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3 O TEMPO E O FANTÁSTICO EM A OSTRA E O VENTO

3.4 SAULO: O PRISIONEIRO DO TEMPO

3.4.1 Da criação à eternidade

Conforme já dissemos em outros pontos deste estudo, a solidão se configura como uma das principais temáticas de A ostra e o vento. Consequência do isolamento que o espaço insular por si só impõe, simbolizado na narrativa pelo próprio nome de sua protagonista – ―A ilha se chama Marcela, este mundo encadeado de mar se chama Marcela. Mar-cela!‖ (LOPES, 2000, p. 60), é esse sentimento de solidão que preenche os dias de Marcela e que a leva, já em sua infância, a estimular seu imaginário. Assim, a criação de novos mundos, na maioria das vezes inspirados nas histórias que ela lia – muitas delas repletas de aventuras e avessas à cruel monotonia que caracterizava a vida na ilha –, comumente impregnava as brincadeiras de que a então menina Marcela se servia, como mostra o trecho a seguir:

Um dia Marcela construiu uma cidade e deu-lhe o nome de Continente. As pedras eram animais e búzios eram pessoas, aquelas todas que conhecera nos livros de histórias. Estrelas-do-mar eram rainhas e princesas, cavalos- marinhos eram corcéis e mensageiros, cascos de tartarugas eram castelos e masmorras. Sua cidade tinha uns vinte metros de fronteiras e ficava nos fundos da casa-grande. Todos os dias povoava-a mais com búzios e castelos. Então começou a criar estórias que não estavam nos livros, de estrelas-do- mar raptadas por cavalos-marinhos e encerradas nos cascos de tartaruga, e búzios cavaleiros libertando-as (LOPES, 2000, p. 36).

Essa passagem, além de descrever o universo lúdico que caracterizava as brincadeiras de Marcela, antecipa, mediante a fuga da realidade, o forte desejo de evasão da Ilha dos

Afogados que, no futuro, passará a figurar na vida da personagem como uma quase obsessão. O fato de ser a cidade construída por ela chamada de ―Continente‖ é, nesse contexto, bastante significativo, uma vez que remete ao mundo distante, onde – e isso se percebe pelas próprias histórias que a personagem inventava – a vida extrapola de possibilidades e onde os dias não se limitam à prática das mesmas atividades, como acontece no espaço da ilha.

Na transição da infância para a vida adulta, Marcela abandona as brincadeiras que lhe serviam de passatempo e começa a se aventurar na descoberta de seu próprio corpo. Nesse momento da vida da jovem, o sentimento de solidão se intensifica ainda mais, dado que não há na ilha alguém que possa contemplar seu corpo e satisfazer seus desejos sexuais, conforme se pode ver em ―Fechou os olhos e em pouco seu corpo esquecido era um complemento da areia, olho nenhum para o contemplar, corpo de ninguém, corpo sem corpo, não fossem as pedrinhas beliscando seios e coxas e braços, leves e quentes‖ (LOPES, 2000, p. 66).

É possuída por essa ânsia de alguém que satisfaça seus desejos, e, assim, dê significado à nova verdade que emana de seu corpo, que Marcela cria Saulo:

Leva a mão espalmada à fronte, apura a vista e enxerga, como se emergido do mar, das bandas do continente, o pingo de um barco. [...] As pontas dos dedos começam a recriar mundos além de seu corpo? [...] Ninguém para a contemplar. [...] Cresce o barco [...] Tem mastro e vela e proa e algo nele se move, e cresce [...].

[...] pode distinguir, é um homem [...].

[...] Quem seria? De que longes vem? De que mares e mundos? Parece que nasceu de seus dedos, quando os estendeu para o mar. No entanto ali está, parado, olhando para a ilha. Que poderes de seus dedos para inventarem barco e homem? (LOPES, 2000, p. 44-45).

A cena descrita remonta a um dos trechos do romance em que, sozinha no alto de um morro, livre dos olhos de José e de Daniel, Marcela acaricia seu próprio corpo, impulsionada por uma forte angústia oriunda de sua solidão e de seus desejos insatisfeitos. É nesse contexto que ela vislumbra a aproximação de um barco tripulado por apenas um homem, cuja origem ela desconhece – ―De que longes vem? De que mares e mundos?‖ –, mas que poderia ter nascido de seus dedos, os mesmo dedos com que ela acariciava seios e vagina.

