• Nenhum resultado encontrado

A análise das três peças dentro do universo circense, particularmente do Circo Nerino, possibilitou uma maior aproximação com as personagens cômicas dentro do contexto melodramático. Vimos que tais figuras são tão importantes quanto as demais para criar uma trama mais complexa e interessante. Havia muitas peças, representadas nos circos-teatros no começo até meados do século XX, que não apresentavam comicidade alguma. Geralmente estas tramas são idealizadas e se distanciam da realidade imperfeita da vida. As personagens são verticalizadas em suas obstinações pessoais e não se modificam ao longo da história. Quando a personagem cômica está presente, ela traz uma dinâmica e uma leveza à narrativa, que interfere até mesmo na caracterização das demais, principalmente por humanizá-las de alguma forma.

O surgimento deste tipo de teatro ocorreu dentro de um contexto de formação de valores e estabelecimento cultural, apesar de ter se transformado muito desde então. Lugares longínquos e povos díspares foram agrupados na então criada nação brasileira, tal como a conhecemos atualmente quanto à extensão territorial, língua, costumes e valores. O branco europeu, com o espírito de colonizador e de quem quer lucrar por meio da terra, impôs sua cultura subjugando o restante da população, formada principalmente por índios e negros. Através do teatro, e mais à frente também no espetáculo circense, os europeus conseguiram transmitir sua cultura e valores. No entanto, a cultura dos povos subjugados tem relevância fundamental e estruturante na formação do povo brasileiro, além de interferirem e modificarem aspectos dramatúrgicos. A dramaturgia de circo-teatro do período estudado, que muitas vezes perdura até os dias atuais, apresenta esta raiz histórica.

Controvérsias à parte, o fato é que o surgimento do circo-teatro veio ligar definitivamente a história do circo à história do teatro no Brasil, tanto pelo ingresso de companhias de teatro nas empresas circenses como pela disseminação das representações teatrais por todo o país. As companhias montavam peças portuguesas, histórias bíblicas, adaptações de romances franceses, tudo que pudesse atingir e comover as platéias do interior de um país tão heterogêneo como o Brasil. (PIMENTA, 2004: 23 e 24)

Percebemos, de acordo com o trecho citado de Daniele Pimenta, que a história do teatro circense sempre teve algum diálogo com o teatro realizado dentro dos edifícios teatrais das principais cidades brasileiras. Em ambos os contextos, as figuras cômicas tinham grande importância para o melodrama, responsáveis por distanciar o espectador da identificação proposta por este estilo dramatúrgico. Os teóricos do riso, elencados para este estudo, nos deixam claro que o cômico geralmente se relaciona com algum defeito do homem, com as partes baixas e inferiores, e o primeiro aspecto motivador é o distanciamento emocional. Como o exemplo a relevante participação de Tico-Tico no enredo de A Mestiça, interferindo na identificação sentimental do público e completando a narrativa.

Por mais que a função dentro da trama se assemelhe entre as personagens cômicas, ela assumirá diversas facetas, como observamos no decorrer das análises das três peças que integram este trabalho. Em cada uma das encenações, a comicidade terá características particulares, sempre em consonância com as personagens que a suscitam e com as características específicas das narrativas. Elas materializam a comicidade possível para aquele enredo e são importantes para contar aquela história particular. Este trabalho aborda tipos diferentes de melodramas (dois amorosos, em perspectivas diferentes, e outro heroico), que muito nos ajudaram a compreender a temática pretendida.

Em ...E o Céu Uniu Dois Corações Juca apresenta uma ingenuidade e inconsciência de seu defeito na fala, que o tornam engraçado, divertido e leve. Estas características combinam com o tipo de melodrama em que está inserido: amoroso, cujo foco da narrativa está na união dos jovens amantes. É uma trama que narra o amor puro e impossível de um casal, separado por sua família. Este amor é desprovido da parte carnal e material, pois não chega nem mesmo a se concretizar, de tão sublime e elevado. Este tipo de narrativa vai ao encontro de um valor muito propagado pelo gênero melodramático, de que o amor “verdadeiro” é maior do que sua realização. Trata-se de uma trama arquetípica, por apresentar relações que poderiam ser encenadas em diversas épocas da história, sem se tornarem datadas. Talvez por isso seja representada com êxito até os dias atuais nos circos-teatros brasileiros. Podemos dizer que se trata de uma versão nacional para o conhecido

