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1.4 O TEMPO NA NARRATIVA

1.4.2 O tempo da narrativa

O tempo da narrativa, diferentemente do tempo da história, de cujas características e desdobramentos tratamos até aqui, é de difícil medição e não se resume, como propuseram os formalistas russos no início do século passado, ao tempo gasto pelo leitor na leitura da obra (TOMACHEVSKI, 2013), uma vez que ―A velocidade da leitura modifica-se de leitor para leitor, e nem sequer é constante no mesmo leitor [...]‖ (SILVA, 1997, p. 750). Atualmente entendido como a representação do tempo da história no discurso, o tempo da narrativa está sujeito à linearidade da própria linguagem, que se processa em termos de uma sucessão de sons na construção das palavras, de palavras na construção das frases e orações, destas últimas na construção dos parágrafos, e assim por diante.

De acordo com Gérard Genette (1979), o estudo do tempo da narrativa deve ser feito mediante sua relação com o tempo da história e compreende três áreas de codificação cuja articulação confere à narrativa a peculiaridade temporal que a caracteriza, a saber: a ordem, ou a direção do tempo da história no discurso; a duração, ou a proporção do tempo da história no discurso; e a frequência, ou a projeção do tempo da história no discurso.

Assumindo a existência apenas hipotética de um estado de perfeita harmonia entre o desenvolvimento cronológico da diegese e a sucessão, no discurso, dos acontecimentos diegéticos, Genette desenvolve o conceito de anacronia para se referir às ―diferentes formas de discordância entre a ordem da história e a da narrativa‖ (GENETTE, 1979, p. 34). Anacronias são divididas por Genette em prolepse, ou ―toda a manobra narrativa consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento ulterior‖ (GENETTE, 1979, p. 38), e analepse, ou ―toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em que se está‖ (GENETTE, 1979, p. 38). As narrativas épicas de Homero, iniciadas in medias res, ou seja, pela antecipação, no discurso, de eventos adiantados da história, exemplificam bem a técnica da prolepse. Já a analepse, de uso muito mais frequente do que a prolepse (SILVA, 1997), corresponde ao que no cinema é chamado de flashback, e está normalmente relacionada à rememoração.

Genette afirma possuir o estudo da duração, em comparação com o da ordem e da frequência, uma maior complexidade, uma vez que ―por nada se pode medir a duração de uma narrativa‖ (GENETTE, 1979, p. 85-86) – a não ser pelo tempo despendido em sua leitura, que, como vimos, é de natureza altamente subjetiva. Apesar disso, o autor francês considera a existência de uma possível perfeito equilíbrio entre a duração do tempo transcorrido na história, medido em anos, meses, dias, horas, minutos e segundos, e o tempo transcorrido no discurso narrativo, medido em linhas e em páginas. Essa relação de isocronia se daria nas cenas dialogadas. Genette adverte, contudo, que essa igualdade, em termos práticos, inexiste, devendo ser admitida apenas para fins de estudo, pois

[...] tudo o que se pode afirmar de um tal segmento narrativo (ou dramático) é que reporta tudo o que foi dito, real ou ficcionalmente, sem lhe acrescentar nada; mas não restitui a velocidade a que essas palavras foram pronunciadas, nem os eventuais tempos mortos da conversação (GENETTE, 1979, p. 86).

Desse modo, haveria no discurso narrativo o predomínio do que Genette chamou de anisocronias, que consistem em qualquer alteração, no plano da narrativa, da duração da história, medida, como no caso da isocronia, em função do tempo da leitura. Nesses termos, existem quatro movimentos narrativos segundo os quais a anisocronia se configura:

a) a pausa, que se refere aos casos em que o tempo da narrativa é infinitamente maior do que o tempo da história – que pode, inclusive, ser tomado como inexistente –, ou seja, quando o narrador se afasta da narração da história e se dedica à apresentação de descrições e de digressões narrativas6;

b) o sumário, que ocorre quando o tempo da história é maior do que o tempo da narrativa, ou, em outras palavras, quando o narrador apresenta de forma resumida, no discurso, eventos que, na história, cobrem uma larga faixa temporal;

c) a elipse, que se verifica quando o tempo da história é infinitamente maior do que o tempo da narrativa – podendo este, como o tempo da história na pausa, ser tomado como inexistente –, e se caracteriza pela supressão – quer ela explícita, como em ―alguns anos depois‖, quer implícita, quando pode ser depreendida apenas se levado em conta o todo da trama – no discurso, de eventos integrantes da história;

d) a extensão, que se processa sempre que o tempo da história for menor do que o tempo da narrativa, ou seja, quando se quer apresentar de forma muito detalhada, no discurso, quaisquer eventos que, na história se processam de forma muito rápida.

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Por fim, tratemos da frequência, que diz respeito à relação que se processa entre o número de eventos da história e o número de vezes que esses eventos são proferidos na narrativa, e que está, desse modo, relacionada ao realce de determinadas ações que o narrador pode, por meio da repetição, porventura imprimir no discurso. Assim, de acordo com Genette (1979), em uma narrativa, seja ela qual for, pode-se contar uma vez o que aconteceu uma vez, ou n vezes7 o que aconteceu n vezes, casos que caracterizam a chamada narrativa singulativa; de modo semelhante, pode-se contar n vezes o que se passou apenas uma vez e uma vez o que se passou n vezes, casos que caracterizam as narrativas repetitiva e iterativa, respectivamente. Todos os apontamentos de natureza teórica feitos até aqui, tanto os referentes ao tempo da história e ao tempo da narrativa quantos os referentes à relação entre esses dois planos temporais, estão associados à estrutura do texto narrativo. É necessário destacar, todavia, que, embora importante, um estudo que se esgote na mera descrição formal desses se mostra limitado em sua realização. É preciso que, além de descrever a forma, se busque compreender os efeitos de sentido que dela se constroem, bem como relacioná-la ao conteúdo narrativo, de modo a harmonizar esses dois planos de expressão. É a essa tarefa que nos dedicaremos ao longo dos outros dois capítulos que integram este trabalho.

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O termo n vezes refere aqui ao sentido de enésimo (adj.), ou seja, o que aconteceu ou foi repetido muitas vezes ou um número indeterminado de vezes.