Essa incerteza quanto à origem do estranho marinheiro é lançada por Marcela, logo depois dessa cena, ao plano temporal, como mostra o excerto abaixo transcrito:

O moço continua anônimo, parado em seu gesto, apoiado ao mastro. Por que não corresponde a seu aceno? Terão parado seus olhos ainda na visão de um busto nu de mulher que o vento lhe levou do cimo de um morro? Ou terá parado o tempo de seus olhos e de seus gestos? Ou parado o tempo de seu

corpo e de seus dedos, o tempo da ilha? Mas se as aves se movem, e as ondas possuem tempo, é viva a ilha. Por que o moço continua parado, não responde a seus gestos? Só se não estão integrados no mesmo tempo, estão vivendo um instante em duas idades diferentes. Talvez ele não esteja ali, agora, talvez para ele eu não esteja aqui. Mas como, se estou vendo e ele está parado, olhando para mim? À simples distância do vento? (LOPES, 2000, p. 46-47, grifo nosso).

Nos trechos em destaque, o narrador do romance expressa, mediante o uso do discurso indireto livre, dois inquietantes questionamentos de Marcela relativos ao comportamento do homem do barco – que, sabe-se depois, é Saulo –, ambos no âmbito da temporalidade. Como ele não respondesse a seu aceno, permanecendo parado a olhar em sua direção, ela avulta a possibilidade de que o tempo da ilha tenha parado ou de que eles dois estejam vivendo em tempos diferentes – fatos de que ela própria duvida, uma vez que, no primeiro caso, o tempo da ilha continua passando, e no segundo, o homem parece olhar para ela.

Essas dúvidas, no entanto, fundamentadas, uma na ideia de parada do tempo, e outra na da simultaneidade temporal – a mesma que mais adiante na narrativa será responsável por unir a noite da desangústia de Marcela à noite que a ela se segue, quando Daniel está sozinho na ilha –, mais do que evidenciar a incerteza que acerca a criação de Saulo, aponta para uma tematização do tempo no romance. Nesse caso em específico, a própria personagem, e o leitor com ela, se interroga a respeito do tempo, de seus mistérios, das incertezas que acercam sua natureza, passando refletir sobre sua existência, sobre seu estatuto e sobre sua potencial importância para nossas vidas, dele, conscientemente ou não, tão dependentes.

A criação de Saulo, segundo o que se viu até aqui, se constrói em cima de uma série de incertezas – expressas pela incerteza de se ele vem de outro continente, já que o barco que o transporta surge da linha do horizonte e cresce na medida em que se aproxima da ilha; se veio de outro mundo, se foi criado pelos dedos de Marcela, se existe em um tempo diferente do dela –, de modo a satisfazer uma das principais características do modo fantástico de narrar. A constituição estranha dessa personagem, todavia, não se limita às circunstâncias de seu surgimento, mas perpassa, também, sua constituição estrutural e sua descrição.

Saulo participa do enredo de A ostra e o vento como personagem e como narrador. É ele que, presente na ilha, ―recebe‖ Daniel e os membros da Capitania dos Portos quando esses vêm investigar o apagamento do farol, depois do que passa a conduzir parte considerável da narrativa. Essa atuação de Saulo como narrador se torna curiosa quando constatamos algumas peculiaridades de seu modo de narrar: por participar da diegese como personagem, seu discurso deveria se limitar ao relato de ações e acontecimentos que ele presenciou. Teríamos,

assim, o que Norman Friedman (2002), em seu estudo acerca do ponto de vista na ficção, chamou de ―‗Eu‘ como testemunha‖, ou seja, uma personagem que, narrando os acontecimentos de um ponto periférico, renuncia à onisciência em relação aos demais personagens, comunicando apenas aquilo que, como observador, presenciou ou que poderia descobrir de forma legítima. Nesse sentido, esse tipo de narrador ―não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses, servindo-se também de coisas que viu e ouviu [...]‖ (LEITE, 1985, p. 37-38).

O que verificamos, no entanto, é que Saulo, além de relatar os fatos que observou, é capaz de penetrar na mente das outras personagens e, mais do que devassá-las, controlá-las. Observemos, no trecho abaixo, como se dá tal particularidade:

Restamos nós, Daniel, no roldão das horas e do vento. Tu olhas para o canto do chão, onde o fogo crepita, e nada vês, o caderno de Marcela sobre tuas pernas. Levanta-te! E o caderno caiu. Apanha-o! E o dobras na mão, e do gesto surge uma lembrança: o corpo dela não foi encontrado. Então ela subsiste em algum lugar. O vento sopra em teu rosto arrastando sons de sinos, como um dobre de finados e trazendo do jardim um cheiro de plantas. Sai para o terreiro, Daniel, desce à praia, junta-te aos homens! (LOPES, 2000, p. 83, grifo nosso).

