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O ensaiador, no Circo Nerino, foi Agenor Garcia, que havia pouco tempo integrara a companhia e realizara modificações significativas na maneira de criar os espetáculos. A mais relevante foi a confecção de um palco, pois até então todas as peças eram encenadas obrigatoriamente no picadeiro. Esta construção possibilitava novos recursos cênicos, como a utilização do ponto, dessa forma, não era mais preciso decorar todas as falas e a companhia conseguia ampliar seu repertório. Havia ainda um segundo palco, ao lado do primeiro, para a música. Tudo isso

possibilitava a criação de cenas paralelas, o que era muito comum nas montagens de Agenor.

Ele era pai de Anita, que casara com Roger, ambos participavam do renomado Circo Garcia e, em virtude do casamento, integraram a companhia Nerino. Anita era considerada uma das melhores atrizes do circo-teatro, segundo o depoimento de Roger no livro Circo Nerino: “Ela tinha a voz límpida e uma grande presença em cena.” (AVANZI e TAMAOKI, 2004: 185). Além de ter sido considerada uma excelente atriz por Procópio Ferreira, que lhe deu um retrato autografado para indicar sua apreciação por seu trabalho. Dessa forma, Anita se tornou uma das principais atrizes do Circo Nerino, e protagonizou junto com Roger inúmeros pares românticos nas peças.

Após a saída de Agenor do Circo Nerino foram montadas poucas peças. Mantiveram o repertório levantado por este importante ensaiador nas apresentações seguintes até o término da companhia. Segundo Walmir dos Santos, em entrevista realizada para esta pesquisa: “Então essas peças permaneceram por muito tempo. Todas que foram montadas por ele. E depois disso, depois que ele saiu, foi montado umas duas ou três peças, não teve mais continuidade com outro repertório. ”

Walmir dos Santos descreveu, na entrevista realizada, o figurino que usava e um objeto especial que o ajudava a construir um jogo cômico com a plateia. Esta caracterização nos ajuda a compreender alguns pontos da interpretação do circo- teatro:

O Juca usava uma calça cumprida, tipo uma calça de velho que é muito grandona, sabe? Com um paletó meio grande, com uma peruca bem bagunçada e usava uma latinha para ficar fazendo barulho. Entrava em cena já estalando a latinha, né? (...) Chegava perto da cega e ele começava a chamar atenção dela tocando aquela latinha, fazendo barulho. Uma tampa de lata que você vai fazendo assim e ela estala. Era isso que a gente fazia. (Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)

A comicidade desta personagem se dava a partir da escolha do figurino, muito comum ao do palhaço da parte de variedades, porém menos exagerado e sem a maquiagem característica. A roupa larga, o desalinho dos cabelos, junto com o barulho da latinha – objeto incômodo para as demais personagens – aproximam a interpretação de Juca realizada na encenação com o palhaço de picadeiro. O barulho incessante gerava, nesta montagem, desconforto nas outras personagens e,

como na cena da igreja narrada anteriormente, momentos cômicos. Juca está sempre envolvido em alguma confusão, e sua comicidade se dará, geralmente, por desestabilizar de alguma forma aquilo que é esperado. Até mesmo a sua fala revela isto, ao impedi-lo de travar uma conversa ininterrupta e dinâmica.

As confusões de Juca não são criadas visando causar intriga e complicar a trama. Pelo contrário, ele é uma personagem simplória que age sem pensar e, por isso, comete vários equívocos. Como na situação das cartas, do penúltimo ato, quando consegue solucionar despropositadamente esta trama complexa e conflituosa. É um jovem ingênuo, simples e tolo, que não demonstra preocupação em dialogar com as condutas sociais, revelada por sua maneira direta de falar sobre assuntos indelicados, como na situação em que reclama sobre a mudança no comportamento de Neli após o começo de namoro. Este aspecto acaba suscitando boa parte da comicidade de sua figura, assim como o fato de ser gago, conforme destacado por Walmir dos Santos na entrevista realizada para esta pesquisa:

O Juca também, coitado, era um inocente também. Ele vivia assim, ele acompanhava a cega lá com a menina, ficava na porta da igreja. Ele é bem ingênuo também, uma figura bem ingênua. (...) Porque ele como gago enche o ambiente e agrada a plateia. Chamava muita atenção a maneira dele gaguejar, disso, daquilo. Era muito bom. Na última cena era diferente. (Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)

A última cena não permitia qualquer tipo de piada ou descontração, devido ao final trágico com a morte dos amantes, e por isso Juca não apresentava qualquer fala. Antes de Walmir dos Santos assumir a personagem, Paulo Sobral, cantor de músicas mexicanas da primeira parte do espetáculo, era o intérprete. Com sua saída do circo, Walmir, que atuava como ponto, assumiu e substituiu com facilidade o papel, por conhecer muito bem o texto. A construção da personagem já estava pronta, seu o trabalho foi o de se apropriar da criação e torná-la verossímil na sua interpretação. Este é um procedimento comum dos atores de circo-teatro, assim como seguir as proposições feitas pelo ensaiador e dramaturgo. O ator deve se guiar por estas indicações e criar uma interpretação que dialogue com o contexto, como no caso do figurino e da latinha, propostas feitas pelo ensaiador Agenor Garcia.