Juca combina com esse contexto apresentando uma comicidade leve e despretensiosa, por suas piadas serem, basicamente, relacionadas a sua dificuldade com a fala e por sua maneira de agir. É um moleque que tem atitudes infantis, sem muita reflexão, apenas motivadas por sua vontade. Esta, muitas vezes, se envolve questões pequenas, quando comparado às das demais personagens, como seu aborrecimento diante do descaso de Neli depois que começara a namorar. Esta é uma preocupação ínfima se comparada com a importância da realização do amor entre os amantes, que chegará a lhes custar a vida.

Em Jerônimo, o herói do sertão, apesar de encontrarmos uma complicação amorosa também, o foco do enredo será o herói imbatível contra os vilões. Haverá confrontos com agressões físicas e ameaças com armas entre o coronelismo (representado pela dupla Maria José e Ambrósio) e o justiceiro do sertão. A comicidade de Saci será criada através de sarcasmo e ironia, que combinam com as tensões apresentadas pelo enredo. Saci demonstra ser valente, por empunhar uma arma e trabalhar ao lado de Jerônimo e, em muitos momentos, a comicidade aparece quando está denegrindo as personagens, principalmente más. Há, portanto, uma clara diferença em relação à personalidade e jogo cômico de Juca, por um se tratar de um ingênuo e o outro ser esperto e zombeteiro.

Tico-Tico em A Mestiça é quase uma mistura entre as duas personagens cômicas, no sentido de apresentar uma ingenuidade combinada com seu jeito travesso de moleque da fazenda. A história desta trama abordará a conquista amorosa do feitor com a Mestiça, porém com uma tônica diferente da peça ...E o Céu Uniu Dois Corações. Não se trata de um amor irrealizável e idealizado, mas algo possível e concreto, mesmo com todas as dificuldades e percalços. A Mestiça é uma mulher conquistadora e sensual, bem diferente do perfil singelo de Neli. Dessa forma, Tico-Tico não será tão inocente quanto Juca, se mostra mais malicioso e brincalhão, porém não terá o sarcasmo apresentado por Saci.

Observamos, a partir desta breve análise, que a personagem cômica combina com as características do enredo melodramático e dialoga com elas, materializando a comicidade daquele texto específico. Em todas as tramas estudadas essas personagens desempenham um importante papel, articulando, complicando as problemáticas e diminuindo a tensão dos acontecimentos mais relevantes. Geralmente são personagens que têm a facilidade de transitar entre os núcleos do

bem e do mal e por isso conseguem articular muitas situações, levando e trazendo informações importantes. Como Tico-Tico, que está presente em quase todas as cenas resolvendo as problemáticas do enredo e dinamizando os acontecimentos. Por isso, não podemos dizer que se trata de personagens secundárias, como em alguns casos são classificadas, reconhecendo apenas como protagonistas o casal de enamorados e o vilão.

As três personagens cômicas se assemelham também por integrar uma classe social economicamente menos favorecida, e geralmente desempenham a função de empregado nas tramas, tal como os palhaços. As histórias de circo-teatro costumam ambientar as narrativas em lugares privados de uma elite econômica favorecida, da qual a personagem cômica destoará quanto às atitudes e comportamentos. Suas falas e ações costumam ultrapassar a barreira do decoro e boas maneiras, destoando, portanto, das demais. A comicidade que transparece ao ler os textos se encontra, sobretudo, nas falas. Os gestos e ações cômicas ficam a cargo do intérprete, que geralmente tem uma aproximação com os palhaços e, dessa forma, era comum surgirem ações cômicas que extrapolavam os limites do texto. Um exemplo claro, mencionado neste trabalho, é o sininho de Juca na peça ...E o Céu Uniu Dois Corações, descrita por Walmir dos Santos. Aliás, a improvisação e a criação extratextual são um dos pilares principais do intérprete circense, sobretudo dos cômicos.

