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3 O TEMPO E O FANTÁSTICO EM A OSTRA E O VENTO

3.2 O SOBRENATURAL EM A OSTRA E O VENTO

3.2.1 As ilhas misteriosas

Os ambientes insulares foram amplamente abordados por Lopes em suas obras. Citados em praticamente todas, servem como espaço principal em dois romances, A ostra e o vento e As fêmeas da Ilha da Trindade, e em um conto, O farol dos condenados, este último publicado na coletânea O navio morto e outras tentações do mar (1995). Nas três narrativas, o autor foge da representação paradisíaca que costumeiramente é associada às ilhas e retrata ambientes áridos, onde as condições naturais se mostram desfavoráveis à habitação humana, de modo que mantimentos e até mesmo água potável precisam ser importados do continente.

Em O farol dos condenados, a dificuldade enfrentada por uma família para sobreviver em uma ilha da costa potiguar, o Atol das Rocas, serve como motivo para o enredo do conto. A embarcação que levava água e comida para o faroleiro Pedro e seus familiares explode e seus tripulantes ficam à deriva durante dias, aguardando o socorro ou a morte. Enquanto isso, os ilhéus, sem água e sem comida, agonizam, enlouquecem e morrem um a um, de fome ou de desidratação. A narrativa, construída com extremo realismo, retrata ainda, por meio do desejo de fuga que acomete os jovens filhos de Pedro, a solidão enfrentada por aqueles que vivem em ilhas. Esse tema, presente também em A ostra e o vento, sempre impressionou Lopes, que revelou, em uma das últimas entrevistas que concedeu, seu fascínio pela vida solitária levada por aqueles que dedicavam seus dias a inspecionar faróis.

Os mesmos temas – a condição inóspita do ambiente e o desejo de fuga como meio de escape da solidão –, abordados também de forma realista, aparecem em As fêmeas da Ilha da Trindade. Nessa obra, todavia, diferentemente do que acontece no conto, o aspecto sobrenatural é referido já na caracterização do espaço insular, como se vê no excerto abaixo:

[...] Depreendi estarmos próximos a Trindade, cujos mares em volta eram paraíso de fauna, tartarugas gigantes que ali iam desovar, tubarões, arraias, moréias, cações, badejos, barracudas, xeréus, garoupas, eternos famintos, variedades de aves, caranguejos e aratus, lendas contavam até de monstros marinhos habitando grutas e cavernas e túneis submersos, capazes de arrastar homens e embarcações para as profundezas, essas histórias de marinheiros que o grego Homero andou escutando e foi na conversa deles para codificar sua mitologia (LOPES, 2006, p. 9-10, grifo nosso).

O trecho destacado se refere ao mito grego de Caríbdis, monstro-fêmea que, como castigo por ter devorado animais que não lhe pertenciam, foi lançada ao mar por Zeus e passou, a partir de então, a atrair os navios que se aproximavam de sua morada para afundá- los e devorar seus tripulantes (SCHMIDT, 1985). Homero, no canto XII da Odisseia (2011), alude a esse terrível monstro ao relatar o episódio em que Odisseu atravessa o estreito de Messina, rumo à ilha de Hélio. Na ocasião, a embarcação onde está o herói, além de toda a frota que a acompanha, é arrastada para a gruta onde Caríbdis se esconde. Para escapar da morte que o aguarda, Odisseu se agarra a uma planta à entrada da gruta e, em seguida, ao mastro de uma embarcação naufragada ali perto, depois do que dá prosseguimento a sua viagem.

