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5.3 – A recriação do romance para o palco

Apropriar e recriar filmes, livros, radionovelas, músicas, mais populares e transformá-los em peças teatrais era um procedimento comum nos circos brasileiros. A mudança ocasiona algumas modificações necessárias à forma artística, como, no caso analisado, do romance para a dramaturgia. A primeira cena da peça é bastante ilustrativa para comentar as diferenças entre as formas artísticas e pode nos ajudar a compreender um pouco o trabalho do dramaturgo Joaquim Silva sobre o romance de Gilda de Abreu. A peça se inicia com a seguinte cena:

MARIA e MIMOSA bordando, entra ROSINHA

ROSINHA-entrando com terrina de mingau - Nhanhá Maria, aqui tá a

canjiquinha. Tá gostosa que inté faiz água na boca da gente.

MARIA- Espera! Como é que você sabe que está gostosa? ROSINHA- Uai. Eu ponhei o dedo drento e porvei. MARIA-

empurrando-a - Negrinha descarada...

ROSINHA-chorando - Eu... não ponhei o dedo drento não! Eu só lambi a

beradinha.

MARIA- Negrinha sem vergonha... você vai tomar uma surra de chicote, sua

coisa à toa. Suma daqui. Rosinha sai Esta negrinha está ficando insuportável.

MIMOSA- A culpa é sua mesmo, mamãe... a senhora lhe dá certas

liberdades.

(MAVRUDIS, 2011: 10)

Esta cena, no romance, ocorre após a apresentação de Luiz, de seu pai e da situação em que se encontram: inclinado a administrar as terras paternas, o rapaz é indicado a se tornar o feitor de um amigo da família, como forma de aprendizado. Luiz é a personagem escolhida pela autora para narrar o romance. É interessante observar, nesta passagem, o recurso utilizado por Gilda de Abreu para explicitar o caráter das personagens, através da descrição das vozes. Nessa passagem o feitor acabou de chegar à fazenda e observa as personagens de longe, por isso, a voz será responsável por revelar as características de cada uma. Antes da fala de

Rosinha, por exemplo: “A voz da negrinha, chegou clara.” (ABREU, 1966: 54) e Maria: “A voz da dona da casa fez-se ouvir... voz áspera, voz de quem está acostumada a mandar e ser obedecida. Voz que lembrava o estalar do chicote...” (ABREU, 1966: 54).

No teatro, as características descritas pelas vozes ficam a cargo do ator, através da entonação, características físicas e composição da personagem. A interpretação pode ser diferente da narração de Gilda, porém dialogarão com as características gerais daquela figura. As falas de cada uma, entretanto, mantêm-se de uma forma artística para outra, a mudança maior ocorre na maneira de narrar as situações.

Depois de afirmar ter provado a canjica, Rosinha é descrita no romance como “(...) apavorada procurava remedar sem conseguir.” (ABREU, 1966: 55). A indicação do dramaturgo para esta descrição é mais precisa e objetiva: “falar de maneira chorosa”. Ainda na peça, Dona Maria ameaça dar uma surra na menina e a manda sair de cena. No romance, a autora cria uma situação mais impactante, para a qual a concretização cênica seria trabalhosa, como podemos observar:

E fora de si, D. Maria empurrou a pretinha, tigela e tudo com tanta força que, caindo no chão, a canjiquinha deu um banho em Rosinha que, de preta que era, ficou toda amarela! Mas mesmo assim, levantou-se rápida e desapareceu correndo levando a tigela e pratos quebrados para dentro, enquanto D. Maria continuava a descompostura.

(ABREU, 1966: 55)

Encenar esta descrição não acrescentaria novos dados à trama, daria trabalho aos atores (no sentido de quebrar a louça, sujar a atriz e o chão), e atrasaria um pouco a dinâmica cênica. É uma descrição rica para o estilo literário, porém pouco interessante para o circo. Através de uma fala simples, tal como “suma daqui” o dramaturgo resolve a saída da escrava, causando um efeito similar com a narração acima, porém menos constrangedor.

Em seguida Tico-Tico passa com uma cesta de ovos, e no romance afirma que ele vem despreocupado. No teatro, esta indicação se transforma em ação, com a indicação de que ele deve vir assoviando. Quando Maria lhe chama, sua reação é descrita no romance da seguinte forma: “O moleque estremeceu. Toda a alegria desapareceu. E foi com medo estampado na cara redonda que se aproximou das donas da casa. Maria encarou-o com desprezo (...).” (ABREU, 1966: 55). Tico-Tico reage desta forma pois acabou de comer alguns ovos sem autorização e é indagado

Na peça, não há qualquer descrição de pavor como a citada acima, mas o ator, dentro do contexto vivenciado pela personagem, poderá agir de maneira análoga ao romance. O contraste entre a sua entrada distraída e a reação diante da patroa chega a ser cômica e compõe os principais traços desta personagem. O fato de ser interpretado, geralmente, pelos palhaços da primeira parte do espetáculo circense, pode favorecer a interpretação exagerada e figurativa dos sentimentos e impressões, tal como descritos acima pelo romance.