A análise de cada situação risível mostra que o engraçado geralmente é suscitado por uma falha humana, alguma quebra de expectativa e às partes inferiores do corpo, bakhtianamente falando. A maneira de se relacionarem com as problemáticas das tramas é responsável por apresentar outra perspectiva às histórias. Torna estes enredos, de heróis e vilões, real e mais verossímil, ao apresentar uma postura mais humana, de pessoas que erram e têm atitudes insensatas e corriqueiras. A dramaticidade das personagens cômicas é bem diferente do tom preponderante nesta dramaturgia, carregado de temas extraordinários e decisórios: o amor impossível que acarreta a morte dos amantes, o justiceiro do sertão que defende o mais fraco, o amor da escrava que derruba barreiras sociais importantes. Todas essas temáticas estão fora do cotidiano comum da maioria das pessoas da plateia. A personagem cômica, portanto, estabelece uma ponte entre os espectadores e artistas/autor da obra.

O momento em que a comicidade está inserida também pode ser relevante, principalmente quando suspende um acontecimento cênico importante e penoso. A interrupção aumenta ainda mais o impacto sobre os espectadores, principalmente porque o público é distraído e quando a situação angustiante voltar a acontecer, será ainda mais forte. Um exemplo disto é o assassinato de Perdinari na peça ...E o Céu Uniu Dois Corações. Neste caso, a interrupção, através do jogo cômico suscitado por Velasco, será responsável por suspender a iminência de morte e, portanto, aumentar ainda mais o impacto quando esta finalmente acontecer.

Este tipo de dramaturgia, de maneira mais ampla, pertence a uma tradição de textos que obedecem a uma construção narrativa bem clara, em que os conflitos dramáticos são polarizados entre personagens boas e más. O que irá diferenciar um enredo de outro será a problemática particular daquela história e as personagens que estarão envolvidas. Este tipo de dramaturgia fez, e ainda faz, muito sucesso no Brasil, sendo amplamente difundida e divulgada. A curiosidade do público será despertada na maneira de contar a história e na progressão dos acontecimentos, pois o desfecho pode, muitas vezes, ser o mesmo, alternando entre o final “feliz” e o trágico. Apesar de, geralmente, ser desvalorizada pela crítica teatral, devido a sua simplicidade estrutural, devemos reconhecer no melodrama a busca por um diálogo estreito com a população brasileira (principalmente no reconhecimento de tipos e comportamentos sociais) e por valorizar a encenação, o contato com público. Disso decorre o fato de ainda ser apreciada, como podemos observar nos circos-teatros atuais, nas telenovelas e nos programas humorísticos em geral. É uma dramaturgia que claramente busca estabelecer uma ponte com questões atuais, assim como o espetáculo circense.

Um exemplo claro a respeito desta ligação estreita com o público foi a polêmica sobre um possível racismo surgido a partir de uma personagem negra da peça A mulher do trem encenada pelo grupo Os fofos encenam. Nesta situação, o grupo teatral resolveu tirar esta personagem da cena e estreitar ainda mais os laços com o seu público, razão pela qual realiza sua arte. Esta situação ilustra bem como os tipos sociais, apresentados nas dramaturgias circenses, são mutáveis e se adéquam à sociedade e costumes de seu tempo.

A relação com os espectadores começa a partir da linguagem escolhida do espetáculo, uma vez que é visada a compreensão e a aceitação positiva do público.

O circo tem uma característica particular neste ponto, pois os elementos populares, aqueles conhecidos pela maior parte da população brasileira, podem ser agregados na construção da apresentação. Desde a música que toca na rádio, até qualquer tipo de referência dos meios de comunicação de massa, tudo é possível de participar do espetáculo, desde que estabeleça alguma ligação com a peça encenada ou com o número de variedades da primeira parte. Como, por exemplo, a encenação da peça Jerônimo, o herói do sertão, uma importante radionovela nacional da época, que apresentava uma música conhecida de trilha sonora. Esta era uma referência unânime para o público de todas as regiões, que apreciava demasiadamente estas apresentações, principalmente por haver este diálogo de consonância com seu gosto. Disto resulta o primeiro objetivo deste tipo de espetacularidade: agradar os espectadores, a ponto de voltarem no dia seguinte e suas arquibancadas estarem sempre cheias.

Outro aspecto a ser consideração relativo à linguagem é em relação ao espaço do circo. Em geral, trata-se de um palco semi-arena que comporta muitas pessoas, mais de trezentas, e exige um tipo de atuação ampla e direta. Os números da primeira parte do espetáculo eram pensados visando atingir visualmente até as últimas cadeiras, e, no teatro, o intérprete tinha que apresentar um gestual, figurino, maquiagem e impostação vocal que também cumprissem com esse objetivo. Isto possibilitou a construção de uma linguagem particular, que, há alguns anos, vem sendo admirada e investigada pelos grupos teatrais contemporâneos, como o Teatro Mambembe, o Grupo Galpão, Barracão Teatro, Os Fofos Encenam, entre tantos outros.

