• Nenhum resultado encontrado

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Fernando Hideo Iochida Lacerda

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Fernando Hideo Iochida Lacerda"

Copied!
214
0
0

Texto

(1)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Fernando Hideo Iochida Lacerda

D

IREITO

P

ENAL

M

ÍNIMO E

C

ONSTITUIÇÃO

:

O bem jurídico como aquisição evolutiva e a criminalização de seu tempo.

MESTRADO EM DIREITO

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Fernando Hideo Iochida Lacerda

D

IREITO

P

ENAL

M

ÍNIMO E

C

ONSTITUIÇÃO

:

O bem jurídico como aquisição evolutiva e a criminalização de seu tempo.

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Processual Penal sob a orientação do Professor Doutor Cláudio José Langroiva Pereira.

(3)

BANCA EXAMINADORA

______________________________

______________________________

(4)

Nas pessoas de três dos meus

mestres ― Édson Luís Baldan,

Cláudio José Langroiva Pereira e Marco Antônio Marques da Silva,

estimuladores e inspiradores dos meus estudos na área penal

,

segue esse trabalho como forma do mais sincero agradecimento

a todos os professores com quem tive a sorte e

(5)

5

AGRADECIMENTO

“O homem que disse ‘eu prefiro ter sorte a ser bom’ viu profundamente a vida. As pessoas têm medo de admitir que boa parte da vida depende da sorte. É assustador pensar que há tanto fora de nosso controle. Num jogo, há momentos em que a bola bate no alto da rede e, por uma fração de segundo, ela tanto pode seguir à frente, ou cair de volta. Com um pouquinho de sorte, ela vai em frente e você ganha. Ou talvez não, e você perde” ―

assim começa um dos bons filmes dirigido por Woody Allen (1), assim começo por agradecer a todos que, de alguma forma, contribuíram pra que tudo fosse possível: graças a deus eu tenho muita sorte, então só me resta agradecer.

A todos que fizeram e fazem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo a minha segunda casa, da qual eu jamais me arrependi por ter escolhido para viver tantos bons e ininterruptos momentos, já há quase oito anos.

Ao Professor Marco Antônio Marques da Silva, por ter me aberto as portas do curso de Mestrado e paternalmente conduzido os meus passos nessa trajetória ― que assim seja! ― ainda incipiente. Ao Professor Cláudio José Langroiva Pereira, que sabe ensinar sem deixar de ser amigo. Ao Professor Édson Luís Baldan, pra quem todas as palavras seriam poucas, cuja contribuição e o incentivo foram o ponto de inflexão na minha carreira.

A todos os meus alunos, com meu pedido de desculpas pelo desiquilíbrio da relação: ensinam-me muito mais do que eu jamais poderia retribuir. Ao Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à equipe do Federal Concursos, nas pessoas da Professora Alessandra Greco, Patrícia Rizzo e Professor Rogério Cury, pela confiança em mim depositada.

A todos os professores cujos caminhos se encontraram com o meu, pela paciência que por vezes demandei em excesso e pela dedicação e atenção que costumei receber em contrapartida, sem que nada me fosse exigido em troca.

1

(6)

6

Aos professores Luiz Alberto David Araújo e Celso Fernandes Campilongo, pelo encantamento que despertam em seus alunos e contribuição inestimável (ainda que em alguns momentos involuntária) para que as ideias que se seguirão tomassem forma.

A todos os amigos que fiz na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na pessoa da Priscilla Soares de Oliveira, por me mostrarem ao longo do nosso caminho que o direito está muito além dos livros, dos autos e da conta no banco.

Ao Ministério Público do Estado de São Paulo, instituição que me acolheu durante momentos inesquecíveis, na pessoa da Dra. Eliana Guillaumon Lopes Vieira, pelas valiosas lições sobre o direito penal do cotidiano.

A todos os amigos com quem a vida me presenteou, pelas ideias formadas, partidas jogadas e cervejas tomadas. À Paula, pelo incentivo a me fazer querer sempre mais, ainda que ao tempo parecesse além da conta.

Aos meus companheiros Leandro Falavigna, Luís Carlos Dias Torres, Rafael Saghi e Andrea Vainer, pelas lições diárias, compreensão e auxílio quando o fim parecia ainda mais distante do que de fato era.

À minha família, especialmente ao meu irmão e aos meus pais, pelo apoio incondicional e irrestrito, desde o início e desde quando as decisões pareciam as mais precipitadas.

À Lyssa, pelo carinho, cuidado e paciência.

(7)

7

“O melhor drama está

no espectador e não no palco.”

MACHADO DE ASSIS

(

2

)

“Há uma porta que dá para a lei. Diante dela, um guardião, o guardião da porta da lei.

Um homem simples chega e pede para entrar. O guardião responde que, naquele dia, não é permitido entrar. O homem pensa um pouco e pergunta quando poderá entrar. O guardião responde que de repente, mas não agora. Como a porta da lei está aberta, o homem simples se agacha para olhar para dentro por entre as pernas do guardião. O guardião impede o homem de olhar e o adverte que lá dentro há outras portas e outros guardiões, cada um mais forte e feroz que o outro. O homem simples não imaginava encontrar obstáculos, pois sempre pensara que a lei deveria ser acessível a todos os homens. O guardião lhe empresta um banquinho para que possa sentar-se à porta da lei e ficar esperando a hora de entrar. Passam-se os dias e os anos. O homem simples continua perguntando quando poderá entrar. O guardião lhe dá respostas vagas e impessoais, repetindo sempre que a hora de entrar ainda não chegou. O homem simples tira a roupa do corpo e tenta

subornar com ela o guardião da porta da lei. O guardião não recusa: “Aceito, para que você não diga

que não tentou tudo. Aceito, mas ainda não posso permitir a sua entrada”. Com o passar dos anos, o

homem simples maldiz seu destino perverso, de dor, sofrimento e velhice sem poder cruzar a porta da lei, que ali continua, diante dele, emanando uma claridade que ofusca seus olhos cansados. Nada lhe resta senão a morte. Agonizando, ocorre-lhe perguntar ao guardião por que durante todos aqueles anos em que esperou, não apareceu nenhuma outra pessoa pedindo para entrar pela porta

da lei. E o guardião responde: “Ninguém quis entrar por esta porta porque ela se destina apenas a você!... Agora, com sua morte, terei de fechá-la”.

FRANS KAFKA (

3).

2 ASSIS, Machado de.

Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1992. v. 2. p. 303

3KAFKA, Franz.

