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Tico-Tico é a única personagem cômica da peça, responsável por proporcionar características e momentos de descontração à trama. É um jovem escravo negro da fazenda de Gonçalves, muito amigo de Mestiça e de Pai João, que gosta de conversar e se relaciona muito bem com quase todas as personagens. No

Circo Nerino foi encenado por Walmir dos Santos que descreve o figurino utilizado da seguinte maneira:

Quando eu fazia o Tico-Tico eu me pintava daqui para cima. Porque aqui eu usava camisa fechada, não é? E o rosto todo pintado. E a peruca era uma peruca de neguinho mesmo. Na mão eu usava luva, a camisa aqui. E a calça, de um lado era curto, de outro lado mais comprido. E eu usava meias pretas. E uma sandália. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)

Esta caracterização surgiu a partir da necessidade dos circos em representar as personagens negras, principalmente por não ter na companhia atores negros suficientes para cada papel. O Circo Nerino, apesar de ter muitos artistas no elenco, em apenas um breve momento de sua história um ator negro trabalhou na companhia e representou estas personagens. Dessa forma, foi necessário criar a caracterização, descrita acima, que se assemelhava muito de um circo para outro, e resolvia as dificuldades da representação de algumas personagens. Até mesmo o precursor do circo-teatro brasileiro, Benjamin de Oliveira, que era negro, quando representava personagens brancas pintava o rosto de branco e usava peruca, para não mostrar o seu tom de pele. Nos textos dramáticos desta época a cor da pele era bem relevante, pois ainda estávamos próximos da abolição da escravidão e, portanto, havia muitas questões sociais relacionadas a isso.

Moira- Porque vocês faziam esta máscara desta maneira?

Walmir- Porque era a maneira mais fácil para você pintar o rosto sem problema. Porque a gente queimava a cortiça. Primeiro passava cerveja preta para poder passar o pó da cortiça. Para ficar uma maquiagem mais perfeita, né?

Moira- E se tivesse algum ator negro vocês fariam da mesma maneira? Walmir- Não, não. Se tivesse um ator negro ele seria normal, né? Não precisaria a pintura.

Moira- O Circo Nerino teve algum ator negro?

Walmir- Teve. Nós tínhamos um ator que era de cor, às vezes ele fazia até o Pai João, na peça ele fazia o papel de preto mesmo. Não usava a máscara. Usava apenas uma peruca de cabelo de negro mesmo, né? Ele mantinha a pele normal, sem nenhuma maquiagem. Às vezes fazia um papel de mais idade e usava assim alguma coisa de barba grisalha, alguma coisa muito superficial.

Através deste comentário de Walmir dos Santos, percebemos o quanto o circo buscava soluções práticas para superar os problemas que surgiam na

encenação das peças escolhidas. Atualmente a companhia Os Fofos Encenam,dirigida por Fernando Neves, faz um trabalho de resgate do circo-teatro, através de textos antigos e da linguagem da encenação. Nesta companhia, as máscaras são realizadas visando dialogar com a tradição mencionada. Dessa forma, muitos elementos que antes eram uma necessidade prática, tornaram-se uma convenção que visa estabelecer um diálogo com essa tradição teatral. No entanto, em 2015, a comunidade negra se desagradou a partir de uma foto da personagem cômica, uma empregada negra da peça A Mulher do Trem, e se manifestou através das redes sociais, alegando se tratar de um black-face19 preconceituoso, o que acarretou a organização de um debate sobre o tema e grande repercussão no meio teatral. A companhia decidiu retirar esta máscara de cena, o que ilustra a característica já mencionada neste trabalho de diálogo incessante do circo (no caso citado do grupo teatral que se inspira nesta tradição) com seu público.

Na peça A Mestiça, Tico-Tico é caracterizado como descrito acima, e desempenha um papel de extrema relevância para o encaminhamento dramatúrgico, além de apresentar o cômico que suaviza as tensões da história. Ele revela uma simplicidade que cativa demasiadamente os espectadores, principalmente pela ingenuidade combinada com a bondade de sua figura. Em diversos momentos, suas falas e ações são tolas, revelando uma importante característica, que colabora com o efeito cômico pretendido em algumas cenas. Percebemos também um grande destaque desta personagem na trama, por ser quem dinamiza e resolve algumas situações dramáticas. Principalmente pelo fato de estar em cena constantemente e espiar as conversas alheias, atitude esta que, em muitas ocasiões, resolverá as problemáticas da narrativa.