Além da referência ao mito do monstro marinho, As fêmeas da Ilha da Trindade aborda também os lendários tesouros enterrados por piratas em ilhas remotas, muitos dos quais eram protegidos por poderosas maldições. Essa lenda já havia sido citada por Lopes em Maria de cada porto. Nesse romance, o protagonista, Delmiro, em uma de suas idas até Trindade, ao avistar a ilha, relembra as histórias que ouviu sobre o lugar:

[...] Voltei o binóculo para a gruta, a respeito da qual corriam tantas histórias. Estaria lá o tesouro tão falado? Mistério ou conversa fiada. Os que ousaram penetrar em seu interior desapareceram, como o sargento de poucos dias atrás. Teria mesmo ido procurar vestígios de tesouro? Pobre sargento, deixou um maço de cigarro na entrada e desapareceu no poço escuro, nem tesouro nem sargento, nem visagem dos outros que já ali se desintegraram. Tolices, lendas! Dizem existir uma planta desta ilha, na Inglaterra, na Rússia e em Tracunhaém ou não sei onde, determinando a rota seguida pelos piratas, o ponto em que enterraram o tesouro. Ou não foram piratas? Ou não era tesouro? Essa gente ainda vive na época de capa-e-espada. Quantas

comissões de navios já não saíram do Rio para escavar terras na ilha Grande, em busca de tesouro? Ora! [...] (LOPES, 2002, p. 66).

A lenda do Tesouro da Trindade, referida por Lopes em algumas de suas obras, alimentou a imaginação de inúmeros pesquisadores e aventureiros mesmo fora da ficção. Com a publicação, em 1889, do livro The Cruise of the Alerte, do explorador inglês Edward Frederick Knight, a história do tesouro escondido na ilha brasileira se espalhou, sendo noticiada em inúmeros jornais nacionais de prestígio, como nos Gazeta de Notícia23 e A Noite24, do Rio de Janeiro, e no A Federação25, do Rio Grande do Sul. Segundo relatado, o tesouro referia-se a uma grande fortuna, em ouro e pedras preciosas, roubada da Catedral de Lima durante a guerra pela independência do Peru, em 1821. Toda essa história, incluindo os detalhes acerca de como o tesouro foi enterrado por Zulmiro, pirata que teria matado seus companheiros e ajudantes para ocultar o paradeiro da riqueza roubada, é reconstituída e explorada com maestria por Lopes em seu penúltimo romance.

A atmosfera sobrenatural em As fêmeas da Ilha da Trindade se constrói ainda, além de pelos aspectos mítico e lendário, em virtude da estranha captação, feita por Epaminondas, o radiotelegrafista da ilha, de vozes que, emitidas em épocas desconhecidas, teriam se eternizado no espaço. O marinheiro, impressionado com os sons captados, e mesmo sendo taxado de louco pelos companheiros, passa a dedicar-se à tarefa de desvendar sua origem. Torna-se tal a fixação da personagem pela estranha ocorrência que ele passa a tentar capturar enunciados históricos importantes, conforme relata o narrador:

Seu empenho maior era por captar vozes, preces, discursos, sermões. Gritos de guerra e de morte circulando no espaço há centenas ou milhares de anos, quem sabe aquela afirmação de Galileu Galilei, eppur si muove, pronunciada no tribunal da inquisição, ou a de Jesus Cristo na Cruz, ―perdoai-vos, Pai, eles não sabem o que fazem‖? Será que Jesus pronunciou mesmo essa frase, ou teria morrido puto da vida, xingando todo mundo? Ou o último gemido de Joana d‘Arc (LOPES, 2006, p. 46).

Em A ostra e o vento, Lopes já havia se utilizado do mesmo recurso. Nesse romance, porém, em vez de vozes, é Saulo, o ser criado por Marcela, que tem sua existência eternizada,

23 MARTEL, A. Tito. Na América do Sul – O Thesouro da Ilha da Trindade. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro:

30 de mar. 1896. Edição nº 90. p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=10 3730_03&PagFis=13908&Pesq=E.%20F.%20Knight+Thesouro+Trindade+Christo. Acesso em: 16 jun. 2019.

24

NETTO, Carvalho. Camuflado em navio negreiro. A Noite, Rio de Janeiro: 18 jan. 1940. Edição nº 10.035. p. 19 e 24.. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_04&

pagfis=394&pesq&url=http%3A%2F%2Fmemoria.bn.br%2Fdocreader#. Acesso em: 16 jun. 2019.

