• Nenhum resultado encontrado

A personagem cômica das peças melodramáticas encenadas pelo Circo Nerino

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A personagem cômica das peças melodramáticas encenadas pelo Circo Nerino"

Copied!
209
0
0

Texto

(1)

MOIRA JUNQUEIRA GARCIA

A PERSONAGEM CÔMICA DAS PEÇAS MELODRAMÁTICAS

ENCENADAS PELO CIRCO NERINO

Campinas

(2)

MOIRA JUNQUEIRA GARCIA

A PERSONAGEM CÔMICA DAS PEÇAS

MELODRAMÁTICAS

ENCENADAS PELO CIRCO NERINO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do Título de Mestra em Artes da Cena, na Área de Concentração Teatro, Dança e Performance.

Orientadora: Prof.ª Drª Larissa de Oliveira Neves

Este exemplar corresponde a versão final da Dissertação de Mestrado defendida pela aluna Moira Junqueira Garcia e orientada pela Profa. Dra. Larissa de Oliveira Neves.

Campinas 2015

(3)
(4)
(5)

Agradeço a Deus por me permitir percorrer esta longa estrada acadêmica de descobertas e transformações.

Aos meus pais Solange e Paulo pelo incentivo aos estudos e desenvolvimento intelectual.

Ao meu companheiro e amor João Levi que sempre me apoiou e contribui,

sobremaneira, para uma reflexão mais crítica acerca do trabalho. Aos nossos frutos: Olívia e Rebeca, duas bênçãos em nossas vidas.

À Larissa por todo apoio, orientação e inúmeros ensinamentos conquistados nesta trajetória.

A todos os meus familiares dos quatro cantos do país: São Paulo, Campo Grande e Fortaleza.

Aos meus amigos de graduação, em especial: Fernanda Jannuzzelli (pelas

conversas e afinidades temáticas), Hosana Mariotti, Gabriela Guinatti, Aline Olmos e Letícia Frutuoso.

Ao grupo Letra e Ato pelos aprendizados e trocas, em especial a Elen de Medeiros por ministrar a disciplina que mais contribui para este trabalho.

Aos professores Mario Alberto de Santa e Mario Fernando Bolognesi, pelas importantes contribuições no exame de qualificação.

A todos os colegas e professores de graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em especial ao professor Rubens Brito, pelo ponta pé inicial na cultura popular, a Roberto Mallet, pelos inúmeros ensinamentos de arte e vida, a Luiz Monteiro,

cearense arretado que me apresentou o circo na prática. A Elder, Luiz, Bento, Benê, Dalvina, Letícia, Neuza, Márcia, Rodolfo, Vinícius e demais funcionários do Instituto de Artes.

A Verônica Tamaoki pela generosidade em que me acolheu e apresentou ao universo do Circo Nerino.

A Ronita Avanzi e, em especial, a Roger Avanzi por terem me possibilitado uma boa conversa sobre a incrível história do Circo Nerino.

(6)

Ao Centro de Memória do Circo.

(7)

A gargalhada é o sol que varre o inverno do rosto humano. Victor Hugo

(8)

RESUMO

Esta pesquisa analisa a personagem cômica das peças melodramáticas encenadas pelo Circo Nerino em meados do século XX. A personagem cômica, quando presente, costuma dinamizar e apresentar novos aspectos à dramaturgia melodramática majoritariamente tensa e complicada. Este tipo de história é bastante apreciada pelo público, e por isso muito encenada nos circos brasileiros da época e atuais. Visando compreender melhor a temática, escolhemos o Circo Nerino para complementar a análise textual com elementos da encenação e realização cênica. As três peças que integram este trabalho foram selecionadas devido à importância da personagem cômica e ilustram muito bem o que se pretende analisar com este trabalho. Por fim, os títulos das obras analisadas nesta dissertação:...E o Céu Uniu Dois Corações, Jerônimo, o herói do sertão e A Mestiça.

(9)

ABSTRACT

This research analyzes the comic character of melodramatic plays staged by Circus Nerino in the mid-twentieth century. The comic character, when present, usually streamline and introduce new aspects to melodramatic drama mostly tense and complicated. In the past this type of story was well appreciated by the public, so far staged in Brazilian circuses of the time. To better understand the issue, we chose the Circus Nerino to supplement textual analysis with elements of staging and performing such plays. The three pieces that integrate this work were selected because of the importance of comic character and illustrate very well what we want to analyze this work. The titles of the works studied in this thesis: ...E o Céu Uniu Dois Corações, de Antenor Pimenta, staged in 1949; Jerônimo, o herói do sertão de Joaquim Silva, staged in 1955 and A Mestiça de Agenor Garcia, staged in 1950.

(10)

ÍNDICE

1 - INTRODUÇÃO ... 12

2 - O CIRCO NERINO E O TEATRO MELODRAMÁTICO ... 14

2.1 - O Circo Nerino ... 14

2.2 - O Melodrama ... 26

2.3 - O Melodrama no Brasil ... 31

2.4 – Os tipos do circo-teatro ... 35

2.4.1 – Galã e ingênua ... 44

2.4.2 – Centro e dama central ... 45

2.4.3 – Cômico e caricata ... 45

2.4.4 – Baixo cômico e sobrette ... 47

3 - ... E O CÉU UNIU DOIS CORAÇÕES ... 49

3.1 – A trama... 49

3.2 – Análise da trama ... 53

3.3 –Personagens ... 58

3.4 – Análise das cenas e personagens cômicas ... 63

3.4.1 – Primeiro ato a comicidade do surdo ... 63

3.4.2 – Segundo ato a comicidade do gago ... 65

3.4.3 –Terceiro ato a comicidade do tolo ... 71

3.4.4 – Quarto ato o declínio da comicidade ... 79

3.4.5 –Quinto ato fim da comicidade... 81

3.5 – Encenação do Circo Nerino ... 81

4 – JERÔNIMO, O HERÓI DO SERTÃO ... 86

4.1 – Os autores e a história ... 86

(11)

4.3 - O popular sertanejo ... 95

4.4– A personagem cômica de Saci ... 101

5– A MESTIÇA ...117

5.1– Os autores e a trama ... 117

5.2 - Escravos e senhores ...127

5.3– A recriação do romance para o palco ...135

5.4– Análise dos momentos cômicos ... 139

6– CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 156

7– REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 164

(12)

1- INTRODUÇÃO

Esta dissertação de mestrado estuda a personagem cômica das peças de circo-teatro, mais especificamente as que encontramos nos dramas circenses. Para realizar esta análise, foram selecionadas três peças do repertório encenado pelo Circo Nerino: ...E o Céu Uniu Dois Corações, Jerônimo, o herói do sertão e A Mestiça. Estas peças apresentam um grande destaque para as personagens cômicas, as quais desempenham uma relevante participação dramatúrgica.

O começo da pesquisa se deu através de um levantamento bibliográfico dos três principais temas que tangenciam a temática: o circo-teatro brasileiro, o melodrama e a comicidade. Concomitante foi feita uma pesquisa no Centro de Memória do Circo em que se buscou localizar o material primário sobre o Circo Nerino. A intenção de escolher um circo como pano de fundo foi de contextualizar a dramaturgia em alguma representação, uma vez que se trata de um gênero dramatúrgico destinado à cena. Nesse sentido, foi dada uma maior preferência a um circo do passado, cujo repertório melodramático era mais amplo e recorrente na programação semanal do que se comparado aos circos-teatros atuais. O Circo Nerino apresenta tais características, e sua contribuição foi muito engrandecedora para realizar as análises dramatúrgicas realizadas neste trabalho.

As principais fontes utilizadas sobre este circo foram a literária, principalmente a partir do livro Circo Nerino de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki, visual (através de inúmeras fotos e imagens) e também a partir de duas entrevistas realizadas com Roger Avanzi e Walmir dos Santos. A escolha de entrevistar apenas estes dois artistas se deu por protagonizarem a dupla de herói e personagem cômica das peças analisadas. Com Anita Garcia formavam o trio das principais peças de circo-teatro que, ao longo de cinquenta e um anos, agradou muitos espectadores de todo o país.