O moleque desempenha um tipo recorrente na literatura da época: o negro jovem, muito esperto e articulador de algumas situações que favorecem o andamento da história. Geralmente se trata de figuras cômicas que, através de um jeito brincalhão e despretensioso, possibilitam a criação de circunstâncias inusitadas para as demais personagens. Outro exemplo da atuação deste tipo encontramos em O Demônio Familiar de José de Alencar com a personagem de Pedro. O escravo

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O blackface foi um movimento teatral norte americano do século XIX, em que atores brancos pintavam o rosto de preto e representavam o negro, geralmente de maneira estereotipada e depreciativa.

cria inúmeras peripécias envolvendo seus senhores, com a intenção de se tornar o cocheiro de algum deles e, portanto, conquistar uma posição social mais elevada. Neste caso, ele arma, e depois de descoberto é obrigado a desarmar, as confusões relacionadas aos casamentos dos irmãos Eduardo e Carlotinha, sempre de maneira cômica e inteligente. Tico-Tico também é o escravo jovem responsável pela comicidade da peça, porém com a diferença de apresentar uma intenção de resolver os conflitos e ajudar seus amigos, principalmente Mestiça. Entretanto sua dinâmica cênica é bastante semelhante a Pedro, pois participa ativamente das situações ao longo de toda a narrativa, criando momentos cômicos e de descontração.

Tico-Tico protagoniza, junto com alguns outros escravos, a temática sobre o tratamento desrespeitoso que esta classe recebia de seus patrões. A diferença essencial entre ele e os demais é apresentar uma perspectiva cômica diante das situações dramáticas e de injustiça social. É responsável por descontrair os momentos tensos de castigo e opressão e gerar uma leveza importante para a trama, majoritariamente dramática. A primeira cena da peça é um castigo imposto à Rosinha pelas vilãs, Maria e Mimosa, por ter experimentado a canjica que serviria às duas. Em seguida Tico-Tico atravessa a cena com uma cesta de ovos e também recebe uma repreensão:

MARIA-chamando - Tico-Tico! TICO-TICO- Pronto, Nhanhá!

MARIA- Quantos ovos você recolheu hoje, moleque?

Rosinha entra

TICO-TICO- Eu só recoí duas dúzia, Nhanhá. As galinha parece que fizero

greve e dexaro de botá ovo!

MARIA- É mentira, Tico-Tico. Você está mentindo.

TICO-TICO- Eu ju... ju... juro, Nhanhá, eu que... quero que... que...

MARIA- Não jure falso, negrinho ordinário. Todas as vezes que você mente,

gagueja.

TICO-TICO- Tinha muitos ovos quebrado, eu acho que as galinha quebraro

os ovo.

ROSINHA- Mentira, Nhanhá... ele quebrô os ovo mais foi drento da boca.

Toque...

TICO-TICO- Tu não porva, negrinha faladeira, que fui eu. ROSINHA- Porvo sim! Tu tá ca boca cheia de ovo! MARIA- Rosinha, vai buscar a palmatória.

(MAVRUDIS, 2011: 10 e 11)

Nesta cena, o jovem escravo apresenta duas falas cômicas: a primeira ao justificar que as galinhas fizeram greve e a segunda dizendo que as mesmas

quebraram os ovos. No primeiro caso, o engraçado se deve ao atribuir características humanas à galinha, pois de acordo com o pensamento bergsoniano sobre o riso, os animais serão risíveis na medida em que surpreendemos neles atitudes ou expressões humanas. Tico-Tico inventa uma desculpa cômica, ao dizer que as galinhas fizeram greve (atitude estritamente humana), para justificar o porquê de ele não ter recolhido ovos suficientes. Esta imagem é engraçada e inusitada, devido ao absurdo que nela contém, e revela uma desculpa tola e ingênua, que dificilmente seria aceita pela patroa.

