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3 O TEMPO E O FANTÁSTICO EM A OSTRA E O VENTO

3.2 O SOBRENATURAL EM A OSTRA E O VENTO

3.2.2 O sobrenatural relatado: as histórias de que fala a história

3.2.2.1 O navio fantasma Palestina

A crônica marítima é abundante em relatos acerca de navios que, livres de comando, donos de si mesmos, ou guiados por fantasmas e esqueletos, surgem misteriosamente, como que brotados do nada, para em seguida desaparecerem sem deixar rastro: os famosos navios-

fantasma. São inúmeras as histórias dessa natureza a povoarem o imaginário de marinheiros, pescadores e mesmo de outros grupos que em seu cotidiano lidam com o mar e com seus mistérios. Conforme Alexandre Monteiro, professor do Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova Lisboa, citado na matéria ―Quais os casos mais assustadores de navios-fantasma?‖26, publicada pela revista Superinteressante, os relatos sobre navios-fantasma constam ao longo de grande parte da história da humanidade e abrangem desde lendas sobrenaturais até histórias de embarcações que são descobertas em plena jornada, mas sem tripulação, vitimada, na maioria das vezes, por epidemias, motins – rebelião de marinheiros contra o capitão – ou por ataques piratas.

O fato é que essas histórias, amplamente profícuas em termos de significação e dotadas de um grande potencial dramático, extrapolaram o campo da oralidade e foram incorporadas ao discurso literário, e não apenas para caracterizar a cultura marítima, sendo citadas como lendas, mas figurando como tema central em diversas narrativas. É o que se verifica, por exemplo, no romance The phantom ship (1839), do escritor inglês Frederick Marryat, contemporâneo de Charles Dickens e pioneiro na chamada ficção náutica, ou aquela que explora em seu conteúdo as técnicas de navegação e as vivências em alto mar. The phantom ship reconta a antiga lenda, conhecida de muitos marinheiros pelo menos desde o século XVII, do navio Flying Dutchman (Holandês Voador), cujo capitão, como alternativa para sobreviver às tempestades que enfrentava ao atravessar o Estreito de Magalhães, teria feito um pacto com o Diabo, que o condenara, junto com o seu navio, a vagar eternamente pelos oceanos, causando o naufrágio de qualquer embarcação que porventura o avistasse.

Na ficção literária nacional, o tema do navio-fantasma acha-se amplamente explorado nas narrativas de Lopes, sendo aludido de forma breve em algumas obras, como Maria de cada porto e Cais, saudade em pedra – de modo a legitimar a representação da temática marítima pela evocação de sua cultura mítico-lendária –, e explorado largamente em outras, como no romance Belona, latitude noite e nos contos O navio morto e O suicídio do encouraçado São Paulo, em cujos enredos se impõe como elemento central.

No caso de Belona, latitude noite, o tema do navio-fantasma se insere de forma decisiva na construção do enredo, já que o navio Belona II, ao se perder numa noite sem fim, passa a navegar à deriva, desgovernado e habitado apenas por uma tripulação composta de marinheiros e de passageiros mortos ou em vias de morrer, condição comum a navios- fantasma de outras histórias. Além disso, as próprias personagens embarcadas, conscientes da

26 Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quais-os-casos-mais-assustadores-de-navios-

estranha errância do navio, apontam-no também como um ser sem vida, tal qual aqueles que o povoam. É o caso do miçangueiro Isaias, que, a certa altura da narrativa, declara ―... esse homem [Leone] está conduzindo um navio morto e levará séculos para atravessar o rio que é mar... restará ele sozinho comandando o fim, comandando...‖ (LOPES, 1975, p. 82).