Além deste material foi realizado um levantamento e estudo de peças de circo-teatro, dramas e comédias, visando conhecer a dramaturgia e histórias. Após a leitura de inúmeros textos deste gênero foi possível selecionar três peças, priorizando também os aspectos das encenações que eram realizadas no Circo Nerino, no começo do século XX. Dessa forma foi possível reconhecer

(13)

características gerais deste estilo dramático e contextualizá-lo em uma encenação do passado.

Esta, portanto, é uma pesquisa dramatúrgica e teórica sobre a encenação do circo-teatro brasileiro, mais especificamente a personagem cômica dos dramas circenses. Este trabalho lança uma lupa nestas personagens, buscando compreender suas relações com o enredo, com a dramaturgia e a encenação. Para isso foi feita uma divisão e em seguida uma análise dos momentos cômicos de cada texto, buscando definir a comicidade e analisá-la dentro de um contexto específico

(14)

2 - O CIRCO NERINO E O TEATRO MELODRAMÁTICO

2.1 - O Circo Nerino

Dentre os muitos grupos circenses do começo do século XX, o Circo Nerino foi escolhido para este estudo por diversos motivos. Primeiramente, por seu marco na história brasileira, pois foi um circo de grande porte que percorreu boa parte do território nacional durante cinquenta e um anos. Em segundo lugar, pela parte cômica de seus espetáculos, que era muito desenvolvida, principalmente através de seu grande ícone, o palhaço Picolino. As encenações teatrais, por outro lado, também eram famosas, e se desenvolveram especialmente depois do casamento entre Roger Avanzi e Anita Garcia, uma importante atriz dramática do Circo Garcia. Neste outro circo, o teatro desempenhava um papel central nas apresentações e, a partir desta união, a noiva, juntamente com seus pais, passou a integrar o Circo Nerino. Seu pai, Agenor Garcia, se tornou um importante ensaiador1 e foi responsável pelo desenvolvimento de inúmeros aspectos da encenação, inclusive por incorporar um palco ao interior da lona.

O Circo Nerino foi fundado em Curitiba no ano de 1913, pouco menos de oitenta anos do primeiro circo formalmente organizado chegar ao país, o de Giuseppe Chiarini (SILVA, 2007:58). No final do século XIX, os circos europeus vieram para o Brasil atraídos pelo crescimento econômico proporcionado pela borracha e pelo café. Alguns deles resolviam permanecer no país, e para isso integravam ao espetáculo tendências e costumes locais. Um importante trabalho que aborda as origens do circo é o livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, de Erminia Silva. Para a autora, o encontro dos artistas estrangeiros com as experiências nacionais produziu um espetáculo diversificado, de relevante mistura artística. Esta mixórdia cultural foi um importante fator, apesar de não ter sido o único, que possibilitou a permanência destes grupos no país, por dialogar com os interesses e referências do público local.

1

O ensaiador era uma espécie de diretor do espetáculo. Responsável por orientar o elenco em relação ao contexto da peça, organizar a movimentação em cena e toda sua composição espacial.

(15)

A mudança que se operou nas pantomimas é um exemplo disso. O enredo das pantomimas trazidas pelos circos europeus era bem esquemático, baseado em roteiros de ações, e pautado na figura do Arlequim da commedia dell´arte. No Brasil, os artistas circenses criaram inúmeras histórias a partir destes roteiros, em que mantinham as principais estruturas e personagens, mas variavam a trama, inserindo características locais. Adicionavam ao nome original algum elemento novo desta recriação, e assim conseguiam aumentar o repertório e se manter mais tempo na mesma cidade. Dificilmente algo é reproduzido dentro dos circos, pois sempre há o processo de apropriação e ressignificação do original, além de o contato com o público gerar mudanças significativas na encenação final.

Os circos, sobre tudo do começo do século XX, costumavam se organizar como circo-família, e mesmo quando determinado integrante não tinha aptidão para realizar algum número, ainda havia a possibilidade do teatro, além de todas as inúmeras funções dos bastidores. Os saberes diversos que compunham o universo circense eram transmitidos entre os integrantes de maneira rotineira e natural, desde montar e desmontar a lona, até os números artísticos. Erminia Silva (2009) comenta sobre a importância da tradição para o circense, que costumava ser transmitida oralmente e era formada a partir de um coletivo. A tradição circense familiar é um dos fundamentos principais desta arte, especialmente no início do circo no Brasil.

O Circo Nerino se enquadra neste momento da história, em que a estrutura familiar, a tradição e a transmissão oral formavam a base de sustentação da arte. Inclusive o término desta companhia se deu em decorrência da crise na organização familiar, com a sobreposição de interesses pessoais ao coletivo. Como a história da acrobata principal do Nerino, Alice Avanzi Silva, que deixou a companhia para integrar outro circo, a fim de assinar um contrato e ganhar salário.

Meu esteio no circo eram tio Roger e tia Anita. O certo, a meu ver, era eles assumirem a direção do circo. Porque o sistema da minha avó e do tio Gaetan já estava ultrapassado. Eu não recebia salário, por exemplo. É verdade que tinha tudo o que precisava – casa, comida, roupa, médico e dentista quando necessário – mas queria também autonomia. (AVANZI e TAMAOKI, 2005: 312 e 313)

Dentro da estrutura familiar, Alice, neta do Nerino e de Armandine, tinha privilégios e recebia determinado tipo de tratamento, porém distante dos seus

(16)

mudanças, em que relações trabalhistas foram necessárias para compor um espetáculo com um número razoável de apresentações. Entretanto, antes de narrar o término e os problemas enfrentados por esta companhia, melhor será começarmos pelo início desta história.

No dia primeiro de janeiro de 1913 estreava pela primeira vez, na capital do estado do Paraná, o Circo Nerino. Ao longo dos cinquenta e um anos seguintes percorreu o vasto território brasileiro se auto anunciando como “o circo das multidões”. De norte a sul do país, viajou de trem, navio, barco e por último de caminhão, por estradas de terra, em lugares afastados e interioranos. Por ser uma das poucas atrações artísticas que chegavam às cidades afastadas e interioranas, o circo conseguia permanecer por alguns meses em uma mesma cidade. Oferece um espetáculo diversificado e heterogêneo que atraí muitos espectadores, pertencentes a variadas classes sociais.

O Circo Nerino integra a história circense brasileira do século XX, através do seu palhaço principal, Picolino, representado há pouco tempo atrás por Roger Avanzi. Um circo reconhecido e apreciados pelos números de variedades, habilidosamente executados pelos artistas, e por seu circo-teatro. O espetáculo, como o de diversas companhias circenses do período, era dividido em duas partes: a primeira com números de variedades e a segunda com a apresentação de uma peça teatral.