Perante a lei.Disponível em http://pt.scribd.com/doc/57198706/Kafka-Perante-a-Lei

(8)

8

RESUMO

Escopo deste trabalho é a proposta de balizas para a criminalização de nosso

tempo, a partir de uma visão do bem jurídico como aquisição evolutiva. Nesse

sentido, o bem jurídico penal corresponde ao acoplamento estrutural entre o

direito penal e a política criminal, produto da diferenciação evolutiva que se

operou entre os sistemas jurídico e político. Para tanto, são adotados como

pressupostos conceituais basilares a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e

uma visão da sociedade de risco como o tempo em que vivemos, a partir de

noções formuladas por Ulrich Beck. Empregando esses referentes científicos, a

presente dissertação rediscute a relação entre Constituição, bem jurídico, direito

penal, processual penal e política criminal, defendendo a ideia de que é função

do legislador a identificação do bem jurídico como fundamento de normas

penais incriminadoras, estando todo o processo de intervenção penal limitado

positivamente pelas normas constitucionais. A dissertação trata da

criminalização de nosso tempo: seja no momento da intervenção penal como

produto político ― analisando

-se a (in)existência de mandados constitucionais

que vinculariam a produção normativa infraconstitucional, a partir de uma visão

da Constituição como limite do direito penal, cujo fundamento seria o bem

jurídico

―, quer no momento da intervenção penal como

operação do sistema

jurídico, a partir da (im)possibilidade de relativização das garantias processuais

de natureza constitucional para adequação às expectativas da sociedade de risco.

É uma busca por fundamentos, limites e parâmetros para o sistema penal de

nosso tempo: do direito penal mínimo e do processo penal garantista,

informados pelos princípios constitucionais.

(9)

9

ABSTRACT

The scope of the present work is to propose boundaries for the criminalization of

our time, from an overview of the juridical value as an evolutionary acquisition.

In this sense, the juridical value corresponds to the structural coupling between

criminal law and criminal policy, being a product of evolutionary differentiation

that operated between the legal and political systems. With that purpose, Niklas

Luhmann’s theory of systems was adopted as a conceptual assumption, as well

as a view of time, considering that we live in a risk society, according to the

notions of Ulrich Beck. Applying these scientific references, this thesis proposes

a new discussion of the relationship between the Constitution, the juridical

value, the criminal law, criminal procedure and criminal policy, defending the

idea that it is a function of the legislature to identify the juridical value as a basis

for creating criminal law, considering that all the process of penal intervention is

positively limited by constitutional norms. The dissertation deals with the

criminalization of our time: regarding criminal intervention as a product of

politics - analyzing the (non) existence of constitutional warrants binding the

production of non constitutional rules, from a vision of the Constitution as a

threshold of criminal law, whose foundation would be the juridical value - or

concerning the moment of criminal intervention as an operation of the legal

system, from the (non) possibility of challenging the constitutional procedural

safeguards aiming to adapt risk society's expectations. It is a search for

foundations, limits and parameters for the penal system of our time: the

minimum criminal law and criminal procedure, informed by constitutional

principles.

(10)

10

D

IREITO

P

ENAL

M

ÍNIMO E

C

ONSTITUIÇÃO

:

O bem jurídico como aquisição evolutiva e a criminalização de seu tempo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ... 13

PARTE I – BEM JURÍDICO, CONSTITUIÇÃO E DIREITO PENAL MÍNIMO 1. AEVOLUÇÃO DA TEORIA DO BEM JURÍDICO COMO PARADIGMA DE LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO 1.1 Bem jurídico, liberdade e segurança ... 17

1.2. O iluminismo, Feuerbach e direitos subjetivos ... 20

1.3. Birnbaum e a ideia embrionária de proteção de bens ... 24

1.4. Binding, Liszt e o positivismo do século XIX ... 28

1.5. Neokantismo, formalização e o esvaziamento da noção de bem jurídico ... 33

1.6. A segunda guerra mundial e a retomada do conteúdo material ... 34

1.7. Teorias constitucionalistas e a busca por critérios específicos ... 37

1.8. Por que Luhmann deve se revirar no caixão com a teoria de Jakobs? ... 40

1.9. Uma visão do bem jurídico penal ... 41

2. SISTEMA PENAL E BALIZAS CONSTITUCIONAIS 2.1. Garantismo penal ... 45

2.2. Dignidade da pessoa humana ... 48

2.3. Intervenção mínima ... 51

2.4. Legalidade ... 54

2.5. Presunção de inocência ... 56

2.6. Culpabilidade ... 58

2.7. Devido processo legal ... 60

(11)

11

PARTE II – TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN 3. ELEMENTOS BÁSICOS DA TEORIA DOS SISTEMAS 3.1 Considerações iniciais ... 67

3.2 A sociedade na teoria dos sistemas ... 72

3.3 Sistemas operacionalmente fechados e cognitivamente abertos ... 76

3.4 Acoplamentos estruturais ... 78

3.5 Uma teoria da evolução social: sociedade moderna, complexidade, contin-gência e diferenciação funcional ... 82

4. SISTEMA PENAL 4.1. Sistema jurídico e sistema político ... 92

4.2. Direito penal e política criminal ... 105

PARTE III – A CRIMINALIZAÇÃO DE SEU TEMPO 5. AQUISIÇÕES EVOLUTIVAS 5.1 A constituição como aquisição evolutiva ... 117

5.2 O bem jurídico como aquisição evolutiva ... 126

6. BENS JURÍDICOS E A PROPOSTA PROCESSUAL 6.1. Sociedade do risco, expansão da intervenção criminal e flexibilização das garantias processuais penais ... 136

6.2 A legitimação pelo procedimento ... 142

6.3. Velocidades do direito penal ... 147

6.3.1. A proposta de Silva Sánchez ... 147

6.3.2. O direito penal do inimigo ... 151

(12)

12

7. BEM JURÍDICO E CONSTITUIÇÃO:LIMITES E PARÂMETROS PARA A CRIMINALIZAÇÃO 7.1 Teorias constitucionalistas do direito penal ... 160

7.2 Constituição como limite do direito penal ... 165

7.3 (In)existência de obrigações constitucionais de criminalização ... 168

7.3.1 Teoria dos mandados constitucionais de criminalização ... 172

7.3.1.1 Os mandados constitucionais expressos ... 177

7.3.1.2 Os mandados constitucionais implícitos ... 180

7.3.2 Análise das supostas obrigações constitucionais de criminalização sob o prisma do direito penal mínimo ... 186

7.4 Limites e parâmetros para a criminalização de nosso tempo ... 192

CONCLUSÕES ... 196

(13)

13

INTRODUÇÃO

Em seu mais famoso discurso, proferido no ano de 2005 e destinado aos formandos da Universidade de Stanford, Steve Jobs começou contando uma história sobre ligar os pontos. Após narrar fatos aparentemente desconexos de sua biografia, concluiu que

“você não consegue conectar os fatos olhando pra frente, você só os conecta quando olha para trás, então tem que acreditar que, de alguma forma, eles vão se conectar no futuro”. (4)

O presente trabalho é de certa forma avesso à lógica tradicional na elaboração de pesquisas científicas, cujo autor elege um tema e passa a empreender esforços no sentido de desvendar a problemática inicialmente colocada. As próximas páginas representam, antes, a ligação dos pontos de boa parte do que esse autor pôde apreender nos últimos oito anos com grandes professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ― que provavelmente

não poderiam ter sido conectados na hora, mas de alguma forma se uniram para dar forma ao texto que se seguirá.