O discurso de Isaias, que qualifica como morto o Belona II, aponta para um aspecto muito significativo do texto de Lopes – e do próprio pensamento do homem do mar –, que é o entendimento do navio como um organismo vivo, dotado de alma e de vontade. Esse pensamento é expresso de forma bastante clara no conto O suicídio do encouraçado São Paulo, publicado na coletânea O navio morto e outras tentações do mar. A narrativa, composta por relatos de inúmeras histórias de navios-fantasma, como o Vassili, o Maria Celeste, o São Paulo e outros, apresenta, logo em seu início, o seguinte trecho:

Na sua estrutura, o navio é, em princípio, um ser inanimado, arcabouço de madeira ou de aço, com sua quilha e falsaquilha, carlingas e alefrizes, seu casco, leme e timão, seu convés, seu espardeque, seu tombadilho, suas cobertas interiores, com macas ou beliches, sua casa-de-máquinas, seu tanque-de-aguarda, seus mastros e mastaréus, e cesto-de-gávea e paus-de- carga, vigas e chapas longitudinais, e cavernas e vaus e hastilhas e cambetas e escotinhas e escovéns e agualheiro e enotas e gateiras e embornais e galhardetes, portas-estanques e cabeços e arnaneus e cabrestantes e safenas e toldos e vergueiros e anteparas, serrilhos e selbas e estais e balaústres e turcos e ninhos-de-pega e porões, compartimentos de águas-vivas e de águas-mortas, com suas veias e artérias por onde circulam água e vapor, seus intestinos que dejetam ao mar detritos de carvão e de ósseo e alimentos consumidos por seus tripulantes, e a poeira cósmica proveniente de estrelas e asteróides que explodiram no espaço há milhões de anos e se derrama lentamente pelo seu convés, a transpirar vapor e resfolegar fumaça por sua chaminé.

E quando faz soar o apito de sua primeira partida anunciando que irá rasgar o caminho do mar, começa a comportar-se como um organismo vivo, a adquirir personalidade, introjetar-se de uma alma própria, individual, íntima à qual irá incorporar-se a alma de cada um dos marinheiros e tripulantes que nele irão conviver (LOPES, 1995, p. 19-20, grifo nosso).

Vê-se, da leitura desse fragmento, dois modos de se conceber a existência de um navio. No primeiro deles, quando se leva em conta apenas sua estrutura, ele não é nada além de um objeto inanimado, descrito meramente por meio de uma lista das partes que o integram. O segundo modo se refere ao entendimento do navio como um ser vivo, dotado de vontade própria e de personalidade. Essa mudança de estatuto, que se verifica quando o navio parte para sua primeira viagem, símbolo de seu nascimento, é indicada textualmente nos trechos em que o narrador, após elencar os elementos que constituem seu maquinário, descreve seu funcionamento por meio de processos fisiológicos comuns aos seres vivos, como a circulação

de água e vapor por ―veias e artérias‖, a digestão de carvão, cujos dejetos ―seus intestinos‖ lançam ao mar, e a transpiração e respiração, caracterizadas pela emissão de vapor e de fumaça, respectivamente. Esse processo de personificação aponta para o fato de que, de forma semelhante ao que acontece com os seres vivos, o navio nasce e também morre, e, desse modo, se justificaria a possibilidade de se vislumbrar sua ―alma‖ a navegar assombrando os mares, tal qual culturalmente se acredita que aconteça com as almas humanas que assombram antigos casarões, cemitérios e outros ambientes.

O conto O navio morto, publicado em 1965 na coletânea Os dez mandamentos, e depois em O navio morto e outras tentações do mar, de 1995, é mais um dos textos de Lopes que tem o sobrenatural presentificado por meio do tema navio-fantasma. Nele, o autor utiliza alguns dos elementos que compõem a trama de Belona, latitude noite, romance que desenvolvia quando teve encomendado o conto. A esse respeito, Fody III esclarece que

Quando o romance Belona ainda estava em fase de planejamento, Lopes foi solicitado a escrever uma estória sobre o tema do Mandamento ―Não Furtar‖, a ser incluída numa coletânea de contos escritos por dez autores [...] cada um deles usando como tema um dos Dez Mandamentos [...]. Ele fez desse conto, ao qual deu o título de ―O Navio Morto‖, um exercício preparatório para Belona, usando muitos dos mesmo personagens, temas e símbolos (FODY III, 1978, p. 150).

