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1.4 O TEMPO NA NARRATIVA

1.4.1 O tempo da história

O tempo da história diz respeito, a priori, a um tempo objetivo, matemático, cronologicamente marcado por elementos linguísticos relacionados à medição temporal em termos de anos, meses, dias e até mesmo horas, ou por dados históricos de natureza variada, como pela alusão a guerras e a desastres ambientais, pela descrição de hábitos característicos de determinada época ou pela menção a invenções e conceitos humanos (SILVA, 1997). Outro traço relativo ao tempo da história é que pode ser muito extenso, abarcando uma vasta dimensão temporal, como em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, e em Os Buddenbrook, de Thomas Mann, narrativas que comunicam a história de várias gerações de uma família; ou relativamente curto, cobrindo um reduzido espaço de tempo, como em Ulisses, de James Joyce, e, dentre os nossos, Os ratos, de Dionélio Machado, obras em que as ações narradas desenvolvem-se em um período de aproximadamente 24 horas.

Por outro lado, o tempo da história pode abarcar um outro tempo, de natureza mais complexa e potencialmente dotado de maior valor semântico do que o tempo cronológico: o tempo psicológico. Notadamente subjetiva, esta modalidade temporal caracteriza-se por sua discordância com a linearidade cronológica e heteromórfica em relação ao tempo do calendário e do relógio, sendo ―entretecida num presente que ora se afunda na memória, muitas vezes involuntária, ora se projecta no futuro, ora pára e se esvazia‖ (SILVA, 1997, p. 747). Nesses termos, o tempo psicológico está intimamente relacionado às experiências

5 A dicotomia fábula-enredo, elaborada pelos formalistas russos, foi retomada por inúmeros teóricos ao longo do

desenvolvimento da ciência literária. Todorov (1979), por exemplo, a retoma sob a acepção de história e discurso, e Genette (1979), sob a de história e narrativa. Tendo em vista que muitos dos conceitos que utilizaremos ao longo deste trabalho referem-se a proposições deste último autor, adotaremos a nomenclatura por ele proposta. Assim, de agora em diante, sempre que falarmos em história ou em tempo da história e em narrativa ou tempo da narrativa, estaremos nos referindo a conceitos que derivam das noções de fábula e de enredo respectivamente.

vivenciais íntimas dos personagens, construídas mediante um redimensionamento da fixidez do tempo matemático, quer por alargamento ou por redução, quer por dissolução.

Em seu Guia prático de criação literária, Lopes, ao tratar dos aspectos teóricos envolvendo a temporalidade em suas obras, refere-se à relação entre o tempo cronológico e o tempo psicológico na ficção, evidenciando o fato de que

Se considerarmos duas pessoas vivendo o mesmo tempo cronológico numa tarefa que lhes exija duas horas de execução, estarão vivendo tempos psicológicos bem diferentes. Fisicamente juntas, podem estar infinitamente separadas, seja por problemas interiores de cada uma delas, seja porque o pensamento de cada uma delas estará vagando em tempos diferentes (LOPES, 2001, p. 142).

A exploração dessa vivência interior das personagens, embora praticada desde o século XIX, ganha contundência, de acordo com Anatol Rosenfeld (1973), no século XX, quando escritores como Kafka, James Joyce, Virginia Woolf e, aqui no Brasil, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, preocupados em representar em suas obras seres em crise, lançaram-se à exploração de suas mentes. Com isso, a preocupação com as ações externas, sequenciais, de que se constitui a trajetória das personagens na diegese, é substituída por outra, de natureza íntima e subjetiva, galgada em um arranjo temporal distorcido, amorfo, medido por um relógio sem ponteiros e fruto da relação humana com um mundo que perdia também sua forma reconhecível, tantas eram as mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais que rapidamente nele se processavam àquela época (MENDILOW, 1972).

A utilização dessa nova configuração temporal impulsionou, no início do século passado, uma série mudanças na estrutura do texto narrativo literário, de modo que, além do tempo, as personagens, o enredo, o espaço e o narrador tiveram seu estatuto modificado e passaram, na chamada narrativa moderna, como ocorreu com o próprio tempo, a perder suas características mais marcantes, sendo progressivamente reinventados. Essas mudanças, para processarem-se, exigiram a adoção de novos procedimentos linguísticos – como o desprezo pela sintaxe rígida na representação dos fluxos da consciência das personagens – e o uso de motivos temáticos até então pouco usuais – como algumas situações triviais do cotidiano – e resultaram em um expressivo ganho para a estética narrativa.

Em decorrência de sua natureza causal, o enredo é certamente o elemento que, em primeira instância, mais se mostra alterado pelo uso na narrativa do tempo psicológico em detrimento do tempo cronológico. Isso se deve ao fato de que, na narrativa tradicional, largamente praticada ao longo dos anos, a organização da história em termos de começo, meio

e fim sempre foi facilmente depreendida pelo leitor, que, sem muito esforço, percebia também bem delimitadas as partes correspondentes à exposição, à complicação, ao clímax e ao desfecho da trama (GANCHO, 1991). Com o deslocamento do centro mimético das experiências externas para as experiências internas das personagens, e o consequente predomínio da vivência subjetiva do tempo, porém, a causalidade dos eventos se dissolveu, de modo que o enredo em termos de ação tende a desaparecer. É o que acontece, por exemplo, em obras como A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, na qual a ação externa se resume à ida da personagem G. H. da cozinha de seu apartamento até o quarto da empregada, onde mata uma barata e, assim, desencadeia todo um fluxo de ações internas que comporão o restante da narrativa.