Este circo se estruturou a partir da junção de duas famílias: os Avanzi e os Ribolá. A primeira com os irmãos Nerino e Felipe e a segunda com os irmãos Armandine, Gaetan e Myris. Os últimos participavam de um circo de cavalos familiar na França, porém no ano de 1911 foram surpreendidos por uma tempestade de neve que atingiu e matou os animais. Então passaram a trabalhar em Paris como saltimbancos, mas a vida artística da família se tornou difícil e por isto resolveram se separar. Reneé e Gaetan foram com a mãe para a África, e Myris e Armandine foram com o pai para a América do Sul. Alguns anos depois se encontraram no Brasil e os irmãos voltaram a trabalhar juntos no Circo Nerino. Cada um dos irmãos desempenhou importantes funções na companhia: Armandine e Gaetan dirigiam o circo, essenciais na condução e administração da empresa, além de trabalharem

(17)

Felipe trabalhavam nos bastidores do teatro e vieram para o Brasil com uma companhia de ópera italiana. Decidiram permanecer no país devido ao avanço da gravidez de Maria Avanzi e passaram a trabalhar no Teatro Polytheama, que no começo do século XX foi considerado o maior teatro do estado de São Paulo. Dessa forma, as apresentações que ocorriam neste teatro foi a escola de formação dos irmãos fundadores do circo que, mesmo sem participar das apresentações, assistiam aos espetáculos e acompanhavam de perto a arte da representação. Era comum haver variados estilos desde ópera, teatro, até números de variedades com palhaços e outros artistas. Dessa forma, os irmãos tiveram, neste período, referências importantes que, de forma substancial, formaram os artistas que viriam ser. No começo da carreira, Nerino e Felipe formavam juntos a dupla de Clown Branco2 e Augusto3. No início, o Augusto era realizado por Felipe (figura 1), porém, como ele era muito inconstante e às vezes sumia do circo, foi substituído, pois não era possível que o palhaço principal se ausentasse. Dessa forma, Nerino, que antes fazia o Clown Branco (figura 1),assume o Augusto principal e cria o conhecido palhaço Picolino:

Picolino em italiano quer dizer pequenino, uma pessoa pequena – de estatura, é claro. Como meu pai era miudinho, um artista português com quem ele trabalhara em sua juventude só o chamava de Picolino. Quando ele passou de clown para excêntrico, lembrou-se do português e achou que Picolino era um bom nome de palhaço. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 29)

2 “O Clown Branco tem como característica a boa educação, refletida na fineza

dos gestos e a elegância nos trajes e nos movimentos. Ele mantém o rosto coberto por uma maquiagem branca, com poucos traços negros, geralmente evidenciando sobrancelhas, e os lábios totalmente vermelhos. A cabeça é coberta por uma boina em forma de cone. A roupa traz muito brilho. O tipo, assim, recupera, no registro cômico, a elegância da tradição aristocráticas, presente na formação do circo contemporâneo.” (BOLOGNESI, 2003: 72)

3

“No Augusto, tudo é hipérbole. A roupa é larga, os calçados são imensos, a maquiagem é exagerada e enfatiza sobremaneira a boca, o nariz e os olhos. Esta figura, que está presente na atualidade do circo brasileiro, é fruto direto da sociedade industrial e de

(18)

Figura 1 – (Esq.) Felipe Avanzi. (Dir.) Nerino Avanzi. Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 28

O palhaço Picolino tinha muita importância para este circo, fora herdada desde Felipe passando por Nerino e seguindo com seu filho, Roger Avanzi. Os artistas

procuravam manter as mesmas qualidades da personagem, principalmente porquê funcionavam no contato com o espectador. Nerino, aos 70 anos, em virtude de um problema grave na perna causado por um eczema, precisou se afastar do picadeiro, então seu filho assumiu sua função. Esta é uma característica marcante do

aprendizado circense: o saber e a criação artística não são individuais, mas transmitidos de geração em geração, tal como aconteceu com o palhaço Picolino, como podemos ver na figura de número dois. Os elementos que funcionavam na relação com o público (o figurino, a maquiagem, as principais ações) se mantinham e não havia a intenção de recriá-los. Em muitos relatos do livro Circo Nerino, de

Verônica Tamaoki e Roger Avanzi,os espectadores comentam a presença marcante de Picolino, muitos dizem que iam ao espetáculo somente para assisti-lo.

(19)

Figura 2 - Roger Avanzi Filho, Nerino Avanzi e Roger Avanzi Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 261.

Figura 3 - Garrafinha e Picolino II Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

(20)

Através do casamento de Armandine Ribolá e Nerino Avanzi surge a união artística destas duas famílias que, um ano após o matrimônio, culminou na criação do Circo Nerino. Antes de se aventurarem na empreitada de construir um novo circo, as duas famílias trabalhavam juntas no Circo Chileno, que começara sua temporada no Brasil. Estavam em Curitiba quando Nerino, Armandine, Felipe e mais dois artistas decidiram se desligar da grande companhia que era o Circo Chileno para montar seu próprio circo. Um fator importante ressaltado por Roger no livro Circo Nerino como impulso para esta empreitada foi o fato de ter muita madeira no Paraná, já que montar um circo de pau fincado era um empreendimento custoso. Na figura quatro podemos ver a primeira formação do Circo Nerino, um pouco mais de dez anos da data de sua fundação.

Figura 4 – Primeira formação do Circo Nerino Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004: 36 e 37.

Desde o começo o espetáculo era dividido em duas partes: a primeira de variedades (na qual apresentavam atrações de pirâmide humana, números de equilíbrio, trapézio, corda bamba, números de palhaço, entre outros), e a segunda, que passou por muitas modificações, desde as comédias mudas representadas pelo palhaço, até se consolidar com o teatro, permanecendo até o último espetáculo da

(21)

trupe. Logo na fundação do Circo Nerino, na segunda parte do espetáculo eram encenadas comédias mudas de Picolino. Também tiveram episódios de luta livre, em que lutadores locais eram desafiados, e um período de circo-cinema.

Antigamente, o espetáculo circense no Brasil era apresentado em duas partes. Na primeira, levava-se a acrobacia, malabarismo, trapézio, bailados, cavalos, entradas e reprises de palhaço, e na segunda, teatro. Tudo começou com o palhaço – o palhaço é sempre o culpado de tudo -, com as comédias, tipicamente circenses, cujo enredo sempre gira em torno dele. Meu pai dizia que no início essas comédias eram mudas, só tempos depois passaram a ser faladas.

O repertório de comédias apresentado pelas diversas companhias que circulavam pelo país era praticamente o mesmo, o que mudava eram os nomes. A Casa dos Fantasmas, por exemplo, era levada também como

Casa Mal-Assombrada ou O Esqueleto. E frequentemente o nome do

palhaço era incorporado ao da peça. Então ficava assim: Picolino na Casa

Mal-Assombrada; Piolin, Professor de Clarinete; Chimarrão e o Doutor Redondo; e por aí vai. (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 33)

Figura 5 – (Esq.) Cartaz do Circo Nerino. (Dir.) Picolino protagonizando peça. Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004 (Esq.) 66. (Dir.) 321.

Na figura acima vemos um cartaz de uma peça protagonizada por Picolino e a outra é do Picolino atuando nas comédias de picadeiro. Este foi um fenômeno que aconteceu em diversos circos do período e ainda podemos observar nos circos-teatros atuais: mudar o título da comédia adicionando o nome do palhaço principal

(22)

do circo, como mencionado no fragmento acima. Para Erminia Silva, a origem da junção teatral com a circense não se deu a partir de uma combinação casual, mas de algo que já vinha se processando nos circos. Os palhaços, das pantomimas mudas, também se apresentavam com algum instrumento musical na primeira parte do espetáculo. De acordo com a autora, aos poucos a fala adentrou no momento musical e influenciou as pantomimas cômicas de alguma maneira. Erminia traça, através da trajetória do conhecido palhaço Benjamin de Oliveira, o princípio do casamento tão bem-sucedido entre o circo e o teatro. Esta união evidencia uma característica interessante do espetáculo circense: agregar diferentes linguagens e manifestações artísticas, sempre considerando o gosto e aceitação do público.

No Circo Nerino o teatro integrou definitivamente a programação diária, depois de algumas tentativas de preencher a segunda parte com outras atrações. O sucesso teatral foi tão grande que o fez permanecer até o último espetáculo da trupe, no ano de 1964. A primeira peça com texto teatral foi O Mártyr do Calvário ou A paixão de Cristo, encenada em 1930, amplamente representada em diversos circos da época. Como o público pedia para assistir esta narrativa, o Nerino resolveu encená-la, mas sem a pretensão de se tornar um circo-teatro, porém devido ao enorme sucesso, mais a frente se tornou também um circo-teatro. Nas fotos a seguir, retiradas do livro Circo Nerino, podemos observar como eram os figurinos e cenários desta montagem.