Ingressei na graduação em 2006, já acolhido como um filho pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Meu primeiro interesse foi pelo direito constitucional, cujos direitos e garantias fundamentais se fazem tão presentes nessa obra, o que devo ao Professor Luiz Alberto David Araújo, por seu firme comprometimento com o magistério e em despertar o encanto de seus alunos.

Ao final do ano de 2008, soube que no semestre seguinte do curso na graduação o meu professor de direito penal seria um delegado de polícia. Com os estereótipos que permeiam nossas fantasias, jamais imaginaria que fosse encontrar na pessoa do Professor Édson Luís Baldan a figura que me ensina(ria) o direito penal na sua forma mais nobre, humana e verdadeira. A ele se deve a forja da compreensão de um direito penal mínimo, que permeia esse trabalho.

(14)

14

No ano seguinte, fui apresentado àquele que viria a ser o orientador deste trabalho, Professor Cláudio José Langroiva Pereira. Também e ainda nas aulas de graduação, reforçou a minha formação humanista em relação ao direito penal e acrescentou à perspectiva do autor a análise do sistema criminal a partir da concepção do bem jurídico e as alternativas para a nossa sociedade de risco. É por meio de sua obra Proteção Jurídica Penal, Estado Democrático de Direito e Bens Universais e de suas tantas observações dentro e fora da sala de aula, que o bem jurídico acabou por assumir o protagonismo na construção teórica da presente dissertação de mestrado.

Já no ano de 2011, as portas do curso de Mestrado me foram abertas pelo Professor Marco Antonio Marques da Silva, defensor obstinado da dignidade da pessoa humana como fio condutor da dogmática penal. Chega a ser curioso lembrar que logo na segunda aula do curso, foi-me atribuída a apresentação do tema “Direito penal e Constituição. Obrigações constitucionais de criminalização. Ordem de valores constitucionais. A ordem constitucional de valores e a necessidade de uma coerência na legislação e na criminalização”, o qual acabou por se transformar no objeto do presente trabalho. Da mesma forma, impossível não notar a influência ao longo de todo o texto que seguirá da frase

constantemente ouvida em suas aulas: “O Processo Penal é a Constituição aplicada”.

Todavia, a relação entre a Constituição e o direito penal ainda não estava definida e consolidada para este autor. A pedra angular para as considerações expostas nessa obra foi fornecida pela Teoria dos Sistemas, de Niklas Luhmann, apresentada pela didática ímpar do Professor Celso Fernandes Campilongo, ao longo das aulas de Teoria Geral do Direito, também no curso de mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ministradas ao longo do segundo semestre do ano de 2011.

Atribui-se a Isaac Newton a frase: “Se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”. Sem a pretensão de insinuar que se enxergou longe ― mas

(15)

15

A proposta do presente trabalho é apresentar balizas para a criminalização de nosso tempo, a partir de uma visão do bem jurídico como aquisição evolutiva, no contexto de um direito penal mínimo e um processo penal garantista. Qual o papel que deve ser atribuído ao bem jurídico e à própria Constituição para uma intervenção penal legítima? Estariam direito penal e política criminal de alguma forma interligados e reciprocamente condicionados? Como admitir, diante desse cenário, a existência de supostos mandados constitucionais de criminalização? Como lidar com as garantias processuais penais diante das novas expectativas forjadas no bojo de uma sociedade de riscos?

Essas são algumas questões que se pretende responder ao longo das páginas que se seguirão. Inicialmente, cuidou-se da fixação de premissas logicamente antecedentes de forma que os capítulos iniciais constituíssem pressupostos naturais para a elaboração dos capítulos finais ou, quando menos, um aclaramento necessário das ideias utilizadas como fundamento para as conclusões derradeiramente estabelecidas.

Principiamos com uma abordagem acerca da evolução histórica da teoria do bem jurídico como paradigma de legitimidade da intervenção penal, a partir do estudo das obras que representaram cada momento histórico, iniciando-se pelo pensamento iluminista do século XVIII. Ainda na primeira parte deste trabalho, passou-se à exposição dos princípios constitucionais que limitam a criminalização e dão forma a um direito penal mínimo.

Num segundo instante, pretendeu-se desvendar elementos essenciais da teoria dos sistemas, fixando-se ― ainda que superficialmente, dada a limitação desse trabalho ―

conceitos e terminologias próprias e indispensáveis para uma adequada compreensão da obra de Niklas Luhmann. Em seguida, assentados esses pressupostos, procedeu-se ao exame dos sistemas jurídico e político, bem como, mais especificamente, do direito penal e da política criminal.

(16)

16

Na derradeira parte, fincadas as âncoras na concepção de um direito penal mínimo constitucionalmente consagrado e adotando-se como fio condutor do raciocínio lógico a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, passou-se ao exame criminalização de nosso tempo, assim considerado como tempo da sociedade de risco, com base no pensamento de Ulrich Beck.

Em seguida, passou-se à demonstração do que se entende por aquisição evolutiva, de acordo com conceitos luhmannianos. Para o autor, a Constituição seria o acoplamento estrutural forjado a partir da aquisição evolutiva resultante da diferenciação funcional entre o sistema jurídico e o sistema político. Diante desse cenário, propõe-se que papel semelhante seria desempenhado pelo bem jurídico, como acoplamento estrutural fruto da diferenciação funcional entre os subsistemas do direito penal e da política criminal.

Ao final, enfrentou-se propriamente a problemática da criminalização na sociedade de risco. De um lado, a análise da intervenção penal como operação do sistema jurídico passou por uma avaliação acerca da (im)possibilidade de relativização das garantias processuais de natureza constitucional para adequação às expectativas da sociedade de nosso tempo. De outro, o exame da intervenção penal como operação do sistema político aborda a (in)existência de mandados constitucionais que vinculariam a produção normativa infraconstitucional, a partir de uma visão da Constituição como limite negativo do direito penal.

De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma” ― assim

sentenciou Fernando Pessoa (5). De todas as características do autor deste trabalho, a calma nunca foi protagonista. Talvez a proposta deste trabalho merecesse uma reflexão mais apurada, talvez até incompatível com as limitações de uma dissertação de mestrado ou mesmo com a maturidade deste autor, ao que peço sinceras desculpas. Fato é que se cuidou tanto quanto possível para que o escopo do trabalho não se perdesse durante a caminhada pela busca por fundamentos, limites e parâmetros ao sistema penal de nosso tempo: do direito penal mínimo e do processo penal garantista, informados pelos princípios constitucionais.