De fato, o conto e o romance possuem inúmeros pontos em comum, como terem suas tramas temporalmente ancoradas em uma noite que parece não ter fim e suas personagens vitimadas por uma peste de cuja fuga resulta estarem elas a bordo das embarcações onde se ambientam as duas narrativas, além de compartilharem diversos elementos que contribuem para a caracterização desses espaços como navios-fantasma. É o caso, por exemplo, da desintegração constante e cada vez mais intensa que acomete os navios dos dois textos, da presença, insistentemente reiterada, de gemidos e de mortes e da existência de uma poeira misteriosa, uma espécie de névoa que circunda as embarcações, aparentemente vinda do mar, e que poderia estar contaminando a tripulação, sendo a responsável por transmitir a peste.

É no desfecho, todavia, que as duas narrativas se distanciam. No romance, a noite que abocanhara as ações de que se constitui o enredo se dissolve, juntamente com toda a atmosfera sobrenatural, no penúltimo capítulo, quando enfim amanhece e o cargueiro Belona II passa a navegar, embora ainda sem um rumo certo, em águas claras. De acordo com Araújo, esse final ―[...] aponta simbolicamente para o surgimento de um novo ciclo do homem [...]‖ (ARAÚJO, 2017, p. 186), que, tendo resistido à dor e ao sofrimento extremos, de que a noite serve como metáfora, tirara deles lições e se transformara para uma nova vida, cuja

chegada é indicada pelo nascer de um novo dia. No conto, por outro lado, o desfecho ratifica o estatuto de navio-fantasma até então apenas sugerido para a embarcação que serve de espaço para as ações narradas. O Comissário e Teresa, sua amante a bordo, avistam luzes de um navio que se movimenta em direção ao Belona e se desesperam diante da possibilidade de uma colisão, mas a embarcação iluminada atravessa a outra, levando os protagonistas a compreenderem a condição do navio que ocupam, conforme revela o fragmento abaixo:

– Mudem o rumo! Guinem rápido! Eu não posso fazer nada. Este navio não obedece ao meu comando. Mudem vocês! Teresa! Teresa! Agarre-se a mim! A proa do navio iluminado atravessou o Belona a meia-nau e emergiu na poeira. O homem e a mulher escutam ainda os gritos dos marinheiros: – É um navio morto! Um navio morto!

Como pode ser? Aquele navio atravessou o nosso e nem sentimos qualquer abalo! E os marinheiros na proa...

Só então o homem compreende. Abraça a mulher, olham-se e cai entre os dois um silêncio.

Sobem abraçados para o tombadilho. Ele segura a roda do leme, ela fica olhando a poeira caindo no mar (LOPES, 1995, p. 170).

Em A ostra e o vento, o tema do navio-fantasma é abordado de forma rápida e aparentemente sem grandes consequências para o enredo e para a significação da obra. Em um dos instantes em que rememora a infância de Marcela, Daniel lembra-se de uma ocasião em que a garota menciona a história do navio Palestina, bastante característica da cultura lendária marítima e muito difundida entre marinheiros e pescadores:

[Marcela] Voltou para perguntar como era mesmo a estória daquele navio que incendiou com uma mulher muito bonita a bordo, e até hoje avistam o navio em alto-mar e sempre está a mulher na proa, em chamas, gritando para que a socorram. Pescadores e marinheiros perseguem o navio para salvar a mulher e nunca o alcançam, e sempre que é vista cai uma tempestade no mar.

— Como era o nome da mulher, Daniel?

— Não sei. O do navio era Palestina (LOPES, 2000, p.36-37).

Para o leitor comum, esse trecho poderia apontar, por exemplo, para o interesse infantil pela contação de histórias, o que retrataria um aspecto comum do campo prático das experiências humanas, ou, e além disso, para a natureza curiosa da personagem, o que também remeteria a uma característica da infância: a curiosidade diante dos fatos do mundo. Dando um passo adiante, a alusão ao navio-fantasma poderia ser entendida como uma maneira de legitimar, por meio da referência a elementos do universo marítimo, a identidade da personagem que a profere, por dotá-lo de um saber cultural típico de um determinado

grupo, e contribuiria, assim, para tornar mais verossímil mundo ficcional representado. O mesmo leitor poderia, por outro lado, de forma meramente especulativa e alheia a qualquer intenção interpretativa, conceber a menção ao Palestina como sinal de um pretenso cultismo do autor, sempre dedicado a ―enriquecer‖ sua obra com a inserção, nela, de elementos extraídos de diversos campos do conhecimento – nesse caso, do folclore náutico.