D. Maria pressiona-o, então ele cria mais ideias descabidas e termina por dizer que as galinhas quebraram os ovos. Esta é outra frase absurda, pois nenhuma galinha despedaçaria seus próprios ovos desta maneira. Estas duas falas, ditas em seguida, evidenciam que ele está mentindo, e o mais interessante é observar o tipo de raciocínio descabido usado pela personagem. Por isso, receberá a punição da palmatória, porém Gonçalves impede que seja aplicado o castigo, e diz que ele mesmo quebrara os ovos. A atitude do fazendeiro apresenta de antemão seu caráter, bondoso com seus escravos, como ocorre com as falas e ações da maioria das personagens neste estilo dramatúrgico. A situação cênica estabelece e revela a polaridade existente na casa: mãe e filha destratam os trabalhadores da fazenda, em contraponto com o pai, extremamente bondoso e zeloso para com eles.

O próximo diálogo cômico protagonizado por Tico-Tico será com Gonçalves, e ocorre um pouco mais à frente. Apesar de breve, serve para ampliar a compreensão destas duas personagens. Na situação, Rosinha xinga o escravo de filho de pai incógnito, porém como ele não entende o significado consulta o patrão. Gonçalves lhe pergunta se ele conhecera seu pai, e Tico-Tico, de acordo com a inocência de sua figura, responde que seu pai morrera seis anos antes de ele nascer. É muito interessante esta passagem por dois motivos: primeiro porque demonstra a liberdade e cumplicidade que os escravos, principalmente os mais próximos, tinham com Gonçalves, a ponto de realizar este tipo de conversa. E também devido à comicidade expressa na ingenuidade do moleque em afirmar que seu pai morrera anos antes de sua concepção. Percebemos se tratar de uma personagem sem muita malícia, que apresenta um comportamento pueril, tamanha é sua inocência. Estas qualidades apresentam um limiar muito tênue com a tolice, tamanha é a simplicidade

e ignorância de seus raciocínios. Grande parte da construção cômica desta figura se dará por estes motivos.

Após esta conversa, Pai João entra em cena sozinho e se apresenta ao público. Pede a Deus que o leve embora deste mundo, pois está cansado de sofrer. Ele é a personagem representativa dos sofrimentos vivenciados pelos escravos desde quando deixaram sua terra natal, no continente africano. Demonstra a maior carga dramática da peça, gera empatia e identificação, por ser uma personagem boa e por participar do núcleo positivo da trama. Tico-Tico interrompe este momento e pergunta se ele está falando sozinho. Ao saber que está conversando com Deus, pede para Pai João rezar pelo sumiço da palmatória que sempre o castiga. É interessante esta mudança de perspectiva de uma personagem para a outra, pois enquanto o primeiro deseja algo tão sério como partir deste mundo, o segundo pede algo mais ligado ao cotidiano, através do desaparecimento de um objeto de castigo. Ambos representam o sofrimento vivido por esta classe social, porém de maneiras diferentes: um mais dramático e sério, e o outro descontraído. Podemos dizer que a fala de Tico-Tico chega a ser cômica de tão contrastante com o pedido anterior, de morte.

A conversa continua e o moleque comenta sobre a festa do aniversário de Gonçalves, na qual os escravos também podem se divertir e participar:

PAI JOÃO- Uai, vai tê festa aqui na casa grande?

TICO-TICO- Entonce vancê não se alembra que no dia dos ano do Nhô

Gonçarve tem festa, e que os cumpade e as cumade brinca tudo aqui na sala?

PAI JOÃO- E no terrero brinca os escravo. Mais tomém, coitados, uma veiz

por ano é que eles pode adiverti um poco!

TICO-TICO- Xiii... quando a Mestiça começá a se espaiá lá no terrêro, vai

sê um Deus nos acuda!

PAI JOÃO- E a Nhanhá Mimosa tá contente ca festa?

TICO-TICO- Se tá? Ela já encomendô inté um vestido novo pro Mascate!

Ela tá cu a esperança de arranjá um norvo!

PAI JOÃO- Cala a boca, muleque do diabo. Se alguém ovisse o que ocê

disse...

TICO-TICO- Ué... e não é verdade, Pai João?

PAI JOÃO- É, Tico-Tico, mas fica sabendo que a gente num pode falá todas

as verdade.