5

(17)

17 PARTE I

BEM JURÍDICO, CONSTITUIÇÃO E DIREITO PENAL MÍNIMO

1. A EVOLUÇÃO DA TEORIA DO BEM JURÍDICO COMO PARADIGMA DE LEGITIMIDADE DA

CRIMINALIZAÇÃO

“No pensamento, o que permanece é o caminho. E os caminhos do pensamento

guardam consigo o mistério de podermos caminhá-los para frente e para trás,

trazem até o mistério de o caminho para trás nos levar para frente”.

MARTIN HEIDEGGER (6)

1.1. Bem jurídico, liberdade e segurança

Provavelmente, o direito penal sequer passava pela mente de Zygmunt Bauman quando destacou a ambivalência da vida, ao afirmar que dois seriam os valores essenciais e absolutamente indispensáveis para uma vida recompensadora e relativamente feliz: segurança e liberdade. (7)

Segurança sem liberdade resultaria em escravidão; liberdade sem segurança seria um completo caos, incapacidade de fazer ou planejar nada, sequer sonhar com isso.

Precisamos, pois, de ambos. Todavia, o problema destacado pelo autor é que “ninguém ainda,

na história e no planeta, encontrou a fórmula de ouro: a mistura perfeita de segurança e

liberdade”. Se a cada vez que se tem mais segurança, entrega-se um pouco de liberdade; cada vez que se tem mais liberdade, abre-se mão de parte da segurança. (8)

6HEIDEGGER, Martin.

A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP:

Universitária São Francisco, 2003, p. 81.

7 Zygmunt Bauman

– Fronteiras do pensamento. 2011. Disponível em

(18)

18

Projetando essa ambivalência à própria civilização, Zygmunt Bauman identifica um movimento pendular entre os extremos de liberdade e segurança ao longo da evolução social: Estado Liberal e Estado Social, livre arbítrio e estabilidade, individualismo e coletivismo.

O autor chega a duas conclusões: (i) a primeira é que nunca encontraremos

uma solução perfeita para o dilema entre segurança e liberdade, de forma que “sempre haverá muito de uma e pouco de outra”; (ii) a segunda é que “nunca pararemos de procurar essa mina de ouro”. (9)

Essa busca pela mina de ouro poderia é comparável à evolução do bem jurídico como paradigma de legitimidade da criminalização. Do dilema entre liberdade e segurança, tantas diversas as formas que o bem jurídico assumiu ao longo do movimento pendular das teorias que se propuseram a examiná-lo.

Fica o alerta de Manuel da Costa Andrade, para quem “a impressão que a

história do bem jurídico deixa é a de um processo em espiral ao longo do qual se sucederam fenômenos de revolução no sentido etimológico (revolutio) de retorno ao que se julgava já irrepetivelmente abandonado. Não menos vincada é a impressão de extrema liquidez e mimetismo do conceito, capaz de assumir os conteúdos e desempenhar os papéis aparentemente mais irreconciliáveis e antinômicos” (10).

Para além das diversas concepções acerca de sua forma existencial, o Tribunal Constitucional Alemão chegou mesmo a negar a teoria do bem jurídico, alegando a impossibilidade de se defini-lo e a usurpação de função da função legislativa pela jurisdicional que supostamente resultaria de sua aplicação. A decisão é objeto de análise de Luís Greco (11), que examina os fundamentos básicos, destacando expressamente trechos do julgado:

9 Idem

10 Andrade, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia, p. 391. 11 GRECO, Luís.

Tem futuro a teoria do bem jurídico? Reflexões a partir da decisão do Tribunal

Constitucional Alemão a respeito do crime de incesto (5 173 Strafgesetzbuch) - Revista brasileira de

(19)

19

Em primeiro lugar, o conceito de bem jurídico seria controverso: ‘sobre o

conceito de bem jurídico não há ainda qualquer consenso’. Ou se apresentaria como um ‘conceito normativo de bem jurídico’, que não

diferiria da ratio legis e, por isso mesmo, seria incapaz de limitar o

legislador, ou então se apresentaria como um ‘conceito naturalístico de bem jurídico’ com pretensão de suprapositividade, o que estaria em contradição

‘com o fato de que, segundo a ordem da Lei Fundamental, é tarefa do

legislador democraticamente legitimado fixar não só os fins da pena, mas

também os bens a serem protegidos por meio do direito penal’. Ainda que a teoria do bem jurídico tenha importância dogmática ou politico-jurídica, ‘não fornece ela qualquer parâmetro substancial que tenha necessariamente de ser

acolhido pelo direito constitucional’. Logo são citadas principalmente as

investigações de Lagodny e Appel, que chegam a um resultado similarmente crítico à ideia de bem jurídico.

Contrariamente a essa decisão que adota tese minoritária, mas sem atender ao afã de analisar pormenorizadamente as teorias acerca da natureza jurídica e função tradicionalmente dispensada ao bem jurídico-penal, cumpre destacar as duas principais contribuições atribuídas à construção de uma ideia racional de direito penal destinado a tratar exclusivamente de bens jurídicos essenciais à vida em sociedade: (i) a despenalização de condutas puramente ideológicas, imorais ou contra os interesses políticos dominantes, sem lesividade social e (ii) a identificação das características específicas do objeto de proteção do direito penal.

De certa forma antecipando o que se demonstrará ao final do capítulo, cumpre-se apenas registrar que tais contribuições são foram adquiridas evolutivamente e são extraídas a partir da ideia de bem jurídico penal distante de uma perspectiva formalista, em prol da busca por seu conteúdo material. (12)

12 ROCHEFORT, Juan Ignacio Piña.

ALgunas consideraciones acerca de la (auto) legitimación del derecho penal. Es el problema de la legitimidade abordable desde uma perspectiva

sistémico-constructivista? - in DIEZ, Carlos Gómez-Jara, Teoria de sistemas y derecho penal – fundamentos e

(20)

20

Para tanto, não bastaria conceituá-lo tão somente como uma ‘realidade valorada positivamente’, sob pena de se incluir em tal categoria qualquer estado, convicção ou

princípio em consonância com os interesses dominantes ― ao contrário, deve-se atentar para os três elementos que constituem a ideia de bem jurídico-penal, a saber: (i) a lesividade social, (ii) a referência ao ser humano e (iii) sua contemplação constitucional. (13)

Fato é que as diversas concepções sobre o bem jurídico só podem ser compreendidas como produto de seu tempo, no contexto político e filosófico em que foram imaginadas. Desde sua primeira formulação até as mais recentes definições, ao bem jurídico foi atribuída ora função meramente descritiva, ora função crítica ao direito vigente; ora finalidade meramente teleológica e interpretativa, ora conteúdo material e vinculante; ora uma natureza ideal, ora existência concreta e social.