Figura 6.A - A paixão de Cristo Figura 6.B – A paixão de Cristo

(23)

Figura 6.C – A paixão de Cristo

Fonte:AVANZI e TAMAOKI, 2004: 120 e 121

Somente no ano de 1937, com a peça O Signal da Cruz, cujo enredo era baseado em um filme, o teatro passou a ser uma constante em todos os espetáculos. Neste ano ensaiaram diversas peças, visando formar um primeiro repertório teatral para a segunda parte do espetáculo. Antes disso, o circo apresentava o cinema, porém, em Taubaté, recebeu a visita dos exibidores de filmes da cidade, a fim de saber se aquele espetáculo era de circo ou cinema. Como o cinema não tinha sucesso, eles devolveram os projetores alugados e o Nerino deixou de ser circo-cinema. Na praça anterior, em São José dos Campos, encontrou com o famoso Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, conhecido por seu teatro dramático com destaque para a atriz Aretusa Neves. O encontro de grandes circos era visto sempre com receio, como podemos observar pelo depoimento de Roger:

Mas, para mim, uma das competências de um circo não é deixar que a disputa de uma competência se transforme numa guerra. Não precisa colar seu cartaz em cima do cartaz do outro. Nesse quesito o Arethuzza e Nerino foram bastante competentes.

É verdade que a diferença entre os espetáculos da companhia atenuou a disputa. Porque enquanto o forte do Nerino, que tinha como chamariz um palhaço, eram as comédias, os dramas faziam a fama do Arethuzza, que tinha como chamariz uma atriz dramática, Aretusa Neves. (AVANZI e

(24)

Estas ocasiões, de encontros entre circos, eram propícias a trocas artísticas, e o Nerino pode observar, nesta ocasião, como o repertório dramático do Arethuzza fazia sucesso. Alguns meses depois, em Bicas (MG), estrearia O Signal da Cruz, e nos meses seguintes encenaria sete peças do primeiro repertório teatral da companhia. No começo, as peças eram realizadas no picadeiro e não contavam com o auxílio do ponto. Este, além de soprar as deixas, controlava as entradas e saídas dos atores e era responsável pela iluminação, sonoplastia, subida e descida da cortina, auxiliando em toda a encenação. Esta função passou a ser utilizada amplamente nos circos a partir da necessidade de formar um vasto repertório dramático, que permitisse variações diárias. O Circo Nerino passou a utilizar este recurso no ano de 1949, a partir da instalaçãodo palco, realizada por Agenor Garcia. Podemos ver na figura de número sete atravésda planta baixa deste circo, já com o advento do palco.

Figura 7– Planta baixa do picadeiro com palco Fonte:AVANZI e TAMAOKI, 2004: 205.

Agenor e sua filha pertenceram ao famoso Circo Garcia, amplamente reconhecido por seu repertório teatral, Anita era uma grande atriz de circo-teatro e

(25)

seu pai o ensaiador e adaptador de peças. Dessa forma, o Circo Nerino foi presenteado com duas personalidades que contribuíram para o desenvolvimento e o aprimoramento teatral. Neste momento, a temática das peças deixou de ser majoritariamente sacra e apresentou preocupações relacionadas ao cotidiano da época, despertando ainda mais o interesse dos espectadores. Roger Avanzi, em entrevista, comentou sobre a importância da recepção do público na escolha do repertório semanal:

Levávamos a Paixão de Cristo também, a vida de Jesus. Quase todos os circos apresentavam a vida de Jesus, mas só na semana santa, sexta-feira santa, e nós levávamos sempre, porque estávamos no Nordeste e Norte e eles eram muito religiosos, naquele tempo hoje mudou muito. Tinha cidades que a gente tinha que dá duas sessões e o povo fica esperando fora do circo para assistir a segunda sessão. (Roger Avanzi em entrevista realizada em 18/03/2014)

A presença (ou influência) circenses nas suas atividades não pressupunha só saber fazer exercícios acrobáticos, engolir espadas ou comer fogo (o que já não era pouco), mas também a forma de combinar e unir tudo isto em espetáculos capazes de atender a ‘plebe e a burguesia, o escravo e a família, o aristocrata e o homem de letras’. Os circenses, no seu nomadismo, ocupavam, então, diversos espaços, desde praças até variados palcos teatrais. (SILVA, 2007: 70)

Conforme enfatiza Erminia Silva, atender aos interesses de um público eclético sempre foi uma prerrogativa da arte circense, capaz de encantar desde os mais pobres à elite burguesa e, inclusive, intelectual. Em qualquer fase de sua história o circo sempre foi um espetáculo agregador tanto de público quanto de atrações. A relação entre espetáculo e público é recíproca e dependente, pois é feito para agradar e se molda a estas necessidades.

A comunicação entre o público e artistas circenses, em diversos momentos, se dava pelo rádio, e o Circo Nerino tinha sua própria estação, apesar de não ter autorização oficial para funcionamento. Porém como “o serviço de rádio transmissão no país ainda era criança” (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 82) foi possível manter por alguns anos a transmissão. Em diversos momentos da história deste circo o rádio foi um polo agregador entre artistas e público, o que permitia o intercâmbio de interesses e informações, além de os artistas circenses participarem das origens do rádio se apresentando e usufruindo deste importante meio de comunicação.

(26)

mudanças sociais em curso. Como, por exemplo, no começo do século XX, a preferência do público pelo gênero melodramático. Atualmente, porém, a situação que se observa em diversos circos é diferente, pois a preferência é voltada para as comédias protagonizadas pelos palhaços e personagens cômicas. O Circo de Teatro Tubinho, em atividade desde 2001, transforma, com facilidade, antigos dramas em comédias, dialogando com a preferência dos espectadores. Quando assim feito, a personagem cômica do melodrama ganha destaque e importância na encenação final do espetáculo, a ponto de se tornar a protagonista da história. Muitas vezes, o nome do palhaço principal do circo é incorporado ao título da peça, tal como era feito no começo do circo-teatro brasileiro com as comédias de picadeiro.

Esta pesquisa selecionou um momento da história em que o melodrama era mais apresentado e apreciado pelo público. Geralmente este estava inserido na segunda parte do espetáculo, na parte teatral, nas peças que os circenses chamam de drama. Os dramas eram assim chamados por apresentar histórias cujo tom cômico não era preponderante, e faziam parte deste momento melodramas, tragédias, autores clássicos, autores nacionais – principalmente da comédia de costumes 4 representada nos edifícios teatrais. Como este trabalho tem o enfoque de estudar a personagem cômica do melodrama foi uma prerrogativa escolher um circo do passado, cujo repertório era mais dramático e não tinha o tom cômico preponderante que percebemos atualmente.

2.2 - O Melodrama

O melodrama surgiu na Itália, no século XVII, ligado à ópera italiana, designava na época um drama inteiramente cantado (THOMASSEAU, 2005: 16), responsável por juntar texto e canção. Chegou à França, no contexto da Revolução Francesa, e se popularizou principalmente após o édito de liberação da construção de teatros públicos, em 1791, ocasião que permitiu a qualquer cidadão representar

4

A comédia de costumes foi um gênero dramático inspirado em Molière que se desenvolveu e destacou no Brasil, no final do século XIX e começo do XX. Caracteriza-se pela criação de tipos e situações da época, apresentando sempre uma sutil sátira social.

(27)

era de um ambiente elitizado e restrito. Desse modo, os melodramas despertaram a atenção popular e das elites sociais, pois buscavam conciliar diversas ideologias e reconstruir valores nacionais. Pixerécourt, conhecido dramaturgo do gênero, comenta que se lançou na carreira teatral motivado por ideias religiosas e morais e, para ele, o melodrama era um meio de instrução para o povo.