Outro aspecto inerente à linguagem circense tem relação à rotatividade de peças, pois a cada dia se encena um texto diferente. Mesmo que os atores já tivessem ensaiado algumas vezes, o resultado costuma ser de acordo com as possibilidades existentes em relação à figurino, ao cenário, à reprodução exata do texto falado, tudo isto é limitado devido às condições de como era elaborada a apresentação. Com o tempo, o intérprete desenvolvia um jeito particular de representar e se familiarizava com o repertório, daí a importância da definição e estabelecimento do tipo específico de cada ator. Esta questão toca em um ponto crucial do artista circense: por mais que ele planeje e ensaie, a sua performance continua a se construir no momento da representação para o público.

A busca pelo gosto popular não excluí o circo de integrar a cultura brasileira de maneira mais ampla. Muito pelo contrário, por refletir o gosto da maioria e partilhar, de alguma forma, das referências nacionais, podemos reconhecer o espetáculo circense como uma manifestação da cultura popular brasileira por excelência. Mesmo buscando dialogar com as referências majoritárias, os circenses também se inspiravam nas representações realizadas nos edifícios teatrais, como podemos observar através da dramaturgia. Um exemplo claro é a peça Deus lhe pague,de Joracy Camargo, que em 1933 estreava nos palcos das casas de espetáculo construídas nas principais cidades, com Procópio Ferreira no papel principal, e em 1950 era representada no Circo Nerino. Era comum haver o intercâmbio entre os artistas de teatro com os de circo, ligação esta que os livros de história do teatro não mencionam. Como, por exemplo, o episódio em que Grande Othelo tenta se apresentar no Nerino, porém devido a uma série de infortúnios, sua estreia foi adiada. Assim como na entrevista concedida para este trabalho em que Roger menciona sua participação em uma peça de Tchekhov:

Por exemplo, eu trabalhei aqui com Tônia Carreiro. Eu fiz uma peça russa, com ela e outros artistas de primeira classe, aqui em São Paulo, eu trabalhei aqui no teatro com ela. E ela chamava-se... Como é o nome da peça, meu Deus do céu? O jardim das cerejeiras, do russo Tchekhov, não sei o que lá Tchekhov. Bom, eu fazia o mordomo da família. Não era cômico não. E tinha as coisas das cerejeiras, até que compraram aquilo e o mordomo muito velho e tal. E... Só tinha uma palavra que o público ria, como é que era? Eu ia falar com ela e a Tônia dizia para mim: Como você está velho Firs, como ficou velho. E eu dizia apenas, não era comicidade não, era da peça mesmo: É porque faz muito tempo que eu nasci. E o público achava graça dessa fala. E terminava a peça, com o mordomo né? Eles indo embora todos e ele ficava ali, só ficava o mordomo. E ele fazia umas falas bonitas e terminava morrendo, ele morria. Então, era eu que encerrava a peça, o público batia palma, eu levantava e os outros iam entrando. (Entrevista realizada no dia 18/03/2014)

Ao longo da história das artes cênicas no país, sempre houve o intercâmbio e transversalidades culturais entre o circo, realizado em baixo da lona, e o teatro, dos edifícios teatrais. Os exemplos mencionados em relação à dramaturgia e artistas são apenas uma forma de troca, há inúmeras outras que contribuem sobremaneira à ambas linguagens. No que se refere à dramaturgia, observamos haver uma grande semelhança entre os textos das comédias de costumes e do teatro romântico dramático, realizado nos edifícios teatrais, com os melodramas e comédias

circenses. E quanto aos artistas, sempre houve uma troca de aprendizado e saberes através dos convites para apresentações em outros espaços, como o exemplo de Roger e Grande Othelo. Ampliar o conhecimento que se tem acerca do circo e estudá-lo, tal como se estuda o teatro ocidental, é extremamente importante para as artes cênicas, principalmente por se tratar de manifestações artísticas que sempre se relacionaram e influenciaram mutuamente de alguma forma.