Um outro leitor, mais arguto e comportando-se de modo mais ativo no que diz respeito à busca de significados, não satisfeito com essas explicações, poderia se perguntar o porquê de, em meio a uma gama gigantesca de histórias possíveis, Lopes ter escolhido exatamente essa, a do navio-fantasma Palestina, para compor o universo imagético de seu romance. A princípio, pelo menos duas hipóteses podem ser levantadas para justificar essa escolha: (i) a atmosfera sobrenatural que caracteriza a história do navio-fantasma apresenta ao leitor fatos cuja explicação foge ao campo da racionalidade, preparando-o, por antecipação, para a ocorrência de eventos de natureza semelhante com que ele se deparará mais adiante na narrativa; e (ii) analisada com rigor, a lenda do Palestina apresenta alguns pontos em comum com a história contada em A ostra e o vento, conforme logo se verá.

No que se refere ao fundamento da primeira hipótese, temo-lo expresso por Todorov (2008), que, ao tratar dos procedimentos retóricos do fantástico, aponta para a existência, nas narrativas dessa natureza, de estratégias que prenunciam a ocorrência do sobrenatural:

[...] a aparição do elemento fantástico está precedida por uma série de comparações, de expressões figuradas ou simplesmente idiomáticas, muito frequentes na linguagem comum, mas que, tomados literalmente, designam um acontecimento sobrenatural: precisamente aquele que terá que produzir- se ao final da história (TODOROV, 2008, p. 88).

Nesse sentido, resta-nos saber como, além de pela evocação de um acontecimento cuja explicação atravessa a barreira do natural, a história do navio-fantasma Palestina se relaciona à história narrada em A ostra e o vento. Convém que se busque, pois, em outras fontes, o conteúdo da lenda tão rapidamente evocada no romance de Lopes. O próprio autor, em sua antologia de contos, no já citado O suicídio do encouraçado São Paulo, apresenta, de forma um tanto mais detalhada, a história da embarcação e de sua misteriosa tripulante.

O narrador do conto, depois de atestar a ampla recorrência de aparições do que seriam as almas de navios naufragados ou estranhamente desaparecidos, relata a saga do Palestina, navio de origem holandesa que teria naufragado em 1752, depois de ter sido abandonado por sua tripulação, que lhe ateara fogo durante uma tempestade. Em meio às labaredas, uma jovem muito bela acenava para os marinheiros que se afastavam – sua história e o motivo do

incêndio jamais ficaram conhecidos. O fato é que, todo ano, na data do naufrágio, a prenunciar uma tempestade, o navio é visto em chamas, com uma mulher a bordo a acenar pedindo socorro, ―[...] porque outra vez naufragará e outra vez reaparecerá, um ano depois, em outro ponto dos mares, à ameaça de mais uma tormenta‖ (LOPES, 1995, p. 21).

Além da menção, na lenda e no romance, à tempestade e da existência de uma personagem jovem que se insurge com elemento central da diegese, ambas sujeitas a serem concebidas como mera coincidência, há outros elementos constitutivos de seus enredos que, compartilhados pelas duas narrativas, podem ser tomados como fruto do acaso. Um deles remonta à natureza misteriosa que envolve os incidentes que, nas duas histórias, culminam em um desastre. No caso do Palestina, permanece sem explicação, para os navegantes que avistam a alma da antiga embarcação, a história da moça que é avistada na proa em chamas, assim como o motivo do incêndio. O mesmo mistério é sugerido já no início de A ostra e o vento, quando Saulo avista o barco que traz Daniel e os representantes da Capitania dos Portos se aproximar da Ilha dos Afogados e enuncia: ―Pescadores comunicaram no continente terem perdido o rumo por falta da luz do farol que os vinha guiando por muitos anos. Mas não saberão por que foi apagado, quem o apagou‖ (LOPES, 2000, p. 14);27 e também em seu final, quando, depois da morte de Daniel, Saulo, metaforicamente referindo-se ao corpo de Marcela como uma ostra, reforça a permanência do mistério envolvendo a personagem:

Venham, homens do continente, eu os espero, estou esperando-os!