Jean-Marie Thomasseau, em seu livro intitulado O melodrama, distingue as inúmeras fases do gênero e suas principais características. A primeira delas é a do Melodrama Clássico (1800-1823), em que os criadores buscaram estabelecer regras de construção dramatúrgica com a intenção de conquistar um estatuto literário e teatral reconhecido. Na época, havia um predomínio das regras e convenções criadas durante o teatro clássico francês, apesar de o drama romântico já apontar como uma nova dramaturgia. As leituras classicistas de Aristóteles, até então, predominavam como sendo o expoente de construção dramatúrgica e as convenções teatrais eram permanentemente debatidas e comentadas. A inspiração original era vista com muitas ressalvas e deméritos, por isso os autores melodramáticos se viam obrigados a justificar e definir minuciosamente sua criação. Dessa forma, mantiveram obediência à regra das três unidades5, entretanto buscavam dialogar com os diversos públicos que compunham o cenário teatral da época, através de uma linguagem mais popular e comunicativa. Um dos objetivos deste gênero, no início de sua criação, era conciliar a tragédia e a comédia em torno de um enredo cuja temática geralmente se apresentava violenta e complicada.

A segunda fase é a do Melodrama Romântico (1823-1848), em que observamos uma grande mudança na mentalidade coletiva, com o declínio dos valores tradicionais, cívicos e guerreiros (Thomasseau, 2005: 63). Novos elementos são introduzidos na temática e na tipologia do gênero, como a transformação dos bandidos, antes banidos e rechaçados, em heróis, uma vez que novos tipos sociais se popularizavam através dos romances. Uma tônica é dada ao exagero e à desmedida, a paixão amorosa inflama o palco. Algumas temáticas, impensáveis

5

A regra das três unidades diz respeito à interpretação da Poética de Aristóteles pelos doutos franceses do século XVIII. Nestes estudos, intelectuais franceses comentavam sobre os quesitos necessários para a construção dramática: obedecer às unidades de tempo, espaço e ação.

(28)

são mais essenciais e o enredo passa a apresentar diversos lugares e ambientes, através de telões pintados.

A fase posterior é chamada por Thomasseau de Melodrama Diversificado (1848-1914) e subdivide quatro inspirações melodramáticas deste período. A primeira delas é o Melodrama Militar, Patriótico e Histórico, influenciado pelas guerras do Segundo Império e pela retomada da expansão colonial francesa. Este tipo romantiza e narra episódios históricos dentro do contexto melodramático, apresentando à população uma versão particular dos fatos. Nestes textos, um ofegante episódio de perseguição conseguia atrair e conquistar muitos espectadores aos bulevares da época.

As questões de família serão abordadas no Melodrama de Costumes e Naturalista6, as quais, a partir da ascensão de novos estratos sociais, apresentam um diálogo, principalmente amoroso, entre as diferentes classes sociais. Neste tipo de melodrama, as reivindicações dos movimentos anarquistas, dos protestos operários e a ascensão do socialismo, influenciaram sobremaneira as histórias deste período. Nas fases anteriores, a possibilidade de uma pessoa pobre melhorar sua condição financeira era algo impensável e somente nesta se tornou possível. Este tipo de situação correspondia diretamente às necessidades e interesses do público, e se encaminhou, em muitos textos, para uma estética naturalista. Na qual a representação visa dar a ilusão de realidade e a interpretação dos atores também, inclusive é comum dizermos que há uma quarta parede, invisível, no palco, que separa os espectadores dos artistas.

Outro tipo, da divisão proposta por Thomasseau, era o Melodrama de Aventura e de Exploração, influenciado pelas invenções científicas e os novos territórios que a tecnologia possibilitou descobrir. Os espaços “exóticos”, como as Américas, exerceram grande fascinação nos autores, por criar uma atmosfera de epopeia e de perigos, cenário ideal para as intrigas do gênero. O último tipo é o Melodrama Policial e Judiciário, época de popularização dos jornais policiais que

6

“A representação naturalista se dá como sendo a própria realidade, e não como uma transposição artística do palco. B. DORT a define como ‘tentativa de construir a cena num meio coerente e concreto que, por sua materialidade e fechamento, integra o ator (ator-instrumento ou ator-criador) e propõoe-se ao espectador como a própria realidade”(1984:11)”(PAVIS, 2005: 261)

(29)

relatados por estes jornais, explicitando e intensificando uma característica presente nesta dramaturgia: o herói, perseguido injustamente, depois de muitas situações desfavoráveis consegue, no último ato, comprovar sua inocência.

Uma importante característica desta dramaturgia é de acompanhar os movimentos teatrais e sociais mais modernos, que a permite perdurar tantos séculos e ser representada até os dias atuais em teatros, circos e nos meios digitais. O diálogo com os espectadores tanto em relação à temática quanto à linguagem é o aspecto motivador dos autores e encenadores deste estilo. Pixerécourt, dramaturgo francês da época de fundação, é conhecido por valorizar os aspectos da encenação de suas peças e por realizar uma comunicação direta e eficaz com o público. Todos estes fatores contribuíram para a perpetuação deste estilo, o qual se adaptou com facilidade a diversos espaços de representação, inclusive ao espetáculo circense.

O enfoque na encenação se deve, principalmente, à simplicidade da estrutura dramática, a qual Ivete Huppes identifica como bipolar, em dois níveis: horizontal e vertical. Horizontalmente opõe personagens representativas de vícios e virtudes, em que as personagens negativas geralmente se mostram mais dinâmicas do que os heróis, porém, ao final da trama, a virtude é reestabelecida e a boa ordem é confirmada. Verticalmente alterna os sentimentos de desolação e desespero com os de serenidade e euforia. A tensão é apresentada pelo conflito principal e se mostra crescente ao logo da história, muitas vezes é suspensa por acontecimentos que se relacionem indiretamente com o curso da narrativa, com o objetivo de distrair a atenção do espectador e aumentar o impacto diante das terríveis ações. As personagens cômicas participam destes momentos e são responsáveis por gerar euforia e apresentar diferentes nuances ao enredo majoritariamente dramático. Uma vez que o esquema básico se apresenta limitado, a criatividade dos autores se focará na construção da intriga, com o objetivo de criar diferentes emoções e sensações, principalmente através da surpresa iminente. A pretensão é envolver a plateia na ilusão teatral através de arranjos visuais e sonoros, além da possibilidade de o autor desdobrar o enredo conforme achar necessário e pertinente.

O número de personagens pode variar conforme a demanda da narrativa, porém há tipos que sempre estarão presentes, tais como o vilão (que pode ser

(30)

desempenhado por mulheres), a vítima, o herói e o bobo. As características físicas e o comportamento de cada tipo7 devem ser imediatamente identificados pelos espectadores e não variam no decorrer da trama, por isso são definidos assim e não como personagens. Um exemplo é o estereótipo do vilão que se veste de preto ou cores escuras, geralmente tem os cabelos negros e o rosto pálido, suas maléficas intenções se mantêm invariavelmente ao longo de toda a história. Pode também haver um vilão cuja aparência é de honestidade e de grandeza e, portanto, se caracterizará de outra maneira, porém seu fim será mais trágico e violento do que o primeiro devido a sua dissimulação. Mesmo quando assim ocorrer, algum outro elemento cênico ou do enredo indicará a falsidade deste tipo, como, por exemplo, a utilização de uma música de suspense na sua entrada. A heroína, em contrapartida, é delicada, bondosa, sensível, sua voz é suave e se veste de tons claros. Estas características criam códigos claros com os espectadores, que se manterão de um melodrama para outro.