Guardadas as limitações do presente trabalho, o que se pretende é fixar as âncoras na análise de um bem jurídico de seu tempo. Com efeito, passa-se inicialmente ao breve exame do histórico da evolução da teoria do bem jurídico como paradigma de legitimidade da criminalização, para que ao final do capítulo se estabeleçam algumas conclusões referentes à visão de bem jurídico adotada neste trabalho.

1.2. O iluminismo, Feuerbach e direitos subjetivos

O surgimento do conceito de bem jurídico no século XIX, assim como as vicissitudes que se sucederam no contexto do desenvolvimento de teorias que se propuseram a explorar a noção de bem jurídico ao longo do século XX, só podem ser compreendidos a partir de seus antecedentes iluministas.

Dessa forma, embora tradicionalmente a origem da noção de bem jurídico seja atribuída a Johan Michael Franz Birnbaum, foi Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach,

13 SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria.

Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: J.M.

Bosch, 2002, p. 268. MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal – Parte Geral, 6ª ed. Barcelona: Ed.

(21)

21

autor do período iluminista, um dos primeiros a esboçar os alicerces de uma teoria capaz de limitar o âmbito de intervenção do direito penal, inspirado nas concepções contratualistas e nos ideais de liberdade propostos por Immanuel Kant.

É bem verdade que durante o período iluminista não se veio a empregar o termo bem jurídico, que só ganhou tal contorno no século XIX. Todavia, conforme afirma Claus Roxin, “houve uma linha directa que conduziu das idéias liberais do Iluminismo ao conceito de bem jurídico”. (14)

No mesmo sentido, José Cerezo Mir ressalta a importância das concepções forjadas no período iluministas ao destacar que “los filósofos de la Ilustración al criticar las instituciones políticas del Antiguo Régimen, de la Monarquia absoluta, habían sentado las bases del Derecho penal moderno”. (15)

Considerado um dos pioneiros do chamado conceito material do delito, Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach atribuiu à noção de crime um conteúdo, apto a limitar a atividade incriminadora do Estado ao estabelecer critérios para o reconhecimento de sua legitimidade (16).

Opondo-se às arbitrariedades impostas a pretexto da realização da justiça criminal, recorrentes durante o período do absolutismo monárquico, o Iluminismo, representado em matéria de direito penal dentre outros, por Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, fixou os alicerces onde se assentaria a futura noção de bem jurídico, estabelecendo limites ao ius puniendi, mediante a propositura de um referente material do crime, racionalmente fundado e socialmente reconhecível, com o objetivo de diferenciá-lo da mera violação de um dever.

14 ROXIN, Claus, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 3ª edição, Lisboa: Editora Vega, 1998, p. 61

15 MIR, José Cerezo. Curso de Derecho Penal Español, Parte General, Volume I, Introducion, Madrid: Editorial Tecnos, 5ª edición, 5ª reimpressión, 2002., p. 82.

16 FERNANÁNDES, Gonzalo D.

Bien jurídico y sistema del delito: un ensayo de fundamentación

(22)

22

Partindo-se do aspecto material, identificou-se pela primeira vez o crime como a lesão a um direito subjetivo do indivíduo ou do Estado, afastando- se da proteção penal a moral e a religião, quando tais ofensas não provocassem a violação de um interesse da pessoa ou do ente estatal.

Assim é que Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach individualizou o conceito material de crime por meio da concepção de lesão a um direito subjetivo, entendido em sentido jusnaturalístico. Afirma o autor que o delito deve ser entendido como uma ação prevista em lei penal, que contrarie direito subjetivo de outrem:

Quien excede los limites de la libertad juridica comete uma lesíon jurídica o injuria. El que lesiona la libertad garantizada por el contrato social y assegurada mediante leyes penales, comete um crimen. Por ende, crimen es, en el más amplio sentido, uma injuria contenida em uma ley penal, o uma acción contraria al derecho del outro, conminada em uma ley pena” (17)

A concepção de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach representou significativo avanço ao desenvolvimento do direito penal nos moldes como o compreendemos nos ordenamentos jurídicos da sociedade moderna ocidental.

De um lado, a compreensão do núcleo essencial do delito como violação a um direito subjetivo serviu de barreira ao arbítrio legislativo, à época soberano. Se é bem verdade que tais barreiras ainda não estavam claras o suficiente para uma delimitação precisa do

âmbito de atuação da política criminal, a mudança de paradigma do significado do crime ― antes, a lesão de um dever em face do Estado ― para sua compreensão como a violação do

direito do ofendido de exercer sua liberdade diante da ação de outrem, foi essencial para futuros estudos sobre a limitação do direito penal.

Por outro lado, ao vincular o referente material do crime à afetação concreta de direitos subjetivos, Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach reconhece um caráter

17 FEUERBACH Paul Johann Anselm Ritter von.

Tratado de derecho penal común vigente en

Alemania. Traducción de la 14 edición alemana por Eugênio Zaffaroni y Irma Hagemeier. Buenos

(23)

23

concreto-imanente à criminalização, tutelando-se uma esfera específica de liberdade pessoal. Posteriormente, em sentido diametralmente oposto a tais colocações, diversos autores atribuem apenas um caráter exclusivamente formal ao bem jurídico, como veremos adiante.

O pensamento do autor parte de uma concepção contratualistas, característica do período iluminista, segundo a qual os homens, com o objetivo de viver em segurança, teriam aberto mão de parte de sua liberdade natural e de seu livre arbítrio, superando o estado de natureza e constituindo a sociedade civil. Por consequência, o Estado seria fruto desse contrato, cujo objetivo deve ser a garantia da liberdade de cada indivíduo ou, em outras palavras, a compatibilidade entre os direitos subjetivos de liberdade.

Nesse contexto, a criminalização seria a atividade incumbida de fixar esses limites para o exercício adequado dos direitos subjetivos dos cidadãos, protegendo-se, por meio do ordenamento jurídico-penal, contra violações em sua esfera de liberdade. Dessa forma, o direito subjetivo de um indivíduo poderia ser limitado apenas e tão somente pelo direito subjetivo de outro indivíduo. (18)

Na medida em que a definição feuerbachiana de delito previa que nem toda conduta seria passível de imposição de pena, mas apenas aquelas que efetivamente violavam

o sentido e a finalidade última do Estado ― a saber, a convivência harmônica entre os direitos subjetivos de liberdade ―, nota-se seu caráter voltado à limitação do arbítrio punitivo por parte do Estado.

