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2 O TEMPO EM A OSTRA E O VENTO

2.2 DE OLHO NAS ENGRENAGENS: TEMPO, ESTRUTURA E SENTIDO

2.2.3 Frequência

Daniel... Daniel... sim, Daniel, ela está aqui... ali... repetindo os mesmos passos, o mesmo riso, cada gesto. Não escuta? Repare, Daniel! Marcela é toda a ilha!

(Moacir Costa Lopes)

A frequência corresponde, como a ordem temporal e a duração, a um dos níveis de associação entre o tempo da história e o tempo da narrativa. O que entra em jogo, nesse caso, é a relação quantitativa expressa pelo número de eventos da história e pelo número de vezes que eles são referidos no discurso. Essa relação se processa, de acordo com Genette (1979), mediante a ocorrência de três movimentos narrativos básicos: o singulativo, o repetitivo e o iterativo, todos vinculados à disposição ―manifestada pelo narrador para realçar a repetição de certas ações, desvanecer esse caráter repetitivo, cingir-se à singularidade de ocorrência de acontecimentos ou evocar anaforicamente eventos singulares‖ (REIS; LOPES, 1988, p. 258).

O singulativo é, de acordo com o estudioso francês, a mais comum dentre as três formas de expressão da frequência e abarca dois tipos de ocorrências: contar uma vez aquilo que se passou uma vez e contar n vezes aquilo que se passou n vezes. Nesse sentido, o singulativo define-se ―[...] não pelo número de ocorrências de um lado e outro, mas pela igualdade de seu número‖ (GENETTE, 1979, p. 115) e se concentra na representação de eventos singulares rapidamente esgotados assim como na de eventos que, por sua recorrência, tanto na história quanto no discurso, são, por algum motivo, evidenciados.

Essas duas modalidades de singulativo são amplamente exploradas em A ostra e o vento. No primeiro caso – relata-se uma vez o que aconteceu uma vez –, a ocorrência se dá nos trechos que descrevem as ações executadas pelas personagens na diegese, como se vê em

―Aproximou-se do marfim-vegetal, viu ainda a meia distância umas folhas de papel abanando ao vento. Baixou os olhos [...] arrastou o corpo mais que andando, abaixou-se e apanhou‖ (LOPES, 2000, p. 19), por exemplo. Aqui, as formas verbais destacadas, todas marcadas desinencialmente no aspecto perfeito, comunicam ocorrências singulares, que, depois de processadas, não tenderão a se repetir novamente na trama.

No segundo caso – relata-se várias vezes o que aconteceu várias vezes –, concentram- se, sobretudo, as ocorrências relacionadas à caracterização da monotonia que marca o cotidiano na Ilha dos Afogados. Assim, inúmeras vezes ao longo da narrativa, são feitas referências aos gritos dos mumbebos18, aos ramos secos de beldroegas que deslizam pelo chão19 e ao barulho de sinos que o vento provoca em contado as rochas20, por exemplo. Também a repetição lexical, que se verifica em trechos como ―[...] ilha ilha ilha... ilha dos Afogados‖ (LOPES, 2000, p. 13), ―Mar e mar, apenas mar e pedras e aves e vento‖ (LOPES, 2000, p. 20) e ―Apenas mar. Foi aos picos, mar, mar, mar‖ (LOPES, 2000, p. 48), contribui para a instauração de uma atmosfera de monotonia pela evocação da mesma paisagem.

Essa mesmice que se impõe sobre a vida na ilha é sinalizada ainda pela ênfase na repetição das mesmas tarefas executadas pelas personagens ao longo dos dias. Nesse caso, o uso da frequência iterativa – aquela em se conta uma vez o que se passou n vezes – tem papel fundamental. Abaixo, temos transcrito um trecho que exemplifica essa ocorrência:

José nunca relaxava o serviço. Das seis às onze da manhã limpando o aparelho de luz, as lâmpadas de serviço, esfregando pacientemente a escova para retirar os resíduos de mecha carbonizada, desobstruindo a passagem do ar. Meia hora para limpar o vidro da lanterna, mais meia examinando os anéis catadiótricos para retirar manchas de óleo. Era exagerado até para cobrir a câmara de luz, colocar a capa no aparelho. Não permitia que gaivotas pousassem na torre. Quando uma nuvem mais escura pairava, logo

18 ―Mumbebos pescam desde a madrugada e agora, pousados no coral, abrem as asas e gritam anunciando as

horas que não sabem‖ (LOPES, 2000, p. 13), ―Mumbebos gritam mais uma vez anunciando horas que não sabem, relógios da ilha‖ (LOPES, 2000, p. 16), ―É manhã, os mumbebos acabaram de gritar, dez horas‖ (LOPES, 2000, p. 32), ―E pai podia arranjar um relógio. Preciso não é, que sabe a hora de cor pela sombra da torre e pelos gritos dos mumbebos‖ (LOPES, 2000, p. 47-48), ―Gaivotas grasnaram na torre, gritaram mumbebos anunciando horas, algumas, da tarde‖ (LOPES, 2000, p. 63), dentre outros.