25 ALMEIDA, Gonçalves de. Na ilha da Trindade. A Federação, Rio Grande do Sul: 15 ago. de 1912. Edição nº

192. p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=388653&pasta=ano%20191& pesq=lendarios+thesouros+do+pirata+zulmiro. Acesso em: 17 jun. 2019.

permanecendo na Ilha dos Afogados mesmo depois da morte de sua criadora. A própria Marcela, em alguns momentos, parece, como Saulo, também ter se eternizado no espaço, sendo pressentida sempre que o cheiro de manjericão exala pela ilha, por exemplo. No entanto, no caso dessa personagem, a explicação sobrenatural perde força quando se leva em conta que sua permanência na ilha pode estar associada à memória de Daniel e também de Saulo, os quais, na ânsia da presença de Marcela, sem a qual a ilha não tem mais qualquer significação, associam a personagem a tudo que possa lembrá-la. O mesmo argumento não se mostra satisfatório no caso de Saulo, que, sendo conhecido apenas por Marcela, não pode ter sua presença na ilha explicada pela memória.

Em seu Guia prático de criação literária, Lopes esclarece que, durante a pesquisa que realizou antes de escrever seu quarto romance, ao ler sobre o processo criativo dos artistas, deparou-se com uma teoria curiosa: o escritor russo Serge Voronoff, em seu livro Do cretino ao gênio, defendia a ideia de que o cérebro humano, quando gera uma ideia muito forte, acaba por projetá-la no espaço, onde ela circula em forma de onda eletromagnética, podendo ser capturada anos, décadas ou séculos depois. O escritor brasileiro utilizou-se, pois, dessa ideia para, a princípio, idealizar Saulo e, anos depois, as vozes captadas por Epaminondas em As fêmeas da Ilha da Trindade. Neste último caso, ele recorreu também a uma ocorrência real dessa eternização dos sons no espaço, a qual ele assim relata:

Nas décadas de 50 ou 60 do século XX, não lembro bem a data, ocorreu estranho fenômeno em Niterói, Rio de Janeiro: dois rádio-amadores montaram num morro um aparelho ultra-sensível com o objetivo de captar sons circulantes no espaço, inclusive vozes humanas de pessoas já mortas. Esperavam poder um dia captar o Sermão da Montanha, na própria voz de Jesus Cristo. Não se sabe o que aconteceu naquela casa que eles ocupavam, mas sabe-se que o aparelho explodiu, seus corpos sumiram e nenhum vestígio deles sobrou, como se houvessem se desintegrado, inclusive um garotinho negro que fazia serviços externos para eles. Do mundo inteiro vieram estudiosos, inclusive parapsicólogos, para estudar o fenômeno e nada puderam explicar (LOPES, 2001, p. 143-144).

Ainda no que se refere a A ostra e o vento, outro aspecto contribui para a caracterização da ilha como espaço do sobrenatural: a inexistência geográfica da Ilha dos Afogados e a impossibilidade de datação dos eventos que lá transcorrem. Diferente do Atol das Rocas e da Ilha da Trindade, a Ilha dos Afogados não existe fora da ficção, e nesses termos pode ser associada ao ―reino muito distante‖ onde costumam se passar os famosos contos de fadas. Além disso, a ausência no romance de marcações temporais que permitam ancorar historicamente a história nele narrada nos remete ao ―era uma vez‖ das narrativas

infantis, o que acaba por conferir um tom lendário e também uma ideia de circularidade à história de Marcela.

É importante que se diga, inclusive, em relação a isso, que a fagulha que daria origem à história contada em A ostra e o vento aparece como lenda em Cais, saudade em pedra. Nesse romance, Gerson, o protagonista, em alucinações que sucedem ao naufrágio de que ele foi vítima, relata a história de uma filha de faroleiro que vive o romance com um náufrago:

– Gerson! Gerson…

Gerson sou eu, e ela, quem será? Será a filha do faroleiro? Quem me contou a história da filha do faroleiro? Mentirosos! Inventando histórias doidas! Não creio nessas lendas. Ou é verdadeira? E se se passou comigo e não me lembro? Não lembro mais nada. Vai ver tudo aquilo aconteceu comigo… A história que não era lenda está se passando agora, neste momento, comigo. Sou eu o náufrago daquele navio, e a mulher que ali vem deve ser a filha do faroleiro. [...]