Ao fixar a obrigação fundamental do cidadão de não lesionar o direito subjetivo de liberdade de seus pares como barreira intransponível ao exercício do ius puniendi, condiciona-se a legitimidade da criminalização de determinada conduta à violação concreta de um direito subjetivo alheio.

18 FEUERBACH Paul Johann Anselm Ritter von.

Tratado de derecho penal común vigente en

Alemania. Traducción de la 14 edición alemana por Eugênio Zaffaroni y Irma Hagemeier. Buenos

(24)

24

Por consequência, exsurge um conteúdo material ao delito. A violação da liberdade de outrem e do direito subjetivo decorrente passam a ser o fundamento da criminalização de uma conduta.

Com efeito, Winfried Hassemer identifica que:

“o conceito de bem jurídico deve-se à ideia de bem do iluminismo. Ele foi formulado e fundamentado por Paul Johann Anselm Feuerbach por volta do século XIX, como uma arma contra uma concepção moralista do Direito Penal. A infração contra uma norma (moral ou ética) não podia ser suficiente para explicar uma conduta como criminosa, senão, primeiramente, a prova de que esta conduta lesiona interesses reais de outros homens,

precisamente ‘bens jurídicos’ (19)

Fato é que se atribui às ideias de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach o mérito pioneiro e incontestável de promover uma função limitadora da intervenção jurídico-penal, a partir da premissa de que para ser considerada criminosa a conduta deve violar um direito subjetivo de outrem.

1.3. Birnbaum e a ideia embrionária de proteção de bens

As ideias de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach representam um marco na teoria penal, já que determinaram os contornos de um modelo que se opunha ao arbítrio estatal, próprio do absolutismo que característico da época.

Apesar de seus méritos, a teoria feuerbachiana foi questionada nos anos que a seguiram. O maior opositor dessa concepção foi Johann Michael Birnbaum. Embora o autor reconhecesse a necessidade de um conteúdo material para o conceito de crime, não entedia

19 HASSEMER, Winfried.

Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, Tradução da 2ª edição

(25)

25

que o conceito de crime deveria fazer referência à ideia de direitos subjetivos, introduzindo dessa forma a noção de bem.

Em primeiro lugar, Johann Michael Birnbaum identifica um alto grau de abstração na vinculação do conteúdo material do crime à lesão de direitos subjetivos, conforme o pensamento de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach.

Esse alto grau de abstração seria superado pela identificação do objeto do delito não como uma violação a direitos subjetivos, mas como a lesão a um bem. Nas palavras de Johann Michael Birnbaum:

Está na natureza das coisas que, para além do conceito jurídico de delito, deve haver um conceito natural deste. Quando falamos de um conceito natural de delito, entendemos por isso aquilo que, segundo a natureza do Direito Penal, pode ser razoavelmente valorado como punível pela sociedade e resumido em um conceito geral e concreto (...). Se o que se pretende é tratar o delito como lesão, então este conceito há de ser extraído naturalmente não de um direito, mas de um bem” (20)

Percebe-se que o autor buscou superar a vinculação do conceito de crime a noções jurídicas abstratas, tais a violação de um direito subjetivo, buscando atribuir como objeto do delito algo concreto, situado no âmbito fático.

Dessa forma, as condutas criminosas não afetariam essencialmente o direito cuja titularidade pode ser atribuída a algum sujeito, senão o bem que lhe é juridicamente atribuível. (21)

Em segundo lugar, Johann Michael Birnbaum identifica a impossibilidade de se explicar como lesão a direitos subjetivos algumas das condutas criminalizadas à época e,

20 BIRNBAUM, Johann Michael.

Bemerkungen über den Begriff des natürlichen Verbrechens. Archiv

des Criminalrechts. Neue Folge Band 17, 1984, p. 149.

21 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis.

Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (Doutorado). Departamento de Flosofia e Teoria do

(26)

26

sem embargo, tidas como legítimas. Seria o caso, ilustrativamente, de crimes religiosos e infrações contra os costumes e todas os demais comportamentos caracterizados por violações a interesses coletivos e que, por consequência, não estariam acolhidos segundo o modelo feuerbachiano.

Nesse contexto, Johann Michael Birnbaum define o crime como “toda lesão ou colocação em perigo de bens atribuíveis aos seres humanos” (22), afastando-se da

concepção de lesão a direitos subjetivos.

Não por outra razão, costuma-se afirmar que foi Johan Michael Birnbaum, o responsável pela superação da teoria do crime inspirada em direitos subjetivos de caráter civil, propondo os fundamentos de que se valeram os estudos que se seguiram sobre a proteção de bens jurídicos (23).

No mesmo sentido, afirma Luiz Flávio Gomes:

Como se vê, Birnbaum não falou diretamente em ‘bem jurídico’ (Rechtsgut),

mas indiscutivelmente foi o primeiro autor a introduzir no Direito penal a

ideia de ‘bem’ (um bem material) como objeto de tutela, em contraposição com a doutrina do Iluminismo, que via na danosidade social e na violação de direitos subjetivos (Rechtsverletzung) os fundamentos da punição estatal.

(24)

Importante destacar que, embora discordasse da forma como a concepção feuerbachiana vinculava o crime a uma lesão a direitos subjetivos, Johann Michael Birnbaum deu continuidade aos estudos de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach a respeito da limitação do exercício do jus puniendi em matéria criminal.

22 BIRNBAUM, Johann Michael. Bemerkungen über den Begriff des natürlichen Verbrechens.

Archiv

des Criminalrechts. Neue Folge Band 17, 1984, p. 161.

23 BUSTOS RAMÍREZ, Juan.

Introducción al Derecho Penal, 2ª edição, Santa Fé de Bogotá: Temis,

1994, p. 24

(27)

27

Para tanto, propôs uma análise da legitimidade da criminalização a partir da

existência de um “bem radicado diretamente no mundo do ser ou da realidade (objeto material), importante para a pessoa ou a coletividade e que pudesse ser lesionado pela ação delitiva” (25).

Sintetizando a mudança de paradigma em benefício de bens materiais proposta pelo autor, Maria da Conceição Ferreira da Cunha observa que ao conceito de

‘direito subjetivo’, ao Direito Penal centrado nos ‘homens e suas relações’, num ‘momento

espiritual’, sucede-se uma concepção que coloca os ‘bens materiais’ em lugar de primazia”

(26)

Com efeito, há uma verdadeira transição da referência intersubjetiva para um paradigma objetivo, relacionado à objetos concretos, situados no mundo exterior. da lesão de um direito subjetivo, de cunho pessoal, individual, volta-se à violação de coisas, que, em razão da importância que representam não só para o indivíduo como também para a coletividade, ganham a estatura de bens jurídicos, merecedores, portanto, da tutela estatal.