Existe, por outro lado, um grande número de obras que conciliam a narração de eventos caracterizados pela atuação externa das personagens com a de eventos de natureza interna e subjetiva. Também nesses casos é comum o apagamento das relações de causalidade características do enredo tradicional, de modo que as ações executadas pelas personagens no mundo concreto são apresentadas ao leitor em um arranjo caótico, não linear, para que ele, como se estivesse diante de um quebra-cabeça, vá aos poucos tomando ciência do todo da história. Entra em cena, na realização desse processo, a fundamental figura do narrador.

Coube tradicionalmente ao narrador, enquanto elemento estruturador da narrativa, a função de ―garantir a ordem significativa da obra e do mundo narrado‖ (ROSENFELD, 1996, p. 84) e, assim, assegurar sua verossimilhança. Na narrativa moderna, que se caracteriza, como vimos, por representar seres em crise habitando um mundo onde a única certeza é a incerteza de tudo, a ordenação lógica e objetiva dos fatos que compõem a diegese já não parece mais fazer sentido, e, assim, aquele narrador responsável por organizar as ações que compunham a trama deixa de existir. Assume o seu lugar um outro que, identificando-se como personagem nas narrativas em primeira pessoa, ou assumindo o lugar de um nas narrativas em terceira, deixa-se impregnar pelo mundo interior desses seres.

O resultado dessa fusão é a transposição, para o discurso narrativo, por meio de artifícios linguísticos, da percepção esfacelada que as personagens têm do mundo e de si mesmas. Rosenfeld (1996), ao tratar dessa questão, aponta o fato de que não é só a estrutura da narrativa que se modifica nas obras escritas ao longo século XX,

[...] mas até a da frase que [...] se estende, decompõe e amorfiza ao extremo, confundindo e misturando, como o próprio fluxo da consciência, fragmentos atuais de objetos ou pessoas do presente e agora percebidos com desejos e angústias abarcando o futuro ou ainda experiências vividas há muito tempo e

se impondo talvez com força e realidade maiores do que as percepções ―reais‖ (ROSENFELD, 1996, p. 83).

Essas alterações na estrutura linguística do texto, fruto da busca que se empreendeu na narrativa moderna de representar de forma fidedigna a complexidade da mente humana, caracterizam a técnica do monólogo interior. Largamente utilizado nas narrativas psicológicas modernas, o monólogo interior se desenrola no interior das personagens e não sofre qualquer interferência do narrador, materializando-se textualmente

[...] sob uma forma desordenada e até caótica – sintaxe extremamente frouxa, pontuação escassa ou nula, grande liberdade, sob todos os pontos de vista, no uso do léxico, etc. – [...] e fluindo à medida que as ideias e as imagens, ora insólitas ora triviais, ora incongruentes ora verossímeis, vão aparecendo, se vão atraindo ou repelindo, na consciência da personagem (SILVA, 1997, p. 749-750).

Nesses termos, a quase totalidade das informações que possibilitam esboçar um retrato da personagem moderna passa a pulverizar-se ao longo de toda a obra através de lampejos de uma experiência psíquica tão íntima e linguisticamente tão caótica que, em alguns casos, beira o ininteligível – é o que acontece, por exemplo, com Molly Bloom em seu monólogo apresentado no último capítulo de Ulisses. Assim, o predomínio na narrativa moderna do tempo psicológico, também chamado por Virginia Woolf de tempo da mente, acabou por modificar também o estatuto das personagens, que deixaram de ser reconhecidas por seus traços externos e passaram a figurar como reflexo de suas mentes conturbadas.

Ora, se na narrativa tradicional os seres que habitavam o mundo diegético eram caracterizados mediante a apresentação de traços físicos e psicológicos bem delimitados (ROSENFELD, 1996), nas narrativas do século XX a clareza desses traços desaparece, uma vez que os personagens modernos normalmente têm seus contornos físicos apagados ou pouquíssimos detalhados e são, além disso, extremamente contraditórios em sua caracterização psicológica (ZÉRRAFA, 2010). Essa nova configuração evidencia a tentativa empreendida pelos escritores modernos de aproximar, tanto quanto possível, a complexidade desses seres ficcionais da das pessoas que habitam o mundo real.

Por fim, a exploração subjetiva do tempo no âmbito da história alterou também a configuração do espaço narrativo. Durante uma longa tradição literária, o espaço serviu como mero pano de fundo da ação das personagens, sendo descrito de forma precisa pelo narrador, que ―pintava‖ o mundo ficcional de forma objetiva e realista. Na narrativa moderna, o mundo deixa de ser descrito e passa a ser pressentido pelos seres que o habitam, e, com isso, a

realidade espacial deixa de ser absoluta e, como o tempo, torna-se relativa, carregada de valores subjetivos (ROSENFELD, 1996). Nessa nova configuração, o espaço passa por um processo de desrealização, sendo muitas vezes descrito de forma onírica, e se apresenta impregnado por uma carga metafórica e simbólica antes pouco exploradas.