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2 O TEMPO EM A OSTRA E O VENTO

2.2 DE OLHO NAS ENGRENAGENS: TEMPO, ESTRUTURA E SENTIDO

2.2.2 Duração

Estou lançado na noite, e a minha será mais longa que a tua, mais longa, lon...ga...

A duração, conceito que corresponde à segunda área de decodificação considerada por Genette (1979) ao tratar do tempo da narrativa, diz respeito à relação entre a velocidade temporal da história e a velocidade da leitura do discurso que a materializa17. Assim, uma narrativa pode apresentar traços isocrônicos, quando existe uma harmonia entre aquelas duas velocidades, e anisocrônicos, quando as duas estão em descompasso. Em A ostra e o vento, os aspectos relativos à duração, como os da ordem, têm fundamental importância na construção de sentido da obra, sendo amplamente explorados, principalmente a cena e o sumário.

Ao longo do romance, o que se verifica é uma insistência na construção de uma narrativa isocrônica, pois, além das abundantes cenas dialogadas que integram a obra, – cenas essas em que, pode-se considerar, a velocidade da enunciação, na história, coincide com a velocidade da leitura do material linguístico que a expressa –, parte considerável da trama se constitui de monólogos interiores, técnica narrativa que consiste na representação ―[d]o conteúdo e [d]os processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente inarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em diversos níveis de controle consciente antes de serem formulados para fala deliberada‖ (HUMPHREY, 1976, p. 22).

O fragmento abaixo ilustra um dos trechos do romance constituído basicamente da representação mental de Daniel, logo após seu desembarque na Ilha dos Afogados:

Gritou e sua voz retornou em eco.

Onde? Ela no seu riso, o corpo recendendo a manjericão e a jasmim, a boca concha de coral, que era bonito quando ouvia pronunciar seu nome.

— Mar... ceeé... la...

Esquisito mesmo! Por que não veio ainda nos receber? Será que não viu aproximar-se o navio? [...] Ela, que parecia ter adquirido até a faculdade de sentir a vibração através das ondas? O grito de um mumbebo, o voo de um catraio com suas asas escuras e grandes lhe chamavam a atenção. Por que não veio ter à praia ainda?

— Mar... ceeé...la...

Dá outro passo, outro, a ilha está viva. Faz cinco meses que a abandonou, seguindo para o continente, mas passou todo esse tempo no boteco de Seu Bem esperando que Pepe, o provedor da ilha, regressasse cada mês trazendo alguma notícia. [...] Ela... e ela... diga, Pepe, ela pergunta por mim? Mostra ter saudades de mim? Responda, ela está bem, é feliz? Fale alguma coisa de Marcela, Pepe...

— Mar... ceeé... la... (LOPES, 2000, p. 15-16).

Esse trecho manifesta o estranhamento de Daniel com a ausência de Marcela na praia para recebê-lo, além de descrever fatos relativos ao comportamento da personagem – cuja identificação com o espaço da ilha parecia ter lhe legado ―a faculdade de sentir a vibração

17 A problemática acerca da imprecisão na medição do tempo de leitura, que certamente impacta no estudo da

através das ondas‖ – e de informar alguns detalhes do tempo que o velho auxiliar de José passou no continente. Com exceção da primeira oração e dos chamamentos marcados com travessão, todo esse recorte textual se processa no interior da mente de Daniel, materializando os pensamentos da personagem tal qual foram eles concebidos. Aqui, como no caso das cenas dialogadas, o tempo da história, ou tempo que Daniel leva formulando seus pensamentos, pode ser tomado como igual ao tempo de leitura do discurso que os materializa.

O mesmo procedimento narrativo é usado para materializar os pensamentos de Saulo, e até os de Marcela, de José e de Roberto, dentro das analepses de grande amplitude, que, como vimos, geralmente presentificam a história do crime. Em alguns casos, porém, a representação do material psíquico das personagens não se processa de forma tão organizada como no excerto acima, mas mistura o conteúdo da mente com outros discursos, de modo a compor um verdadeiro labirinto linguístico, como demostra o fragmento abaixo:

Repetiu o aceno. Espere aí, moço, não se afaste, eu já volto. Abotoou a blusa e correu para casa. Estou aqui, pai. Veja aí na cozinha e na despensa a precisão dos próximos três meses. Está me ouvindo, Marcela? Estou, pai.