Em verdade, costuma-se apontar que Johan Michael Birnbaum assume uma posição intermediária, de transição entre Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach e Karl Binding, que passaremos a analisar na sequência, uma vez que o primeiro autor atribui ao conceito material de crime uma matiz puramente individual, enquanto este último confere à teoria do bem jurídico um aspecto exclusivamente sistêmico e formal.

Teríamos então, como destaca Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “uma

concepção compromissória, própria dos períodos de transição, influenciada ainda pelo iluminismo, mas também já pelo hegelianismo, pela escola histórica e pelo positivismo

moderado de Mittermaier” (27).

25 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2 ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 29.

26 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime” –

Uma perspectiva da

criminalização e descriminalização, Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 45.

27 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. “Constituição e Crime” –

Uma perspectiva da

(28)

28

De acordo com os propósitos deste trabalho, ressalta-se que Johan Michael Birnbaum deu continuidade a um aspecto fundamental da obra de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach ― o que se destaca com o intuito de fixar o objetivo dos estudos iniciais acerca da teoria do bem jurídico ―, qual seja: a limitação do exercício do poder punitivo em matéria criminal.

Nesse sentido, Bernd Schünemann esclarece que a redução feuerbachiana do conceito de delito à lesão do direito havia significado um estreitamento formal em relação à teoria material da danosidade social, de modo que Johan Michael Birnbaum teria restabelecido a continuidade da ideia iluminista, não no conceito em si, mas na busca pela limitação do poder punitivo. (28)

Se Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach procurou delimitar a criminalização por meio da noção de lesão a direitos subjetivos, foi Johan Michael Birnbaum quem enfrentou a dificuldade de se restringir o poder punitivo segundo a ideia de que apenas e tão somente a lesão de um bem, de caráter pré-jurídico, concreto e derivado da natureza ou das necessidades da vida social, condicionando a legitimidade da norma penal.

1.4. Binding, Liszt e o positivismo do século XIX

Na segunda metade do século XIX, as formulações emblemáticas acerca do bem jurídico ficaram a cargo de Karl Binding e Franz Von Liszt, cujas obras foram decisivas para que o bem jurídico assumisse o protagonismo que passou a ocupar na teoria do crime. (29)

28 SCÜNEMANN, Bernd.

La relación entre ontologismo y normativismo em la dogmática

jurídico-penal. Traducción Mariana Sacher. In Modernas tendencias em la ciencia del derecho penal y em

criminologia. Marid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2001, p. 659.

29 ANDRADE, Manuel da Costa.

A “dignidade penal” e a “carência de tutela penal” como referências

de uma doutrina teológico-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra:

(29)

29

Todavia, os autores tinham concepções opostas sobre o tema. Enquanto Karl Binding foi responsável pelo esvaziamento do conceito de bem jurídico a partir de uma perspectiva exclusivamente formalista e normativa, Franz Von Liszt procurou estabelecer um conteúdo material do delito, como fronteira limitadora da intervenção penal, ao demonstrar que é a realidade social (e não o legislador), que impõe os objetos dignos de proteção.

O pensamento de Karl Binding insere-se no contexto do pensamento positivista, que implicou na valorização de uma clara separação entre o ser e o dever ser no âmbito jurídico. O direito passou a ser encarado apenas como o conjunto das normas positivadas, independentemente da valoração de seu conteúdo (30).

O positivismo não podia compactuar com uma concepção naturalista e pré-jurídica, nos termos propostos por Johan Michael Birnbaum. Assim é que, no campo penal, foi Karl Binding o autor que, com maior contundência, representou essa crítica.

O autor negou a existência de uma concepção pré-jurídica e estabeleceu um modelo formal de delito, segundo o qual a definição do que é crime estaria condicionado unicamente à decisão do legislador, já que o Estado poderia decidir a seu arbítrio o que quer e como quer punir.

Para Karl Binding,

É bem jurídico tudo o que não constitui em si um direito, mas, apesar disso, tem, aos olhos do legislador valor como condição de uma vida sã da comunidade jurídica, em cuja manutenção íntegra e sem perturbações ela (a comunidade jurídica) tem, segundo o seu juízo, interesse e em cuja salvaguarda perante toda a lesão ou perigo indesejado, o legislador se emprenha através das normas” (31)

30 KELSEN, Hans.

Teoria Pura do Direito. 5ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins

Fontes, 1996.

31 BINDING, Karl. Die Normen und ihre Übertretungen I. Band, 4ª ed., Leipzig, 1922

apud

ANDRADE, Manuel da Costa.Consentimento e Acordo em Direito Penal. Coimbra: Editora Coimbra,

(30)

30

Assim é que a concepção de Karl Binding parte exclusivamente do direito positivo, assumindo que o fenômeno jurídico deva ser compreendido e sistematizado em si mesmo, de modo a reduzir o bem jurídico como elemento da norma cuja única função seria indicar a sua finalidade.

Em oposição às ideias de Johan Michael Birnbaum, o conceito de bem jurídico é tomado com sentido exclusivamente formal e positivado, sendo tudo aquilo o legislador identificar como merecedor da tutela penal, de forma que, na condição de mera seleção do legislador, legitima-se inclusive escolhas aleatórias e arbitrárias. Atribui-se ao bem jurídico, portanto, uma função exclusivamente sistemática. (32)

Apesar de o bem jurídico, nesta concepção, não ser objeto de uma construção social, mas de uma seleção legislativa, a teoria de Karl Binding proporcionou um caráter limitador, fragmentário, ao Direito Penal, indicando que este não pode ficar sujeito à proteção de todos e quaisquer bens, mas apenas àqueles escolhidos pelo legislador.

Embora possa se identificar historicamente que Franz Von Liszt acompanhe Karl Binding como adepto de uma ideologia positivista, as ideias de Liszt assumem uma característica naturalística-sociológica, afastando-se em muito do positivismo normativista de Binding.

Não à toa, Franz von Liszt definiu o conceito de bem jurídico de Karl Binding

como sendo um “Proteus, que pode assumir todas as formas; uma palavra que hoje significa

uma coisa e amanhã pode significar outra absolutamente diversa; um papel em branco, que pode ser preenchido com qualquer conteúdo”. (33)

Para Karl Binding, cada norma jurídica leva em si seu próprio bem jurídico, tratando-se de elementos inseparáveis, tendo o bem jurídico como um conceito abstrato,

32 BINDING, Karl. Die Normen und ihre Übertretungen I. Band, 4ª ed., Leipzig, 1922

apud

ANDRADE, Manuel da Costa.Consentimento e Acordo em Direito Penal. Coimbra: Editora Coimbra,

2004, p. 65.