Ali foi criado mesmo pelo ensaiador, porque às vezes tem muita peça que ela vem com observação. No texto tem alguma observação referente ao que você deve fazer. Pode ser que nessa também tivesse: “O gago deve aparecer com isso assim. Qualquer coisa.”. Mas eu acho que ali inclusive que aquela da latinha deve ter sido uma criação, porque ele entra com a latinha e sai com o sino. Quer dizer, o padre tomou a latinha dele e então ele ficou bravo, tomou o badalo do padre, que é o sino. E ele fala: “O padre tirou minha latinha, e eu roubei o badalo dele”. Quer dizer isso são situações, criadas. Ajudam a criar, tem muitas coisinhas que na hora, vem assim a hora. Uma coisa que está ali dentro e a plateia gosta. (...) Às vezes num ensaio dá aquele estalo, e quando chega à noite e a gente faz. (...) A gente vai fazer e lembra que tem que ter, porque agradou a plateia, né? (Entrevista com Walmir dos Santos, realizada dia 04/02/2015)

A latinha possibilitou a criação desta situação particular no Circo Nerino, extratextual, que funcionava muito bem no jogo com os espectadores e por isso foi incorporada ao enredo. Dialogar com o público é uma das premissas desta arte, comentada anteriormente e agora confirmada por Walmir, sendo boa parte do foco de atenção do ator e artista circense. Uma arte que propõe uma linguagem direta e clara, cuja função é entreter e se relacionar com o gosto dos espectadores.

O cenário é outro ponto que chama a atenção do público, principalmente porque nesta peça há muitas mudanças sugeridas pelo autor, como o bar da primeira cena, a casa de Neli e depois de Alberto, a frente de uma igreja e a apoteose do final. Todos estes lugares eram ilustrados através de um telão pintado no fundo e alguma mobília, conforme mencionado por Walmir na entrevista cedida à pesquisa. Os edifícios teatrais desta época também costumavam apresentar, como parte fundamental do cenário, telões pintados. Na peça analisada a casa da Neli, por ser a mais simples, só tinha uma mesa e duas cadeiras, já a de Alberto era mais sofisticada, com poltronas e adornos. Dessa forma, podemos observar que o cenário ilustrava os ambientes de maneira bastante concreta e não só ilustrativa, como com os telões.

O espectador é contemplado com a apoteose final, através do encontro dos amantes, para a tranquilidade do público emocionado com a tragédia passada.

APOTEOSE

Cenário: Céu. Uma escada de nuvens. No topo está Neli, vestida de noiva. Desce vagarosamente a escada e vai à coxia, estendendo a mão e trazendo Alberto. O par sobe a escada e uma porta no céu, em forma de coração vai se abrindo. Entram, olham-se e a porta se fecha. (PIMENTA, 2005: 369)

A apoteose se refere a esta ‘imagem’ que finaliza o espetáculo. Não se trata necessariamente de uma imagem como uma fotografia, mas de uma pequena ação que condense o desfecho da história. A apoteose da montagem do Circo Nerino era um momento de grande destaque e importância. Roger Avanzi, durante a entrevista realizada para este trabalho, descreve este momento e a reação do público:

Nós fazíamos uma apoteose bonita, tinha um palco já naquele tempo. A moça morre, o rapaz vai pegar o cínico e o cínico atira nele, ele morre também. Mas vai se arrastando até onde está a esposa dele, a Neli. Cai por cima dela: “Neli, Neli” e fica morto, os dois mortos. Aí a luz rapidamente apaga e acende. A Neli já é outra moça que está imitando a Neli na cama. E ele, naquela mesma posição, sai pela cortina. Meu sobrinho entrava e ficava naquela posição. Então o povo via os dois ali, para os dois aparecerem na apoteose. Apoteose muito bonita. Nós fazíamos dois corações grandes, onde a gente entrava assim no meio, não entrava o corpo todo não, meio corpo, do lado e do outro. E ele ficava chamando: “Neli, Neli”. E aqueles corações iam andando assim, e eles iam andando dentro dos corações, até os corações se unirem. Era muito bonito, agradava muito e era o fim da peça. (Entrevista realizada com Roger Avanzi em 18/03/2014)

A apoteose do Circo Nerino, além de encerrar o espetáculo de uma maneira reconfortante para o público, apresentava o elemento mágico da saída de Alberto e sua aparição em seguida com Neli se unindo nos corações. Isto ocorria sobreposta à imagem de Alberto caído morto em cima da amada na cama, realizada por outro ator. Gerava muita admiração no público, como um número de mágica, o que agradava e finalizava de uma maneira bonita em meio a tantos acontecimentos tensos. A apoteose também é um recurso que observamos em outros estilos dramatúrgicos como com o teatro de revista, que fora muito popular nesta época. Porém costumava ser apresentado majoritariamente nos edifícios teatrais das principais cidades brasileiras.

4 – JERÔNIMO, O HERÓI DO SERTÃO