte pelo nariz e pisoteando o chão em momentos de raiva, e da própria Maristela, que a certa altura da trama passa a vaguear pela ilha enrolada em uma pele de ovelha e a desejar um chocalho, como os que adornam os pescoços dos animais mais íntimos dos marinheiros, lembra a estética naturalista que marcou a literatura brasileira do final do século XIX.

No que diz respeito à temporalidade, a narrativa apresenta-se aos moldes de Chão de mínimos amantes, sem grandes inovações técnicas, com as ações apresentadas tanto quanto possível de modo linear. Apesar disso, o tempo participa, como em outras obras do autor, da construção do fantástico, que nessa obra se resume a vozes captados pelo radiotelegrafista Epaminondas em seu aparelho de rádio, de pessoas que viveram em outros tempos:

Outras noites, com o ouvido colado ao aparelho, procurava decifrar outros sons que se tornavam mais nítidos, filtrados das interferências. Vozes que flutuam no espaço, de mulheres perdidas no tempo, bem podiam ser de escravas ou da moça portuguesa que morreu aqui de passagem, ou de mulheres mais antigas que gravaram gritos de amor ou tristeza em navios trilhando estas paragens, ele não sabe por que elas não têm nome, são apenas vozes aflitas a interferirem na estática da atmosfera (LOPES, 2006, p. 45).

Em A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 Apóstolos, Lopes se volta mais uma vez para a história do Brasil e romanceia um dos mais importantes movimentos sociais do século XIX: a Guerra de Canudos. Embora o movimento já tivesse ganhado uma

(29)

versão literária nas palavras de Euclides da Cunha, em Os sertões, Lopes o apresenta sob um novo ângulo, contribuindo, assim, como o fez o colega de ofício carioca, para imortalizar a figura de Antônio Conselheiro e a resistência do povo nordestino contra as adversidades de ordem natural e social que a vida insiste em impor-lhes.

O livro resgata a história do herói nordestino a partir de doze relatos, biográficos e autobiográficos, todos ficcionais e proferidos, cada um deles, por personagens inspiradas em doze companheiros do verdadeiro Antônio Conselheiro, a quem Lopes chamou de ―apóstolos‖. As narrativas, além de remeterem à vida de seus autores, retratam, de forma fragmentada, sob o ângulo de visão dos vencidos, a vida de Conselheiro, além de reconstituírem todo o horror da guerra que vitimou mais de vinte e cinco mil guerrilheiros aliados ao beato. Desse modo, a temporalidade do romance, no que diz respeito à construção de sua trama central, mostra-se caótica, já que as ações relativas à vida de Antônio Conselheiro e ao conflito são expostas de forma descontínua, como se fossem peças de um quebra-cabeça do qual o leitor só tem uma visão geral depois de concluída a leitura da obra.

Como vimos, a preocupação com o tempo permeia toda a produção romanesca de Moacir Costa Lopes, de modo que um estudo dessa categoria narrativa na obra desse escritor mostra-se de fundamental importância. Para tanto, é essencial que nos inteiremos, antes da análise do romance aqui proposta, de como a consciência em relação ao tempo passou a fazer parte da vida humana, e de como a literatura, enquanto campo de representação das experiências humanas, e os estudos literários, enquanto campo científico do saber, valeram-se dessa consciência e a integraram em suas produções de cunho artístico e intelectual.

1.3 DE OLHO NOS PONTEIROS: UM BREVE HISTÓRICO DO TEMPO

O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me fizesse essa pergunta, já não saberei dizê-lo.

(Santo Agostinho)

A convivência com o tempo tornou-se algo tão natural em nossas vidas que pouquíssimas vezes refletimos sobre o modo como com ele nos relacionamos ou mesmo sobre sua existência; e, esquecidos de sua presença, muitas vezes seguimos nossos dias alheios ao fato de que todas as nossas experiências – tanto as passadas quanto as presentes e até as futuras – são perpassadas por ele. Esse alheamento, todavia, não impediu que o tempo, enquanto parte da experiência humana, figurasse como elemento crucial na história da

(30)

evolução das civilizações e do comportamento do próprio homem, interferindo em inúmeros setores de sua vida, como no cultural, social e econômico, por exemplo.