Outra diferença importante entre as formas artísticas aparece, por exemplo, na descrição de Gonçalves, que entra em cena para defender Tico-Tico. O romance, por ser um meio literário propício a transmitir pensamentos e emoções de maneira mais íntima, nos introduz Gonçalves de forma particular. O leitor é convocado a participar da cena através dos pormenores, dos interesses secretos das personagens, geralmente ressaltados pelos autores. Nesse sentido, é interessante destacar a forma como Gilda de Abreu apresenta esta personagem:

Uma voz máscula e calma cortou o ar como uma chicotada. Rosinha estocou assustada. Nos olhos de Tico-Tico acendeu-se a chama da esperança e correndo escondeu-se atrás de um homem já grisalho, que acaba de chegar e, como eu, apreciara a cena sem ser visto. Adivinhava-se no novo personagem o dono da casa, Sr. Gonçalves. Tudo nele indicava bondade, indulgência, serenidade. (ABREU, 1966: 56)

Luiz acabou de chegar à fazenda e resolve observar as personagens de longe antes de se apresentar. Suas primeiras impressões são utilizadas pela autora para descrever a história de maneira intimista, sendo esta uma característica deste estilo literário. Uma visão resumida e simplificada das personagens, feita por alguém recém-chegado – mesma posição do leitor, traça tipos reconhecidos socialmente e bem delineados por Gilda de Abreu. Assim como o trabalho de construção da personagem feita pelo ator circense também nos deixa claro, desde sua primeira aparição, de quem se trata (vilão, heroína, cômico). As qualidades como bondade, indulgência e serenidade, descritas para Gonçalves pela autora do romance, se confirmarão, no teatro, desde o primeiro momento e com a evolução da história. Através do figurino sóbrio, a voz do ator e sua atitude ao defender Tico-Tico, o público entenderá qual o tipo representado por Gonçalves.

O cenário no circo-teatro também deixa claro, desde o começo, de qual espaço vê-se em cena, principalmente através do telão pintado, um elemento estático. No caso da peça em questão, o ambiente sugerido pelo autor era o mesmo em todos os atos: um pátio de fazenda. O cenário do Circo Nerino para esta montagem também se mantinha o mesmo no decorrer da peça, descrito por Walmir dos Santos como:

O cenário... Por exemplo a Mestiça era um cenário único, porque não dava pra mudar. Porque era feito na casa de fazenda, então aparecia uma entrada. Um degrau para a entrada da casa. E uma entrada lateral, tinha uma árvore. Na frente, tinha um tronco. E as cenas eram passadas todas ali. Era uma cena única.

Moira- E tinha telão pintado atrás?

Walmir- Tinha, era um canavial. (...) Na Mestiça todos os dez atos a cena era aquela. Não tinha como mudar, porque era uma casa de fazenda, era montada. Tinha aquela parte da varanda. Um palco, depois tinha uma parte mais alta, com aquela balaustrada da varanda. Era muito interessante, muito bem feito. (Entrevista realizada com Walmir dos Santos em 04/02/2015)

Percebemos que este cenário apresenta dois ambientes concomitantes: o da casa de fazenda e um externo, que poderia ser o pátio, sugerido por Joaquim Silva. Dessa forma, é possível trabalhar todas as situações cênicas, desde a conversa íntima dos senhores, até a cena final com a Mestiça no tronco. O telão pintado serve para ambientar e contextualizar melhor a narrativa, ampliava o ambiente através do canavial, demonstrando se tratar de uma grande fazenda e não uma reduzida sala de estar. Conforme podemos ter uma ideia na foto de número quatorze, na qual aparecem todas as personagens da trama, com Mestiça ajoelhada no centro.

Figura 14 – Encenação da peça A Mestiça. Fonte: AVANZI e TAMAOKI, 2004. 209.

A busca do dramaturgo circense será sempre em transformar estados e descrições em ações, além de permitir um espaço de criação para o ator, portanto não esmiuçará tanto a leitura sobre a cena com rubricas, por exemplo. Seu trabalho é elencar os principais acontecimentos e recriá-los dentro de uma lógica de mobilidade e dinâmica, necessários à cena teatral circense. O romance literário é utilizado pelo circo-teatro com bastante fidelidade em relação à trama e à caracterização das personagens, e, por haver uma grande correspondência, possibilitou uma relação duradoura entre estas duas formas artísticas.