Você disse que estava precisando será que o moço continua na mesma posição? de talheres e um facão novo. Talvez ele esteja esperando a preamar para desembarcar na praia. O pilão não tem mais jeito. Não sei o que você fez com esse pilão e se o moço avistar Daniel talvez se afaste para rachar, dessa maneira é preciso que Daniel não o veja, nem pai é tão caro um pilão no continente se Daniel descobrir terá que partilhar com ele o moço do barco Pepe tem outros faróis para prover e a gente não pode ficar gastando dinheiro é preciso atrair Daniel, mantê-lo do outro lado da ilha dá raiva jogar dinheiro fora com a compra de um pilão é preciso afastar Daniel, ele não pode ver o moço, ninguém pode vê-lo. Você está fazendo o que aí, Marcela, que não fala nem se mexe? Como, com essa gastura por dentro, sem saber se o moço continua no mesmo lugar, esperando que volte ao morro do Pensador? Precisa de um vestido e suas cuecas já estão rasgando. Chinelos? Um cobertor novo que o frio vem aí. Prefere correr descalça pela ilha. E se ele tiver desembarcado na praia? É preciso voltar ao morro para ver arroz, feijão, farinha, açúcar, trigo, pavios, tinta para repintar a torre (LOPES, 2000, p. 47, grifos nossos).

A sequência narrativa transcrita se dá quando, imediatamente depois da criação de Saulo, Marcela é requerida por José para montar uma lista de produtos que devem ser trazidos do continente para a ilha. O parágrafo se inicia com o discurso do narrador, que descreve o comportamento de Marcela antes de deixar o morro do Pensador (trecho não marcado), depois do que temos expressa uma fala de Marcela em discurso direto sem travessão (todos os trechos em negrito demarcam essa configuração textual), indicado pelo pronome ―eu‖. Em seguida, o discurso volta para o narrador e, novamente, para Marcela. É na continuação do

parágrafo, com o início do diálogo entre José e sua filha, que o discurso assume uma configuração bastante significativa: o discurso direto de José (trechos sublinhados) e os pensamentos de Marcela (trechos em itálico) se misturam no mesmo plano textual, entrecruzando-se de forma muito natural. Em segmentos como ―O pilão não tem mais jeito. Não sei o que você fez com esse pilão e se o moço avistar Daniel talvez se afaste para rachar, dessa maneira é preciso que Daniel não o veja, nem pai é tão caro um pilão no continente‖ e ―E se ele tiver desembarcado na praia? É preciso voltar ao morro para ver arroz, feijão, farinha, açúcar, trigo, pavios, tinta para repintar a torre‖, dada a ausência de qualquer indicação gráfica ou linguística, é apenas pelo contexto que se pode determinar que partes do discurso pertencem a uma e a outra personagem: as falas de José expressam uma preocupação prática, relativa à montagem da lista, enquanto os pensamentos de Marcela permanecem em Saulo, transitando da incerteza de sua permanência no barco que ela avistara à necessidade de escondê-lo de Daniel para não ter de compartilhar com ele a companhia do recém-chegado.

Apesar disso, existem nesse excerto trechos que, notadamente marcados pela técnica do discurso indireto livre (sequências riscadas), não manifestam de forma direta os pensamentos de Marcela. Tanto em ―Precisa de um vestido e suas cuecas já estão rasgando‖ quanto em ―Chinelos? [...] Prefere correr descalça pela ilha‖, as formas verbais ―precisa‖ e ―prefere‖, marcadas com desinência de terceira pessoa, apesar de reportarem pensamentos da personagem, sugerem uma intromissão do narrador. Esse arranjo linguístico, acrescido das outras formas de representação discursiva que integram o parágrafo, tem significativo impacto na construção de sentido do romance, já que transpõem para o plano da forma o desconcerto que, no plano do conteúdo, caracteriza a presença de Saulo para Marcela.