Os quatro principais tipos, segundo Jean-Marie Thomasseau, são: o vilão, personagem mais dinâmica da trama, geralmente atua como o principal motivador do enredo. A inocência perseguida (mais comum ser desempenhada por mulheres, mas também pode ser um herói) personagem pura e virtuosa, personificação da moral, sofre as ações impiedosas do vilão. A personagem cômica, responsável por desencadear o distanciamento em relação à história, atuando de maneira oposta à dramática, gera momentos de descontração e euforia. O pai nobre (que também pode ser representado por uma mulher mais velha) resguarda a moral e representa uma autoridade que, devido à idade e a experiência, impõe respeito.

A moral é um dos aspectos mais importantes deste gênero, que, desde sua criação, motiva os autores a criarem obras cujo enfoque é cultivar bons hábitos sociais e culturais. Os valores familiares, relacionados à pátria e à religião cristã são os mais ressaltados nas peças melodramáticas, principalmente através da exaltação das personagens virtuosas em detrimento dos vícios representados pelos vilões e seus companheiros. Os bons costumam gerar uma identificação com os espectadores, apresentam um apreço pelo dever, muitas vezes em detrimento da

7“Há criação de um tipo logo que as características individuais e originais são sacrificadas em

benefício de uma generalização e de uma ampliação. O espectador não tem a menor dificuldade em identificar o tipo em questão de acordo com o traço psicológico, um meio social ou uma atividade.” (PAVIS, 2005: 410)

(31)

própria vontade, pois os interesses coletivos se sobrepõem aos particulares. Os maus, por sua vez, têm a característica de satisfazer os próprios desejos, os quais costumam estar em conflito com alguma outra personagem. Aos oprimidos resta confiar na Providência Divina e na justiça para aplacar as inúmeras desgraças vividas.

Cada uma das fases do gênero apresenta a verticalidade em algum aspecto moral que determinada sociedade precisaria conquistar. Ao colocar em embate personagens boas e más, o autor apresenta valores sociais que deseja suprimir, através dos vícios dos vilões, e exaltar, com os heróis. Thomasseau menciona um trecho do livro Livro dos Cento e Um de Pixerécourt que ilustra, de maneira resumida, os aspectos morais que os autores desejavam atingir:

Não podemos negar ao melodrama a justiça de reconhecer que é ele que nos reconta melhor e mais frequentemente os assuntos nacionais, gêneros de espetáculo que deve ser representado em todos os lugares. Ele dá à classe da nação que mais deles necessita belos modelos de atos de heroísmo, traços de bravura e fidelidade. Ele instrui assim a tornar-se melhor, mostrando, mesmo em meio a seus prazeres, os nobres caracteres desenhados em nossos anais (...). O melodrama será sempre um meio de instrução para o povo, porque ao menos este gênero está a seu alcance. (THOMASSEAU, 2005: 49)

2.3 - O Melodrama no Brasil

A vinda da família real portuguesa para o Brasil, no ano de 1808, promoveu a construção de edifícios teatrais e o costume de frequentar estes espaços começou a se desenvolver entre a população livre.

A identificação das raízes portuguesas do teatro brasileiro é importante para a matéria a ser tratada aqui, porque ajuda a localizar um gosto comum em ambos os países: o gosto que está situado na origem do teatro mais popular da época, ou seja, o melodrama de temática sentimental. Esta tendência tinha chegado de Portugal através da França e veio para o Brasil mais rapidamente em função das excursões das companhias teatrais. As canseiras das viagens transatlânticas tinham que encontrar compensação à altura. Não admira, portanto, que as companhias escolhessem o repertório de aceitação mais imediata e com essa iniciativa acabassem influenciando a sedimentação de valores estéticos. (KIST, In. FARIA, 2012: 75 e 76)

(32)

Reconhecer as raízes portuguesas, com fortes influências francesas, dessa vertente do nosso teatro contribui para compreender alguns pontos, principalmente referentes ao gosto popular. Ivete Susana Kist, no texto citado acima, menciona algumas obras de dramaturgos do século XIX, que não são tão reconhecidas pela história teatral convencional, como tendo sido influentes para o estabelecimento da nossa dramaturgia. Entretanto começa descrevendo a importância de Gonçalves de Magalhães, o conhecido precursor do teatro romântico.

O posicionamento estético de Magalhães oscilava entre a tendência neoclássica (representada pela tragédia) e o romantismo (através do drama histórico e, sobretudo, do melodrama). Os autores dramáticos deste período que mais buscavam dialogar com o público apresentavam uma tônica melodramática acentuada, e os outros, que se propunham satisfazer um público mais erudito, acharam na tragédia maior substrato.

Tanto o melodrama como o drama histórico se distanciam da contenção clássica, que dita as regras da tragédia. Desenvolvendo histórias cheias de meandros e de surpresas, ambos requerem cenários complexos. Ficam para trás os austeros paços reais das tragédias mais conhecidas, o despojamento do espetáculo, a ação concentrada no tempo e no espaço, envolvendo um número pequeno de personagens, pouca ação física e linguagem versificada. Ao contrário, os personagens dos dramas e melodramas se deslocam por espaços variados e têm nos arranjos cênicos um forte aliado para caracterizar os sentimentos que os envolvem. Iluminação, movimento, figurinos e múltiplos elementos plásticos são convocados para compor cenários impressionantes. (KIST, In. FARIA, 2012: 78)

Luís Antônio Burgain é um exemplo de autor que buscava conciliar a encenação de suas peças com o gosto popular dos espectadores, para isso, escreveu muitos dramas históricos e melodramas. Suas tramas se localizam em épocas passadas e em geral são inspiradas em assuntos portugueses e brasileiros, o que bastava para a temática ser considerada nacional, uma vez que a maioria dos escritores da época não ambientavam suas tramas no Brasil. Outra característica relevante para popularização de seu trabalho era o fato de alternar momentos de seriedade com os de comicidade, descontraindo e dando um especial colorido à encenação. Outro autor deste período foi Martins Pena, que antes de se dedicar às comédias, escreveu cinco melodramas, porém, ao contrário do que se imagina, não havia nenhuma abertura cômica. Ele nomeava suas peças de “dramas”, apesar dos

(33)

indícios melodramáticos, entretanto neste período era comum haver esta confusão, por ser o momento de estabelecimento do gênero e também devido a um relevante episódio:

A confusão atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. Em 1836, quando João Caetano encenou dramas de Victor Hugo e Alexandre Dumas (O Rei

Se Diverte e A Torre de Nesle, respectivamente) e melodramas como Trinta Anos ou A Vida de um Jogador e Os Seis Degraus do Crime, o primeiro

crítico teatral brasileiro, Justiniano José da Rocha, colocou-os todos sobre a mesma rubrica de dramas românticos. Assim, não admira eu nossos primeiros autores dramáticos importantes, Luís Carlos Martins Pena e Luís Antônio Burgain, tenham escritos melodramas, chamando-os de dramas. (KIST, In. FARIA, 2012:78)

Esta ausência de clareza entre os estilos dramatúrgicos era muito comum também no ambiente circense, uma vez que muitos melodramas são chamados até hoje de dramas pelos artistas. Não havia a necessidade de nomear e seguir os padrões de determinada dramaturgia, mas de absorver aquele material, ressignificá-lo e apresentar ao público, despertando-o o interesse. Dessa forma criavam os dramaturgos circenses, cuja autoria e definição de gênero, eram para eles secundários, uma vez que o que importava mesmo era a relação com o público.

Voltando ao teatro e autores representados nos edifícios teatrais, o que era mais apreciado na obra de Burgain era a maneira incrível de alternar momentos cômicos com dramáticos, resultando disso uma maior predileção do público. Outros autores como Antônio Gonçalves Teixeira e Souza, Antônio de Castro Lopes, Francisco Antônio de Vernhagen e Pedro José Teixeira também participaram do advento e estabelecimento do teatro romântico no país, oscilando entre o gosto antigo da tragédia neoclássica e os dramas e melodramas.