Não é difícil perceber que, nos trechos destacados, a voz imperativa de Saulo dita o modo de agir de Daniel, que obedece aos comandos. Quando Saulo diz ―Levanta-te!‖, uma elipse narrativa se apresenta e, logo em seguida, somos informados de que o caderno caiu do colo de Daniel, o que sugere que ele de fato se levantou. O mesmo se dá em ―Apanha-o! E o dobras na mão‖. Elipses desse tipo – usadas em momentos de tensão narrativa para suscitar dúvidas no leitor – são apontadas por Cesereni (2006) como um dos procedimentos narrativos e retóricos do fantástico. O autor, citando Bessière, refere-se ao uso desse recurso ressaltando que, por meio dele, ―[...] o silêncio da narração nutre a proliferação das perguntas [...]‖ (BESSIÈRE apud CESERANI, 2006, p. 75), de modo a deixar ambíguas determinadas situações, como acontece no caso das ordens dadas por Saulo a Daniel.

Além de ilustrar o controle que Saulo exerce sobre Daniel, o fragmento acima deixa clara a capacidade que o narrador-personagem tem de acessar as lembranças do velho ajudante de José – ―do gesto surge uma lembrança: o corpo dela não foi encontrado‖ –, fato que atesta a capacidade de onisciente desse narrador. Como, porém, isso é possível sendo Saulo um narrador testemunha? O que se poderia tomar como elemento inverossímil na obra, realça, em vez disso, o caráter fantástico de Saulo: a ausência de uma categoria que explique

sua função de narrador, tão avessa aos limites teóricos que caracterizam a tipologia que o abarcaria, constitui-se apenas como mais um indicativo de sua estranheza.

Está também associada à onisciência de Saulo sua capacidade de transitar no tempo e conhecer eventos que antecederam sua criação e mesmo de predizer acontecimentos futuros, situados fora do alcance narrativo do romance. Ilustram essas ocorrências os seguintes excertos da obra, extraídos de seu primeiro e de seu último capítulos, respectivamente:

Pescadores comunicaram no continente terem perdido o rumo por falta da luz do farol que os vinha guiando por muitos anos. Mas não saberão por que foi apagado, quem o apagou [...] (LOPES, 2000, p. 14).

Na linha do horizonte surge um navio que navega para cá. Daqui a pouco homens desembarcarão e [...].

Verão ao pé da torre o corpo de Daniel com as mãos estendidas na direção da luz do farol que permanece acesa, e gaivotas, calmas, grasnam em torno. Mas antes verão na praia, logo que desembarquem, uma pequena ostra que as ondas há pouco jogaram na areia e que as aves assustadas rodeiam mas não conseguirão abrir... (LOPES, 2000, p. 152)

Quando analisamos esses dois trechos, percebemos que Saulo possui um conhecimento privilegiado em relação aos fatos narrados. No primeiro, ele revela saber que ―Pescadores comunicaram no continente terem perdido o rumo por falta da luz do farol‖, mesmo estando longe daquele espaço e sem que nenhuma outra personagem tenha feito qualquer menção a esse fato. No segundo, antecipa a ordem em que se darão os acontecimentos logo após a chegada dos marinheiros que regressam à ilha na manhã seguinte à morte de Daniel: ―desembarcarão‖, ―Verão ao pé da torre o corpo de Daniel com as mãos estendidas na direção da luz do farol‖, ―Mas antes verão na praia [...] uma pequena ostra que as ondas há pouco jogaram na areia‖. Em ambos os casos, as ocorrências descritas, classificadas por Genette (1979), como vimos, de anacronias, atestam o controle ilimitado que Saulo detém das informações concernentes às ações diegéticas e, mais uma vez, reforçam a natureza fantástica que esse misterioso ser adquire dentro do universo narrativo.

Partindo da configuração de narrador para a de personagem, mais restritamente no que diz respeito à caracterização de Saulo enquanto tal, o que se observa é que, como no caso daquela categoria, esta se mostra também pouco clara e, em alguns casos, até contraditória. Isso acontece porque a personagem é descrita, ao longo de todo o romance, por meio de expressões metafóricas que pouco ou nada dizem de concreto de sua configuração. É o que acontece, por exemplo, em ―Saulo é a importância desta ilha‖ (LOPES, 2000, p. 97), ―Eu sou a desangústia de Marcela‖ (LOPES, 2000, p. 98), ―Saulo, que é do tamanho de minha ânsia‖

(LOPES, 2000, p. 118). Nesses três casos, a caracterização de Saulo é feita, por meio de substantivos abstratos – ―importância‖, ―desangústia‖ e ―tamanho‖, nesse último caso, de um desejo –, fato que converge para a criação de uma imagem subjetiva e pouco elucidativa dessa personagem.