19 ―[...] e sopra ramos secos de beldroegas que rolam planalto abaixo [...]‖ (LOPES, 2000, p. 13), ―Ramos secos

de beldroegas rolam a seus pés‖ (LOPES, 2000, p. 17), ―Volta-se, acariciando seu caderno sobre as pernas, a ilha está deserta, o vento soprando a copa das árvores e ramos secos de beldroegas‖ (LOPES, 2000, p. 42), ―Rolam ilha abaixo ramos secos de beldroegas‖ (LOPES, 2000, p. 152), dentre outros.

20

―O vento é o mesmo, [...] como se nascesse dos picos, de dentro das rochas de fonólito e, espremendo-se, badalasse sinos na pulsação da ilha‖ (LOPES, 2000, p. 13), ―Até o vento parece soar diferente nos picos, badalando sinos como um dobre de finados‖ (LOPES, 2000, p. 16), ―O vento tange em seus ouvidos o toque constante de sinos‖ (LOPES, 2000, p. 25), ―O vento toca sinos, sempre, sempre, sem parar nunca‖ (LOPES, 2000, p. 73), ―É forte o vento, batidas de sinos vindas dos picos enchem a cabana [...]‖ (LOPES, 2000, p. 78), ―Sinos, sinos, o toque permanente do vento que não consegue arrastar a neblina para longe, ou dissipá-la‖ (LOPES, 2000, p. 93), dentre outros.

pensava em temporal e subia para examinar a buzina de cerração, ligava-a por meia hora. Em temporal mesmo não se afastava da torre, espantando as gaivotas que ameaçavam chocar-se contra o vidro, cegas pela luz. Durante nove anos seguidos (LOPES, 2000, p. 18, grifo nosso).

O excerto citado corresponde à representação de um dos pensamentos de Daniel e se refere à rotina de José no que compete a seus cuidados com a manutenção do farol da ilha. Já na primeira oração – ―José nunca relaxava o serviço‖ –, a forma verbal ―relaxava‖, modificada pelo advérbio ―nunca‖, revela uma preocupação rotineira, que se prolongou ―Durante nove anos seguidos‖, o tempo que José esteve na ilha. Esse cuidado diário toma ares de monotonia quando levamos em conta as marcações temporais presentes no fragmento: ―Das seis às onze horas limpando [...] esfregando pacientemente [...] desobstruindo‖, ―Meia hora para limpar o vidro da lanterna, mais meia examinando os anéis catadióptricos‖. Mesmo os eventos não rotineiros, mas que vez por outra se repetiam, como as tempestades, ditavam um comportamento marcado pela repetição, conforme indicam as formas verbais destacadas no fragmento, todas no imperfeito – aspecto que por remete a ações inacabadas. A preocupação excessiva indicada nesses trechos, embora aponte o esmero da personagem para com seu trabalho, revela, também, a falta de qualquer novidade na ilha, de modo que o tempo era gasto geralmente pelo alongamento das tarefas diárias.

Consequência imediata dessa ausência de variação que caracteriza o cotidiano da ilha – também marcante na vida Marcela, de Daniel e, depois de sua partida, de Roberto, os quais, como José, esticam as horas de seus dias na realização dos serviços domésticos, no caso dela, e nos cuidados com a ilha (corte de lenha, plantio do solo, restauração do trapiche e de outras construções), no caso deles –, a introspecção figura na narrativa como tábua de salvação para a mesmice que marca a vida das personagens, uma vez que, se a exterioridade transborda das mesmas ocorrências, é na interioridade que a existência ganha dinamismo e sentido.

É preciso que se note, contudo, que o preço pago por essa existência concentrada em si mesmo é muito alto, sendo compartilhado por todos os habitantes da ilha, os quais, isolando- se uns dos outros, acabam por enlouquecer e têm, em consequência disso, suas mortes decretadas ao fim da trama, com exceção de Saulo. Essa relação entre monotonia, loucura e morte é, inclusive, referido outras vezes na trama, quando Daniel e os membros da Capitania dos Portos, depois de desembarcarem na ilha e de constatarem o desaparecimento de seus habitantes, rememoram fatos que, passados também em ilhas, revelam o estrago que a solidão nesses espaços pode desencadear na vida dos que a vivem:

Lembro aquele outro farol onde estivemos outro dia. Se recorda, Sérgio? Aquele em que a mulher do faroleiro já nem suportava olhar para o marido, até já contara todos os fios de sua barba, e ele contara todos os sinais do corpo dela, aí, pra novidade, ela entornou as garrafas de acetileno. E naquela outra ilha em que o marido, sozinho com a mulher, começou a ciumar dela? Incendiou a ilha para matar até as cobras... (LOPES, 2000, p. 24).