O melodrama passa a oferecer, para um público distante da linguagem cênica de palco, um espetáculo total, no qual a representação tem importância equivalente à história e com ela entrelaça quatro sentimentos básicos: o medo, o riso, o pesar e o entusiasmo. Principalmente por ser um espetáculo que busca envolver emocionalmente os espectadores e lhe manter atento e envolvido, a encenação e o texto se aliam a fim de obter sucesso junto ao público. Os autores citados acima tiveram que aceitar esta demanda popular e, para isso, mudanças significativas no enredo e no espetáculo foram necessárias. Este período foi bastante relevante para

(34)

a construção da identidade cultural do país que, ao dialogar com o gosto popular, tornou a difusão do teatro mais fácil.

Nesse sentido, cabe ressaltar a importância da comédia para o estabelecimento das artes cênicas brasileiras. Neste momento a representação era inspirada no Iluminismo francês tanto no que diz respeito à função pretendida (através da ideia de adensamento cultural e tentativa de civilizar povoações diferentes), quanto à forma artística. Isto ocasionou um grande descompasso, pois nem o contexto histórico e nem essa forma artística faziam parte de nossa realidade brasileira. Os princípios liberais da Revolução Francesa estavam distantes da sociedade brasileira, além de a população ter pouca relação com a representação cênica de palco, embora os autores teatrais conhecessem muito bem a arte europeia. Não por acaso o gênero teatral que mais floresceu entre nós foi a comédia, estruturalmente apoiada na fratura, nos equívocos e na instabilidade de suas relações, tal como o contexto brasileiro se apresentava.

A comédia de costume, como viria a ser chamada, versava sobre os hábitos da época, satirizando alguns pontos frágeis da nossa cultura em formação. O século XIX, no Brasil, foi um período de muitas transformações relativas à política, a questões sociais e culturais, até mesmo relacionadas à estruturação física das capitais. Foi o momento da conquista da independência, abolição da escravidão, consolidação de um regime democrático, e a comédia foi para muitos uma maneira de comentar os aspectos sociais abalados por estas mudanças. A comédia tinha mais liberdade do que o drama para abordar assuntos diversos, favorecida pelo tom jocoso e despretensioso. Além disso, e assim como os melodramas, eram preferidas pelo grande público e se desenvolveram de modo mais constante no nosso país.

Melodramas e comédias foram os gêneros dramáticos mais apreciados por grande parte da população brasileira do período e fundaram alguns dos princípios da arte representativa nacional. Podemos dizer que não era algo novo e totalmente desconhecido da população, pois neste período também começaram a chegar os circos europeus. Antes disso havia alguns artistas que apresentavam números de variedades, superação humana e pantomimas em feiras e festas populares. Herdeiros da commedia dell’arte, apresentavam um espetáculo variado, em que habilidades humanas eram testadas e havia o momento da encenação de histórias,

(35)

A commedia dell’arte italiana girava em torno de figuras cômicas e havia sempre um casal de namorados, que dialogavam com o gosto posterior pelo melodrama e por histórias cujos conflitos giram em torno da dupla. Na origem desta manifestação artística utilizavam-se máscaras, porém no circo, anos depois, os tipos serão caracterizados sem esse adereço, salvo pela pequena máscara do palhaço, com seu nariz vermelho. A interpretação dos atores circenses é bastante estilizada e esquemática, remontando a esta origem popular europeia.

Fernando Neves8, em entrevista concedida à dissertação de mestrado de Fernanda Jannuzzelli, comenta sobre as “máscaras” criadas para o circo, cuja origem remonta à commedia dell’arte italiana. Apesar de não ser inventada a partir de um objeto, Neves comenta que a “máscara” circense seria formada a partir da maquiagem, dos adereços e figurinos para caracterizar determinado tipo. Os circenses, além de recriá-las à sua maneira, acabavam adaptando para a realidade de cada país, transformando de acordo com os tipos locais. Como um exemplo, Fernando menciona a do negro criada no Brasil: o rosto pintado, a peruca, utilização de luva e meias pretas. Este figurino era padrão de um circo para outro, realizava uma identificação imediata com o tipo representado, e por isso Neves o chama de “máscara”.

Os melodramas e comédias, representados nos teatros brasileiros do começo do século XIX, bem como os saltimbancos influenciaram sobremaneira a construção do espetáculo circense do final do século XIX e começo do XX. O circo-teatro utilizará esta dramaturgia, que já estava próxima da população brasileira, para construir suas histórias e apresentações, visando dialogar com os interesses e o gosto de seu público.

2.4 – Os tipos do circo-teatro

Este trabalho se destina a estudar a personagem cômica das peças melodramáticas, geralmente representada por um empregado ou uma personagem humilde. É muito comum nestas tramas haver personagens ricas e pobres em

8

Fernando Neves nasceu no Circo Teatro Pavilhão Arethuzza e viveu durante sua infância neste circo.

(36)

contraste, e o cômico, na maioria das narrativas, integra o último núcleo social. A presença do cômico demonstra outra compreensão dos acontecimentos cênicos, menos grave e intensa, tal como expresso pela maioria das personagens dramáticas. Sua fala é coloquial e costuma ser carregada de algum sotaque regional, destoando, dessa forma, da maneira formal de se expressar, comum às demais personagens. Geralmente este tipo, dentro do contexto melodramático, é interpretado pelos palhaços da primeira parte do espetáculo circense (em que se apresentam números artísticos variados), que não seja o mais importante da companhia. No Circo Nerino, o excêntrico principal, Picolino, não participava dos dramas, por ser uma figura muito característica da primeira parte, porém costumava protagonizar as peças cômicas. Os clowns que faziam dupla com ele, Arthur Fernandes, Júlio Avanzi, Hernani Avanzi e Walmir dos Santos, eram os que geralmente representavam as personagens cômicas dos melodramas.

Há de se levar em conta que o intervalo entre a primeira e a segunda parte do espetáculo era curto demais para tirar a maquiagem, a roupa de palhaço e caracterizar outro personagem. E também não é muito bom o palhaço do circo representar papéis dramáticos. O Arrelia conta que ele estava representando Jesus em A Paixão de Cristo quando um moleque o reconheceu e gritou: - O Cristo é o Arrelia! O Cristo é o Arrelia! (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 82)

Podemos dizer que existe uma grande semelhança entre os palhaços da primeira parte, e daqueles que protagonizavam as peças cômicas, com as personagens cômicas dos melodramas. Bolognesi, ao traçar a etimologia da palavra clown, indica características comuns entre estas duas figuras cômicas: “Sua matriz etimológica reporta a colonus e clod, cujo sentido aproximado seria homem rústico, do campo. Clod, ou clown, tinha também o sentido de lout, homem desajeitado, grosseiro (...).” (BOLOGNESI, 2003: 62). Ainda de acordo com este autor, na pantomima inglesa o termo designava o cômico principal com funções de um serviçal. E no contexto circense se refere ao artista que participa de cenas curtas explorando sua tolice. Estas definições se aproximam do perfil tanto do palhaço quanto da personagem cômica do melodrama, ambos representados no Circo Nerino, na primeira e segunda parte do espetáculo respectivamente. Ambos suscitarão os momentos engraçados a partir do seu jeito desajeitado e tolo, como

(37)

sublinhado pela definição acima. O palhaço despertará o riso, essencialmente a partir da sua desenvoltura corporal, e o outro provocará o chiste através da fala e os equívocos decorrentes dela.

A primeira parte do espetáculo, no Nerino e em muitos circos do período, se destinava a apresentação de números variados de risco e superação humana, alternados com entradas de palhaços, em um amplo espaço cênico explorado em diversas as direções. A lona favorecia a verticalidade necessária à execução de alguns números, tais como trapézio, acrobacias, a corda bamba, atrações estas bastante conhecidas neste circo. Nas fotos abaixotemos algumas ilustrações da primeira parte do espetáculo do Circo Nerino, as quais nos ajudam a compreender alguns aspectos abordados por este tipo de espetacularidade, majoritariamente

(38)

Figura 8 - Fotos da primeira parte do espetáculo do Circo Nerino Fonte: Acervo pessoal de Walmir dos Santos

(39)

Figura 8 A – (Esq.)O atirador de facas: Gaetan Ribolá e Amandine Ribolá. (Dir.) Alice Avanzi Silva, na corda bamba, e Hernani Avanzi.

Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. (Esq.) 22. (Dir.) 234.

Figura 8 B – (Esq.) Acrobacia: Gaetan Ribolá (no alto), Alice Avanzi Silva (no ar) e Roger Avanzi. (Dir.) O equilibrista: José Américo e Vick Américo.

(40)

A extensão do espaço determina uma linguagem artística transversalizada, na tentativa de abarcar e comunicar com todos os espectadores presentes. Diversos elementos do espetáculo terão este objetivo, tais como: o figurino dos artistas, através do colorido, paetês e adornos; as atrações que costumam explorar diversas direções do espaço; a interpretação diferenciada e estilizada nas peças de teatro; os números de palhaço, que exploram ações cômicas e usam uma maquiagem e roupa exageradas.

Na primeira parte do espetáculo, as trocas de aparelhos dos números acrobáticos costumam ser executadas na frente do público. Nestes momentos, o palhaço entra para distrair os espectadores enquanto os técnicos realizam a montagem dos equipamentos. A construção artística se torna então aparente, mas isto não diminui o entusiasmo e expectativa em relação aos desdobramentos do espetáculo. A apreensão do público se dará através dos números de risco e superação humana, executados em ordem progressiva de dificuldade. A figura do apresentador, junto com a música, ressalta as dificuldades e emoções diante dos números que desafiam os limites, principalmente corporais, do homem.

Todos estes elementos caracterizam a estética circense de maneira particular, ao criar um espetáculo essencialmente visual, que ressalta as emoções e sensações. Através da oposição entre o sublime e admiração, dos números de habilidade; e do grotesco e risível, dos números de palhaço, o espectador percorrerá diversos e opostos sentimentos. O espetáculo apresenta ao imaginário do público habilidades humanas impensáveis, atuando na fantasia e revelando novas possibilidades ao cotidiano limitado.

A representação teatral, realizada usualmente na segunda parte do espetáculo, está inserida dentro deste contexto específico que impõe aos artistas alguns procedimentos. Como a estilização da linguagem cênica, necessária para estabelecer uma comunicação com os diversos espectadores que se encontram amplamente distribuídos no espaço. A interpretação dos atores, de tipos reconhecidos pela plateia, é ampliada e visa criar uma comunicação direta e clara. Faz o público acompanhar a história de maneira onisciente, porém sendo constantemente surpreendido pelos desdobramentos inimagináveis, deixando-o

(41)

Para criar este vínculo, os atores utilizam a prática chamada de triangulação com os espectadores, descritas por Carlos Alberto Soffredini9da seguinte forma:

O público é o vértice de maior peso no triângulo. É o CÚMPLICE na representação. É o CENTRO dela. É para ele que se CONTA a história, portanto ele é o dono dessa história. Muitas vezes ele conhece dados dela que ou um ou os outros dois vértices do triângulo (os atores) desconhecem. Ele conhece o caráter e a intenção de cada personagem, uma vez que cada ator, ao entrar em cena, deve ter como meta REVELAR o seu personagem, a intenção dele e, é claro, a sua ação dentro da ação (história). A partir dessa CUMPLICIDADE com o público, dessa CENTRALIZAÇÃO nele, dessa DOAÇÃO a ele da ação (história, representação) é que se estabelece a base do jogo teatral. Os gregos já sabiam disso. E as velhas peças românticas abriam margem para esse jogo através do A PARTE, que, em última análise, é a forma tosca a partir da qual, elaborando, nós chegamos ao processo do TRIÂNGULO.

E infinitas são as possibilidades desse jogo. Uma delas é a CIÊNCIA: por exemplo, o MOÇO declara seu amor para a MOÇA. Mas o público já está ciente de que o MOÇO está mentindo (por revelação anterior ou no momento mesmo da ação). Dessa forma, a posição de cada um dos personagens, a sua ação e reação ficam ampliadas, teatralizadas. Outra é a SURPRESA: por exemplo, a um dado momento se descobre que o MOÇO está mentindo para descobrir algo que a MOÇA esconde (de que o público pode ter ciência ou não). Dessa forma os personagens mudam de repente, teatralmente, de posição perante ao público. (SOFFREDINI, 1980: 4)

Sendo corroborado por Rubens Brito, que participou das primeiras pesquisas de Soffredinni junto aos circos de periferia:

Conseqüentemente, a triangulação propõe ao ator um tipo de interpretação no qual não basta que ele “seja” a personagem, mas que ele “seja” a personagem e a revele para o público. Essa é a razão pela qual Soffredini remete esse fenômeno ao teatro brechtiano. (...) A triangulação nas peças circenses é explícita e executada com muita naturalidade. O espetáculo se desenvolve de forma a incluir a platéia no jogo cênico, especialmente nas comédias; nos dramas se observa o mesmo fenômeno, embora a técnica triangular se atenue em benefício da objetivação da “dramaticidade” do enredo. (BRITO, 2006: 82)

A representação de circo-teatro está estreitamente relacionada com a criação de efeitos, previamente articulados, visando criar determinadas reações no jogo com a plateia. Para isso, a forma como o ator se colocará em cena, a sua entrada e saída, a pausa dada para determinada fala, a gestualidade do tipo representado, tudo isso será bem ensaiado e pensado. A encenação é teatralizada em diversos âmbitos, principalmente no que concerne à forma, e a triangulação explicita isto. É

9

Carlos Alberto Soffredini foi umdramaturgo e diretor brasileiro muito ligado à cultura popular brasileira, especialmente ao circo brasileiro.

(42)

interessante observar que os dramas, apesar de manterem essa vertente interpretativa, fazem-no de forma atenuada, conforme explicitado no texto acima de Rubens Brito.

O figurino no melodrama circense também é bastante exuberante, por dialogar, de maneira evidente, com as características dos tipos e sublinhar os principais traços da figura ficcional. Isto permite compreender visualmente a trama dentro deste amplo espaço circense. O mesmo efeito é buscado pela cenografia, através dos telões pintados. O cenário é bidimensional e representa, de maneira esquemática, as diversas locações do enredo, tal como era feito nos edifícios teatrais das principais cidades brasileiras do período. A entrada e a saída das personagens são trabalhadas visando um efeito específico para a representação, do qual os artistas têm total consciência. As personagens boas e protagonistas, por exemplo, ocupam o centro do palco, enquanto os vilões deslizam pelas margens da cena.

Novamente reforçamos que estas características teatrais sevem para dialogar com o espaço em que estão inseridas, mantêm relação com a linguagem utilizada na primeira parte do espetáculo circense e desenvolve uma comunicação eficaz com um público, pouco acostumado às casas de teatro. Esta mesma linguagem foi apropriada pelos programas de rádio e televisão, transformada de acordo com as particularidades do meio, porém mantendo a característica fundamental de realizar uma difusão cultural passível de ser compreendida por um vasto e heterogêneo público.

O teatro segue algumas convenções precisas como as descritas acima, tanto nas peças encenadas nos circos quanto nos edifícios teatrais da época. Era muito semelhante à forma da encenação e alguns recursos utilizados, como, por exemplo, a caracterização dos tipos de personagens. A partir das décadas de 1920 e 1930 os circos-teatro passaram a representar uma peça diferente em cada apresentação, visando com isso permanecer mais tempo na mesma cidade. Este foi um momento importante em que começou a se estabelecer alguns procedimentos para abarcar a rotatividade dos textos. Os atores passaram então a interpretar os mesmos tipos de papéis, de uma peça para outra, geralmente condizente com o seu temperamento

Referências

Documentos relacionados