TICO-TICO- Ué, enconte cumo é que a gente faiz? Se a gente diz a

verdade, apanha, se a gente diz mentira, apanha tombém. Cumo é que faiz?

TICO-TICO- Mais se eu num falá, eu fico cua língua dromente!

(MAVRUDIS, 2011: 17 e 18)

Percebemos novamente a perspectiva dramática de Pai João, ao acentuar que apenas uma vez no ano os escravos podem se divertir um pouco. Esta é uma característica desta personagem ao longo de toda a trama e será importante para evidenciar os maus-tratos e desrespeitos sofridos pelos escravos brasileiros. Por isso, podemos dizer que Pai João se encontra entre as personagens principais da narrativa, pois sua participação compõe, de maneira rica e diversa, a temática sobre a relação dos senhores com seus escravos. Além de protagonizar algumas situações dramáticas importantes e por ser avô da Mestiça.

O trecho cômico desta conversa é a fala descarada de Tico-Tico sobre a intenção de Mimosa em arranjar um noivo. Naquela época, era muito indelicado se referir a uma jovem solteira dessa forma, porém a personagem cômica fala sem pensar ou considerar as regras sociais mais comuns. Esta é uma característica corriqueira deste tipo, principalmente no contexto melodramático: falar o que todos estão vendo, mas devido às boas maneiras são impedidos de comentar. Depois de censurado, o moleque revida dizendo que apanha quando diz mentira e também não pode dizer todas as verdades, por isso não compreende como deve agir. Demonstra, dessa maneira, uma desmedida social, comum ao tipo cômico, em que a inadequação às regras, ou o desconhecimento delas, é uma forma usual de despertar o riso.

A transgressão desse código não escrito é ao mesmo tempo transgressão de certos ideais coletivos, normas de vida, ou seja, é percebida como defeito, e a descoberta dele, como também nos outros casos, suscita o riso. (PROPP,1992: 60)

Ao mesmo tempo, essas normas podem mudar, às vezes, e mudam bem rapidamente. De início, as mudanças devem ser consideradas como transgressões de um comportamento comum e provocam o riso. Esta é a razão pela qual suscitam o riso as modas vistosas e insólitas. (PROPP,1992: 62)

Atualmente, falar de uma moça dessa maneira não seria tão descabido e cômico quanto na época da encenação, em 1950. Como Propp afirma no fragmento acima, mudanças ocorrem na sociedade e o que outrora era considerado um tabu pode ser incorporado aos costumes. Antes disto, porém, qualquer atitude que inflija

a norma pode ser vista de maneira cômica. Outro aspecto engraçado do diálogo destacado acima é a impossibilidade de Tico-Tico se manter quieto, uma vez que admite seu ímpeto de falar, alegando que ficaria com a língua dormente. Esta é uma das suas características particular, ser mexeriqueiro e um bom informante, aquele que está sempre ouvindo as conversas alheias e atento aos acontecimentos. Este diálogo é interrompido pela entrada do feitor, e o moleque o apresenta a Pai João:

TICO-TICO-Entra Luiz - Aqui tá ele, Pai João. O nosso novo feito - a Luiz -

oia moço, eu já tratei do seu cavalo. Dei bastante mio e sortei no pasto.

LUIZ- Então toma lá! - dá-lhe uma moeda

TICO-TICO- Uma pataca? Virge Nossa Senhora. Tô rico! LUIZ- Com tão pouco?

TICO-TICO- Isso é muito dinheiro, moço! Eu vô guardá. LUIZ- Por que você fecha os olhos?

TICO-TICO- É pra mim num vê o que tá lá drento. Rosinha disse que

prantano dinhero em vespa de São João, brota que nem mio.

LUIZ- E foi também Rosinha quem ensinou a você o lugar onde deve ser

plantado o dinheiro?

TICO-TICO- Sim sinhô. Ela feiz um buraco na terra e disse: “ponha aí o

dinheiro que você for ganhando, senão não nasce!”

LUIZ- E Rosinha gosta muito de você?

TICO-TICO- Quá o que, moço. Ela tem uma reiva danada de mim. LUIZ- Então, Tico-Tico, você foi roubado.

TICO-TICO- O sinhô tá brincano, não tá? LUIZ- Olhe lá dentro então.