Ainda em relação à citação acima, é importante ressaltar que, embora ela represente a fala direta de José e os pensamentos de Marcela, ambos, em sua maior proporção, livres de qualquer interferência do narrador, não se pode admiti-la totalmente isocrônica, uma vez que, apesar de sua tendência clara para a cena, ela parece abarcar alguns cortes narrativos. É o que sugere, por exemplo, a indagação ―Chinelos?‖, indicativa de que, em algum momento, José citou o item para que Marcela o inserisse na lista, fato não materializado linguisticamente.

Cortes dessa natureza, em que o tempo da história é omitido no discurso, são definidos por Genette (1979) como elipses narrativas e representam um dos movimentos que caracterizam a anisocronia. De acordo com o autor francês, a elipse, assim como o sumário, movimento de que logo trataremos, está relacionada à própria natureza da narrativa, que, não podendo comunicar a totalidade dos fatos que compõem uma história qualquer, expressa apenas parte deles, notadamente os mais relevantes, conforme os julgue seu autor.

Em A ostra e o vento, a ocorrência de elipses narrativas é mais comum nos momentos da narrativa que presentificam o passado da trama. É o que se verifica em trechos como ―Regressam‖ (LOPES, 2000, p. 59) e ―Há três dias não conversa com Daniel‖ (LOPES, 2000, p. 65), que escamoteiam os acontecimentos decorridos no regresso de Marcela e Daniel de uma pescaria, assim como os dos três dias em que a jovem protagonista do romance passou sem conversar com o velho auxiliar de seu pai. Desse modo, o discurso narrativo pode, mesmo mediante a omissão de alguns fatos, recuperar toda a história do crime, que possui uma grande extensão temporal em termos cronológicos, indo da chegada de Marcela à Ilha dos afogados – e mesmo se estendendo a momentos mais distantes no passado, já que são feitas referências à chegada de Daniel à ilha – até à noite do apagamento do farol.

A técnica do sumário narrativo, movimento anisocrônico que, conforme vimos anteriormente, se caracteriza por apresentar de forma resumida, no discurso, eventos da história que abrangem uma larga faixa temporal, também é de uso mais comum nos trechos que reconstituem a história do crime. Uma de suas ocorrências diz respeito ao momento em que Daniel rememora o processo de alfabetização de Marcela:

Lá estão, agora, os dois, sentados no morro do Pensador, para trás alguns anos, ela terá nove para dez anos, o livro, lápis, caderno, começou no bê-a- bá: c-a-s-a, casa, i-l-h-a, ilha. C-o-n-t-i-n-e-n-t-e, continente, n-a-v-i-o, navio. E agora? Escreva sozinha: o continente é todo o mundo de lá. E também: a ilha é um mundo completo. Nove anos, dez, doze, quinze, ainda estão lá sentados, pela manhã e à tarde (LOPES, 2000, p. 22, grifo nosso). O segmento destacado resume alguns anos da infância e da adolescência de Marcela, anos esses que, embora representem uma quantidade de tempo considerável no âmbito da história, são rapidamente reportados pelo discurso narrativo. É importante que se note, todavia, que alguns dos acontecimentos omitidos em função desse sumário, dada a sua importância para a narrativa como um todo, são apresentados em outras partes do romance. Um exemplo disso é a referência à menstruação de Marcela – ―E quando se ajoelhou no jardim para segurar uma dália que nascia, sentiu aquele calor no corpo e correu gritando para anunciar a Daniel e a pai: — Nasceu uma flor! Nasceu uma flor! Nasceu uma flor!‖ (LOPES, 2000, p. 41) –, trecho marcado por um profundo tom de lirismo e bastante relevante em termos de significação, que marca a transição da personagem da infância para a vida adulta.