O pesquisador G. J. Whitrow (1993), em seu livro O Tempo na História: Concepções do tempo da pré-história aos nossos dias, remonta aos primórdios da história da humanidade na tentativa de explicar o modo como a noção de tempo passou a integrar a vivência humana. Para ele, o ato de registrar nas paredes das cavernas cenas cotidianas, como rituais de caça, estaria intimamente relacionado ao desejo do homem de repeti-las no futuro e partiria de uma experiência vivenciada em algum momento do passado. Assim, muito antes de conseguir fazer qualquer distinção entre passado, presente e futuro, o homem deve ter tido a consciência de memórias e propósitos, característica fundamental de sua existência.

É difícil precisar, conforme ressaltam historiadores e antropólogos, quando se deu a percepção pelo homem das noções de passado, presente e futuro. O mais provável, apontam alguns, é que ela tenha surgido quando o homem superou a crença de que ele, como os outros animais, vivesse em um contínuo presente e se percebeu como ser transitório, que nasce e que vai morrer. Essa consciência deve tê-lo levado à tentativa de interromper o fluxo do tempo e, assim, prolongar sua própria existência. Nesse sentido, a realização de funerais, praticados há pelo menos 60 mil anos, pode servir para demarcar historicamente esse momento evolutivo tão importante, uma vez que o ato de deixar junto aos corpos armas, ferramentas e comida apontam para o desejo de continuidade mesmo após a morte.

Esse desejo de permanência, longe de abarcar apenas a existência de si mesmo, abrangeu ainda a tentativa, empreendida pelo homem primitivo, de preservar, tanto quanto possível, elementos materiais indispensáveis a sua sobrevivência. Assim foi que, cerca de 10 mil anos atrás, ele abandonou a vida nômade, passando a fixar moradia em um território fixo, e desenvolveu a agricultura, prática que, junto com o domínio do fogo, já há muito realizado, possibilitou-lhe controlar a disponibilidade de alimento.

Ainda sobre esse desejo de preservar no tempo a fugacidade de um mundo onde tudo se quer transitório, Whitrow destaca o importante papel da linguagem, que possibilitou, por meio da escrita, resguardar elementos do campo imaterial das experiências humanas, como a cultura e a própria história. A respeito desse processo, o estudioso enfatiza que

[...] embora a fala seja em si mesma transitória, os símbolos sonoros convencionados da linguagem transcenderam o tempo. No nível da linguagem oral, entretanto, a permanência dependia exclusivamente da memória. Para obter um maior grau de permanência, os símbolos da fala oral tiveram que ser convertidos nos símbolos da fala escrita. Os primeiros registros escritos eram simples representações pictóricas de objetos naturais,

Referências

Documentos relacionados

O antigo guia alimentar (padroniza todas as letras minúsculas em guia alimentar) para a população brasileira [10] traz as seguintes recomendações quanto ao consumo dos grupos

É a resistência ao movimento vertical da base da prótese em direção ao rebordo e, ele atua contra estas forças que são transmitidas em ângulo reto com a superfície

Talvez, o maior desafio de políticas públicas a esses jovens, a essa comunidade, seja pensar uma escola capaz de potencializar e enriquecer as experiências na

1 JUNIOR; ANDRADE; SILVEIRA; BALDISSERA; KORBES; NAVARRO Exercício físico resistido e síndrome metabólica: uma revisão sistemática 2013 2 MENDES; SOUSA; REIS; BARATA

A- Professora [A1] Integrar as tecnologias educacionais nas aulas de Educação Física no ensino médio de uma escola pública contribui com a prática pedagógica da professora,

Coeficiente de partição (n-octanol/água): N.D./N.A. Temperatura de auto-ignição: N.D./N.A. Temperatura de decomposição: N.D./N.A. Propriedades comburentes: N.D./N.A. N.D./N.A.=

O presente artigo se propôs a estabelecer as bases fundamentais do Direito & Literatura e, a partir delas, examinar relevantes aspectos da obra literária “1984” de

Verificar a efetividade da técnica do clareamento dentário caseiro com peróxido de carbamida a 10% através da avaliação da alteração da cor determinada pela comparação com