A frequência, em seu movimento repetitivo, aquele em que se contam n vezes o que se passou apenas uma vez, cobre um dos fatos mais importantes internamente na trama: o momento que marca o início da puberdade de Marcela, associado por ela ao desabrochar de uma flor. Embora já tenhamos citado um dos trechos que presentificam esse momento, usaremos do pretexto de que aqui tratamos da repetição para mais uma vez fazermos referência a ele – ―E quando se ajoelhou no jardim para segurar uma dália que nascia, sentiu aquele calor no corpo e correu gritando para anunciar a Daniel e a pai: — Nasceu uma flor! Nasceu uma flor! Nasceu uma flor!‖ (LOPES, 2000, p. 41).

Esse mesmo fato já havia sido representado anteriormente na trama, de modo mais detalhado, conforme ilustra o fragmento abaixo transcrito:

— Que tem você, Marcela?

— Vim correndo porque descobri agorinha mesmo que existo. Descobri também que o vento é vento, as aves, aves, que o mar tem ondas e as flores têm cheiro.

— Ora, Marcela! Por que só hoje fez essa descoberta? — Porque hoje nasceu uma flor.

— Que tolice, menina!

José parou também de trabalhar para ralhar com ela. Deixasse de besteiras. Ela insiste, aborrecida, e só então Daniel acorda com a verdade de Marcela. Está velho mesmo, nem notou que de seu corpo surge um corpo. Ela acabou gritando:

— Nasceu uma flor! Nasceu uma flor! Será que ninguém sente a importância de nascer uma flor? (LOPES, 2000, p. 21).

Posteriormente, a mesma ocorrência aparece relatada no diário íntimo de Marcela:

É quinta-feira, 22 de novembro. Pai e Daniel estão na praia ajeitando o trapiche. A ilha inteira recende a manjericão e a rosas e jasmim. [...] Banhei-me na fonte, fiz pão que estava gostoso com o aroma de ramos de alecrim. [...] Depois fui regar as flores e demorei-me muito observando uma dália que se abria. A dália, eu e a ilha parecíamos estar gerando beleza. Corri para contar a Daniel e a pai mas eles não entenderam, fizeram pouco de mim (LOPES, 2000, p. 49-50).

Essas três sequências narrativas reportam notadamente ao mesmo fato, apresentado ao leitor sob três perspectivas distintas: no primeiro caso, o desabrochar da flor, e da sexualidade

de Marcela, é apresentada por um narrador em terceira pessoa sob o campo de visão dessa personagem; no segundo caso, o foco narrativo permanece em terceira pessoa, mas a perspectiva adotada é a de Daniel; no terceiro e último caso, a ocorrência e apresentada por Marcela em primeira pessoa, o que aproxima do leitor o fato narrado. Nesse caso, é notório o modo como uma narrativa complementa a outra, de modo a detalhar a cena, que, decomposta em três momentos narrativos distintos, é reiterada em diferentes ocasiões com o propósito de reafirmar a importância da sexualidade como tema no romance.

É depois desse acontecimento que inúmeras mudanças começam a se processar na vida de Marcela, que abandona as brincadeiras da infância e passa e se aventurar na descoberta de si mesma, conforme indicado em ―[...] já não brinca com bonecas, seus dedos acariciam os pequeninos seios e, subitamente, descobre seu corpo‖ (LOPES, 2000, p. 44). São essas mudanças, responsáveis por fazerem a personagem enxergar de forma diferente não só a si mesma, mas também o próprio espaço – ―[...] contemplou sua sombra estendida na laje, descobriu que possuía um corpo e havia nele uma verdade. A ilha tomava outra dimensão. O vento, o mar, as aves, os sons, as cores, o odor de jasmim e rosas, tudo começava a possuir uma verdade própria [...]‖ (LOPES, 2000, p. 136) –, que a levam a tomar consciência da solidão que acerca seus dias na ilha, fato cuja consequência culmina na criação de Saulo e na tragédia desencadeada pela sua estranha presença naquele espaço.

Ainda no âmbito da frequência, é preciso que se note, existe um ponto que deve ser considerado: as várias vezes em que um cheiro de manjericão, marca da presença de Marcela, é enunciado ao longo da trama. Pertencente ao rol formal das ocorrências singulativas – já que reporta a eventos ocorridos e narrados n vezes –, a captação desse cheiro, geralmente feita por Daniel, é um dos principais elementos que servem de elo entre o presente e o passado, desencadeando as rememorações de Daniel sempre que essa personagem, ao longo do dia de buscas, o sente. O que mais chama a atenção em relação a isso é o fato de que, embora se possa considerar que, muitas vezes, o cheiro de manjericão sentido pelo velho auxiliar de José é apenas um reflexo de sua saudade de Marcela, sendo, assim, fruto de sua imaginação, sua recorrência, no presente, sugere a presença física da personagem na ilha. Essa pretensa presença, juntamente com a de Saulo, desconcertante em virtude de sua permanência no espaço diegético mesmo após a morte daquela que o criou, conferem à narrativa uma atmosfera sobrenatural, a qual nos encaminha, em decorrência da ambiguidade que a acerca, para o campo da ficção fantástica, assunto do qual trataremos a partir de agora.