Além disso, determinados trechos do romance apontam para uma configuração de Saulo ora corpórea, ora incorpórea. Trechos como ―Então a desnudo, rolam dos ombros as alças da camisola, e ombros e seios e ventre se agitam e fremem ao contato de mim‖ (LOPES, 2000, p. 146, grifo nosso) e ―[...] não posso impedir seus passos, e os meus não marcam a terra‖ (LOPES, 2000, p. 136, grifo nosso), ilustram bem esse fato e, como no caso da descrição por metáforas, lança uma indefinição em torno da identidade de Saulo, de modo a reafirmar a natureza misteriosa dessa personagem.

Não são, porém, apenas os controversos aspectos relativos à criação e à natureza estrutural de Saulo os responsáveis pela estranheza que acerca sua existência. Aliás, o próprio fato de Saulo existir depois da morte de Marcela é por si só desconcertante. É como se Marcela, ao criá-lo, houvesse transferido para ele parte de sua própria existência. Nesses termos, por ser incorpóreo, como alguns trechos do romance o descrevem, Saulo estaria fora dos limites do tempo físico, habitando a eternidade, ou um não-tempo, como prefere dizer Lopes (2001). Assim se explicaria, inclusive, a sugestão de circularidade indicada pelo enredo do romance: preso à eternidade, tudo o que resta a Saulo é reviver os dias de Marcela, de modo que os conceitos de princípio e fim acabam por se perder, sendo os dois as pontas que, em algum momento, inexplicavelmente se unem, formando um círculo infinito de tempo.

São inúmeros os trechos de A ostra e o vento que evidenciam a eternidade Saulo. Em ―Que calor nasce de ti, Marcela! Foi longa também minha espera, mas a eternidade não é divisível, estamos fora do tempo‖ (LOPES, 2000, p. 69), por exemplo, são feitas referências à impossibilidade de divisão – e, portanto, de limites, dentro da eternidade em que vive Saulo, de modo que, para ele, passado, presente e futuro são indistintos –, assim como à capacidade dessa personagem de habitar fora do tempo; e não só sua, mas da própria Marcela, que, por meio dele, acaba também eternizada na ilha, sendo pressentida em tudo: no cheiro de manjericão, no voo dos pássaros, no barulho das águas do córrego que corta a ilha etc.

Já em ―Será longa a noite desta ilha, borrão de terra no infinito do tempo. Ilha dos Afogados, princípio da longa noite ou fim do longo dia? Sem princípio nem fim, ficará gravada na linha do tempo e com ela ficarei‖ (LOPES, 2000, p. 127), a própria ilha, assim como acontece com Saulo e Marcela, é lançada na eternidade, conforme sugerem os segmentos ―borrão de terra no infinito do tempo‖ e ―sem princípio nem fim, ficará gravada na

linha do tempo e com ela ficarei‖. Significativo é também o questionamento representado por ―Ilha dos Afogados, princípio da longa noite ou fim do longo dia?‖, que, sugerindo uma dúvida quanto ao modo como se dá a organização temporal ilha, aponta para o traço confuso e misterioso que caracteriza a temporalidade em todo o romance.

Essa imprecisão é revelada já no primeiro período da narrativa: ―, manhã manhã de mais uma era que finda e reinicia no roldão das horas e do vento, eternidade vazia, indivisível, manhã de muitas eras inuteismente repetidas, cinzenta, mar agitado, neblina dissipando-se, ilha ilha ilha ... ilha dos Afogados!‖ (LOPES, 2000, p. 13, grifo nosso). Nesse segmento, que, por meio de um discurso profundamente poético, ancora temporal e espacialmente as ações que serão narradas a partir de então, chama a atenção a referência duas à palavra ―manhã‖ e a três vezes à palavra ―ilha‖, a qual, unindo claramente os planos da forma e do conteúdo, aponta para a repetição como sendo uma característica não só dos dias na ilha, onde a monotonia se apresenta como característica maior, mas da existência do próprio Saulo.

Não se pode deixar de notar, ainda nesse fragmento inicial de A ostra e o vento, o profundo tom melancólico que marca o discurso narrativo: a eternidade que se impõe como o tempo de Saulo é vazia, e as eras que dentro dela se repetem: se repetem ―inuteismente‖ sem a presença de Marcela. Nesses termos, a eternidade, que a priori poderia ser entendida como uma condição existencial privilegiada – já que simboliza a vitória sobre o tempo –, assume, paradoxalmente, uma conotação negativa, promotora de uma profunda tristeza, como se a impossibilidade de finitude representasse uma prisão imposta pelo tempo à personagem. Será dessa condição melancólica assumida por Saulo mediante sua relação com o tempo e de suas consequências para a construção de sentidos da narrativa que trataremos a seguir.