Verão ao pé da torre o corpo de Daniel com as mãos estendidas na direção da luz do farol que permanece acesa, e gaivotas, calmas, grasnam em torno. Mas antes verão na praia, logo que desembarquem, uma pequena ostra que as ondas há pouco jogaram na areia e que as aves assustadas rodeiam mas não conseguirão abrir... (LOPES, 2000, p. 153).

Outro traço comum entre a lenda do Palestina e o romance de Lopes diz respeito à natureza cíclica de seus enredos. No caso do navio-fantasma, o narrador do conto afirma que a embarcação aparece anualmente, exatamente do dia de seu naufrágio, de modo a eternizar sua existência, como se a cada ano o navio se incendiasse e toda a história se repetisse. Essa ideia de retorno pode ser facilmente verificada em A ostra e o vento por meio do uso, já comentado neste estudo, da mesma oração para iniciar e encerrar o enredo do romance: ―, manhã manhã de mais uma era que finda e reinicia no roldão das horas e do vento [...]‖

27 É fato que, diferente do que ocorre na lenda, em que de fato não se sabe o que aconteceu a bordo do Palestina,

em A ostra e o vento, o mistério envolvendo Marcela e os demais habitantes da ilha se processa apenas como elemento da própria diegese, uma vez que o leitor, graças à reconstituição da história que se faz por meio da memória de Daniel, dos escritos de José e de Marcela e da voz narrativa de Saulo, toma ciência dos acontecimento que levaram ao apagamento do farol e ao desaparecimento das personagens.

(LOPES, 2000, p. 13) e ―Manhã manhã de mais uma era que finda e reinicia no roldão das horas e do vento,‖ (LOPES, 2000, p. 153). Além disso, trechos como ―[...] as viuvinhas escutarão seus [de Marcela] gritos, sobrevoarão, e será o começo de mais um dia na ilha, e recenderá sempre e por todo canto um cheiro ativo de manjericão... Para sempre!‖ (LOPES, 2000, p. 152) sugerem, em reforço à ideia da ciclicidade do enredo, a eterna presença de Marcela na ilha, assim como a do próprio Saulo, presença essa que se renovará a cada manhã com o nascer de mais um dia num indício de que a cada nova manhã os fatos narrados se repetirão.

Em última instância, é importante considerar também a identificação que se estabelece entre o espaço e as protagonistas nos dois textos em questão. Como vimos no início deste tópico, é uma crença do folclore náutico a assimilação, por parte de um navio, da essência de seus tripulantes. No conto O suicídio do encouraçado São Paulo, o narrador afirma que ―[...] a forma bela e humana da jovem é meramente a alma do Palestina [...]‖ (LOPES, 1995, p. 21), de modo a sugerir que a personagem teria se incorporado ao navio, tornando-se um só. Algo semelhante teria acontecido entre Marcela e a Ilha dos afogados: ―[...] a ilha inteira era Marcela e Marcela era a ilha‖ (LOPES, 2000, p. 56). Não seria, pois, exagero dizer que a Ilha dos Afogados pode ser vista, graças a todo um conjunto de fatores, que vão desde sua caracterização personalizada – quer diretamente, como em ―[...] a ilha está viva‖ (LOPES, 2000, p. 16), quer por meio de sua identificação com Marcela – até sua pretensa eternidade – ―Será longa a noite desta ilha, borrão de terra no infinito do tempo‖ (LOPES, 2000, p. 127) – como um navio-fantasma a navegar nas águas da eternidade.

Desse modo, torna-se claro que a presença, no romance, do relato da lenda do navio Palestina não é meramente ilustrativa, como a princípio se pode supor, mas dotada de significação, uma vez que, além de contribuir para a instauração do sobrenatural no espaço romanesco, naturalizando e antecipando eventos desse tipo, explora elementos do próprio enredo, recorrendo, para isso, à relação de diferentes elementos da estrutura narrativa, como espaço e personagem, por exemplo, e à exploração de técnicas de construção temporal, como a de uma pretensa circularidade da narrativa, fruto da natureza cíclica das ações relatadas.