TICO-TICO- Mas se eu oiá não brota.

LUIZ- Escuta Tico-Tico, você já viu alguma coisa sem semente brotar? TICO-TICO- O sinhô qué dizê que drento do buraco não tem dinheiro? LUIZ- Quero dizer que a Rosinha roubou o seu dinheiro!

TICO-TICOchora - Ela me robô o meu dinheirinho. Cumo é que vai sê,

minha Nossa Senhora da Aflição...

LUIZ- Mas, o que é isto, Tico-Tico... um homem não chora. TICO- TICO- Nessa hora, eu não sou home! Cumo é que vai sê agora? LUIZ- Para que queria você aquele dinheiro?

TICO-TICO- Era pra comprá a minha carta de arforria.

LUIZ- Escuta! Não chore mais, se você for um bom rapaz, talvez ganhe a

sua carta de alforria!

TICO-TICO- O sinhô tá brincano, tá?

LUIZ- Não, Tico-Tico, estou falando sério. Agora leve o meu cavalo para a

estrebaria, cuide bem dele, porque, do tratamento que você lhe der, dependerá ou não a sua liberdade. - Tico-Tico sai

(MAVRUDIS, 2011: 18 a 20)

Novamente as falas e atitudes de Tico-Tico serão engraçadas devido à discrepância de suas reações, pois é descabido seu comportamento diante de tão pouco dinheiro. Revela mais uma vez uma grande ingenuidade e ignorância, ao mesmo tempo em que demonstra um choque de realidade entre a condição do feitor e dos escravos. Para ele, que nada tem, qualquer moeda pode ser bastante e

inclusive comprar sua alforria, esta condição é quase dramática, mas o tratamento que é dado nesta cena, torna-a cômica. Tico-Tico acredita na ideia descabida de Rosinha, sobre plantar, sem olhar, e esperar o dinheiro brotar. O fato de ele confiar nesta história revela uma tolice enorme desta personagem, e compõe os principais traços cômicos e características de sua figura.

Sua reação diante do fato de ter sido roubado, chorando e se lamentando, será ainda mais risível em contraponto com a censura de Luiz, alegando que homem não chora (um valor moral muito comum da época). A resposta de Tico-Tico é ainda mais engraçada ao dizer que nestas horas não é homem. Este trecho, apesar de cômico, explicita uma condição dramática: guardar qualquer moeda para comprar a liberdade, que é um direito humano. Com a saída do moleque, Pai João narra o drama vivido pelos escravos, desde a saída da África, verticalizando nos aspectos comoventes, em contraponto com a cena anterior. Por isso, podemos dizer que esta dupla de escravos desempenha, de maneira oposta, a mesma função na trama, um através do riso e o outro das lágrimas.

Ao final do primeiro ato, há um diálogo descontraído entre Luiz, Gonçalves, Maria e Mimosa, que Tico-Tico espia. Mimosa e seus pais desejam o casamento dela com o feitor e deixam subentendido esta pretensão em diversos momentos da história. Nesta conversa, ela o chama para nadar no rio da fazenda. Tico-Tico, então, aparece do seu esconderijo, somente para o público, e diz uma fala que as demais personagens não ouvem: “Xiii... eles vão tomá banho os dois, peladinho, peladinho...” (MAVRUDIS, 2011: 27). Esta frase evidencia o interesse da moça no rapaz de maneira rebaixada, por estar ligada diretamente com as partes corporais, ao mencionar um banho nu e sugerir uma intenção sexual. É evidente que a proposta de Mimosa não seria esta, pois os dois não são casados, mas a leitura da personagem cômica envereda nestes termos e assim consegue o riso franco do espectador. Os bufões, na época medieval, transferiam ritos elevados ao plano corporal, sendo este, segundo Bakhtin, um dos princípios típicos da comicidade, tal como realizado muitas vezes pelos palhaços. Percebemos uma analogia com esta passagem de Tico-Tico, porém devemos ressaltar que não é somente desonroso

Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. (BAKHTIN, 2010 :19)

Dentro do contexto histórico em que está inserido, falar da relação homem e mulher nestes termos é um tabu, porém ele menciona algo comum a vida de todas as pessoas. Quando um homem e mulher se casam há este tipo de união, entretanto