Há de se destacar também a presença das pausas em A ostra e o vento. Esse movimento anisocrônico, identificado pela interrupção da narrativa – e, portanto, do tempo da história – para que, no plano do discurso, se processem descrições e divagações (GENETTE,

1979), pode ser verificado em alguns momentos da obra, principalmente naqueles em que são apresentados ao leitor aspectos da ambientação da trama, como ocorre já no trecho inicial do romance: ―, manhã manhã de mais uma era que finda e reinicia no roldão das horas e do vento, eternidade vazia, indivisível, manhã de muitas eras inuteismente repetidas, cinzenta, mar agitado, neblina dissipando-se, ilha ilha ilha ... ilha dos Afogados!‖ (LOPES, 2000, p. 13). Aqui, o discurso enuncia a instância temporal em que se ancora a narrativa – é manhã –, apresenta alguns qualificadores para essa manhã, em uma espécie de divagação, e descreve, de modo bastante rápido, as circunstâncias naturais apresentadas pelo espaço onde serão desenvolvidas as ações diegéticas – o mar em volta da ilha está agitado e o dia, cinzento, apesar da neblina que se dissipa. Note-se, todavia, que, ao longo de todo esse conteúdo linguístico, nenhum fato da história propriamente dita é apresentado, de modo que o tempo da história é aí suprimido. É exatamente essa configuração que caracteriza a pausa narrativa.

Existem trechos descritivos na narrativa, porém, que se processam sem que se interrompa o tempo da história, como em ―Derramou água no chão e esfregou a vassoura com um pouco de sabão. O chiado da vassoura no tijolo enchia a casa. A espuma cresceu‖ (LOPES, 2000, p. 63) e em ―Tateou pelo fogão, sentiu o contato da mesa, da prateleira, copos de alumínio caíram, a chaleira em que faz café, os ramos murchos de alecrim que precisam ser substituídos para limpar e perfumar o forno‖ (LOPES, 2000, p. 149), fragmentos que comunicam aspectos relativos à arquitetura – o piso de tijolos – e à decoração – a cozinha dispõe de móveis como fogão, mesa, prateleira, copos de alumínio, chaleira – da casa grande não de forma distanciada, mas segundo ações realizadas por Marcela. Esse tipo de ambientação é classificado por Osman Lins (apud DIMAS, 1987) como dissimulada ou oblíqua, e se caracteriza por apresentar o espaço como se ele ―nascesse dos [...] próprios gestos‖ das personagens (LINS apud DIMAS, 1987, p. 26).

Todos esses recursos formais explorados por Lopes no âmbito da duração, como aconteceu com os da ordem, têm um impacto significativo no plano do conteúdo. As isocronias, por exemplo, particularmente as cenas narrativas de que se constituem os monólogos interiores, as quais, equilibrando o tempo da história com o tempo da narrativa, expressam de forma instantânea o pensamento das personagens, estão intimamente relacionadas à caracterização íntima dos seres que habitam o mundo diegético do romance. É por meio da representação desse material psíquico que são comunicados ao leitor os traumas passados, os desejos reprimidos e as angústias imensuravelmente profundas dos habitantes da Ilha dos Afogados, experiências subjetivas exprimíveis apenas pelo conteúdo pré-verbal que, quer no passado, quer no presente da trama, emana de suas mentes em crise.

No caso das anisocronias, sua importância para o conteúdo pode ser relacionada à tematização da solidão no romance. Essa problemática, vivenciada por Marcela ao longo de parte considerável da trama relativa ao passado da narrativa, é, muitas vezes, expressa por trechos em que o discurso reporta de forma rápida longos espaços de tempo da história, como acontece no caso em que Marcela confessa não conversar com Daniel há três dias. É conveniente destacar que a incomunicabilidade entre as personagens, adensada com a chegada de Saulo à Ilha dos Afogados e com a partida de Daniel para o continente, tem como consequência narrativa um maior investimento na comunicação dos estágios mentais de Marcela, de José e de Roberto, que, passando a viver na ilha como inimigos (LOPES, 2000), se fecham em si mesmos, acompanhados apenas de seus vazios e angústias.