Foi há tantos anos que isso aconteceu comigo, ou não foi comigo, mas tantos anos que virou lenda. E se foi há tantos anos, como está acontecendo agora? Foi numa ilha qualquer, por ocasião de um temporal. O marinheiro, único sobrevivente, avistou a fogueira e nadou para ela.

Ali, ilha virgem, vivia a mulher virgem, filha do casal de faroleiros velhos havia pouco falecidos. Todas as noites ela subia ao pico do morro para acender o farol e lá ficava horas a fio vendo o jato de luz varrer o mar, vendo navios passarem. E no casulo de sua solidão, armazenava amor dentro de si para entregar ao primeiro náufrago de algum navio extraviado.

Certa noite ela não acendeu o farol. Desceu à praia, juntou lenha, acendeu uma fogueira e esperou… esperou… um homem ou mesmo um deus que por acaso aparecesse boiando nas ondas. Não apareceu, o farol continuou apagado para não iluminar mais aquele caminho de arrecifes. Navios passavam ao largo, distantes, distantes. E toda noite a fogueira acesa.

Um dia um estrondo reboa naquela solidão. Há gritos repetidos, e em pouco vem dar à praia um náufrago. Ela o protege, ele descansa em seu corpo, e pensa que é visão. [...]

Lá na casinha do alto o farol continuava cego. Ela encontrara seu rumo, o náufrago o rumo do seu corpo, e esqueceram-se que outros demandavam outros rumos. Cem dias e cem noites, nem sequer ouviram outros gritos e longos apitos de navios perdidos na escuridão, estraçalhados sobre rochedos, porque nenhum outro náufrago veio ter à ilha ou avistou fogueira, porque o vento apagou-a e levou-lhe as cinzas.

Cento e um dias, certa manhã, acercou-se outro navio, desembarcaram homens. Por que o farol apagara? Nem tinham memória mais para explicar. Só reconheciam o rumo de seus corpos.

Então os estranhos reacenderam o farol e conduziram os dois para bordo. Prestariam contas dos navios perdidos. Mas na manhã seguinte os marinheiros intrusos avistaram distante dois corpos boiando, mortos e juntos, extremamente mortos e juntos, em sua última posse (LOPES, 1963, p.7-8).

Nessa pseudo-lenda, é possível detectar vários pontos que compõem a fábula de A ostra e o vento. Os principais deles: a presença de uma jovem que, em meio à solidão a que se

encontra condenada por viver sozinha em uma ilha, anseia por alguém com quem possa compartilhar seu amor; e o apagamento do farol. Além disso, no excerto acima é possível vislumbrar o germe que daria origem a Saulo quando o narrador afirma que a personagem esperava que um homem ou um deus viessem dar à praia onde ela acendera sua fogueira. Levando-se em conta as características de Saulo, ele poderia representar esse deus da história rememorada por Gerson, uma vez que a misteriosa personagem de A ostra e o vento possui capacidades comuns ao deus cristão, por exemplo, como a eternidade e a onisciência.

Toda essa potência sobrenatural que acerca o espaço insular, amplamente explorada na literatura de Lopes e de outros escritores, e, além disso, presente mesmo fora da ficção, culmina, em A ostra e o vento, na relação que nessa obra se percebe entre o tempo e o fantástico. Isso se deve ao fato de que, nesse romance, a noite serve de palco para os principais eventos sem explicações naturais, como os encontros amorosos entre Marcela e Saulo e a estranha experiência, experimentada por Daniel, de viver dois tempos em um só, ocasião em que as leis naturais que regem o tempo físico tal qual o conhecemos são desprezadas e subvertidas. Esses acontecimentos, assim como outros que, no âmbito do sobrenatural, a eles se relacionem, serão apresentados e analisados ao longo deste capítulo.