33 LISZT, Franz von.

Der Begriff de Rechsgutes im Strafrecht. Zeitschrift für gesamte

Stragrechts-wissenschaft, n. 8, p. 674, 1888 apud LUZ, Yuri Corrêa. Entre bens jurídicos e deveres normativos:

(31)

31

manifestação e consequência da vontade do legislador, segundo o qual a norma criaria o bem jurídico. (34)

Este posicionamento, embora represente uma aquisição evolutiva, restou insatisfatório, uma vez que proporcionou ao indivíduo uma situação de submissão ao Estado, criando o risco de arbitrariedades, pois desde a criação da norma, com a seleção dos bens jurídicos tutelados até a execução da pena, acabaram como projeções da política estatal, sendo o cidadão mero destinatário final da norma, através de uma retribuição penal. (35)

Malgrado seu caráter evolutivo, a teoria de Karl Binding enxergava a norma como barreira instransponível na seleção dos bens jurídico-penais. A superação da norma em direção ao contexto social foi objeto da teoria de Franz von Liszt, entendendo que na sociedade devem ser identificados os bens jurídicos passíveis de serem protegidos penalmente, não se tratando de criação do legislador, mas identificação deste como consequência das relações sociais.

Ao legislador caberia inicialmente a função de identificar os bens passíveis de proteção, no contexto da sociedade, para que elaborasse normas penais adequadas para a sua proteção.

A vida em sociedade é o que acabaria por proporcionar interesses dignos de proteção penal, estando o bem jurídico para além da lógica jurídica abstrata, própria da dogmática, mas um caráter sócio-político criminal, indicando que o direito surge em razão do ser humano.

Franz von Liszt destaca que cabe à política criminal, em meio aos interesses existentes e por vezes conflitantes em uma determinada sociedade, a identificação daqueles que mereçam a proteção penal. Para o autor, conforme destaca Luiz Régis Prado, “no limite

34 BUSTOS RAMÍREZ, Juan.

Introducción al derecho penal. Bogotá: Temis, 1994.p. 25.

35 HORMAZÁBAL MALARÉE, Hermán.

Bien juridico y Estado Social y Democrático de Derecho: el

(32)

32

entre Política Criminal e Direito Penal está o lugar onde se situa o bem jurídico – como ponto

de união” (36).

Os interesses da vida em sociedade, obviamente preexistentes ao ordenamento jurídico, pois criados a partir das relações sociais, ao serem juridicamente protegidos, passariam a constituir bens jurídicos, tornando a situação da vida uma situação de direito. (37)

Fato é que a visão de Franz von Liszt é diametralmente oposta à de Karl Binding, pois “enquanto BINDING parecia acreditar na ‘plasticidade das coisas’ do mundo e

da vida nas mãos do direito, LISZT confiava mais na plasticidade reflexiva do direito para responder às exigências de uma realidade múltipla e diferente” (38).

Afirmou Franz von Liszt (39) que

todos los bienes jurídicos son intereses vitales del individuo o de la comunidade. El ordenamento jurídico no crea el interés, l ocre ala vida; peró la protección del derecho eleva el interés vital a bien jurídico (...) hace de la situación de la vida uma situació de derecho”.

Questões relacionadas à necessidade e idoneidade da pena, essenciais ao direito penal do nosso tempo, foram introduzidas na discussão pela teoria de Franz von Liszt sobre os fins da pena. Fixaram-se, dessa forma, os alicerces da subsidiariedade e fragmentariedade do direito penal.

Nesse sentido, percebe-se, em linhas gerais que, se é com Karl Binding que o bem jurídico assume forma uma dogmática, é, por sua vez, com Franz von Liszt que o conceito toma forma ainda em sua forma embrionária como elemento de política criminal.

36 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-Penal e Constituição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, 2003, p. 36.

37 LISZT, Franz von.

Tratado de derecho penal. Trad. Luis Jiménes de As[ua. 4 ed. Madrid: Editorial

Réus, 2007, p. 6.

38 ANDRADE, Manuel da Costa.

Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra: Editora

Coimbra, 2004, p. 369.

39 LISZT, Franz von.

Tratado de derecho penal. Trad. Luis Jiménes de Asúa. 4 ed. Madrid: Editorial

(33)

33 1.5. Neokantismo, formalização e o esvaziamento da noção de bem jurídico

No início do século XX, ganha força um movimento de crítica ao positivismo, representando um retorno retorno aos princípios de Immanuel Kant, opondo-se ao idealismo objetivo então predominante e o cientificismo positivista com sua visão absoluta da ciência.

O neokantismo, como teoria complementar do positivismo jurídico (40), apesar de não constituir uma metodologia exclusivamente formalista, tomando por conta a dimensão valorativa, apresentou uma noção de bem jurídico em consonância com a dependência normativa.

Afastando-se de qualquer tendência empírico-naturalista, que atribuía ao bem jurídico um substrato material, assim como da intenção de se estabelecer um padrão crítico a ser observado pelo legislador, promove-se um esvaziamento do conceito de bem jurídico ao interpretá-lo exclusivamente como método de interpretação.

Renunciando à busca por um conteúdo material para o conceito de crime, a escola neokantiana direcionou sua atenção ao rendimento teleológico da noção de bem jurídico ou, em outras palavras, sobre sua capacidade de utilização como critério de interpretação.

Segundo esse modelo, “de objeto de tutela, o coneito de bem jurídico passa a ser visto como ratio de tutela” (41), servindo exclusivamente como síntese categorial para

compreender adequadamente a mensagem do legislador em cada tipo penal, o fim objetivado pela norma.

40 SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria.

Aproximación al Derecho Penal contemporáneo, José Maria Bosh

Editor S.A., Barcelona, 1992, p. 55 e ss. 41 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis.

Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (Doutorado). Departamento de Flosofia e Teoria do

(34)

34

Costuma-se identificar em Richard Honig o expoente da concepção neokantiana de bem jurídico, exposta inicialmente em sua obra “O consentimento do Ofendido” (Die Einwilligung des Verletzten).

Mas também em Edmund Mezger encontra-se o conceito de bem jurídico como fórmula sintética da finalidade reconhecida pelo legislador, extraindo seu conteúdo de um espectro valorativo e cultural. (42)

Ao remeter o conceito de bem jurídico exclusivamente ao mundo dos valores, o também neokantismo não obteve pleno sucesso na ideia de restringir a atuação do legislador em matéria penal, pois foi apenas após a segunda guerra mundial que a matéria tornou-se relevante na discussão político-criminal.

1.6. A segunda guerra mundial e a retomada do conteúdo material

O período marcado pela ascensão, protagonismo e derrocada do regime nacional-socialista alemão provocou uma transformação estrutural marcante na teoria do direito como um todo, resultando em consequências importantes para o direito penal.

Nesse sentido, é ilustrativa a forma como Hans Welzel destaca duas passagens da obra de Gustav Radbruch: uma do ano de 1932 e outra de 1947. Um ano antes da chegada ao poder do partido nacional-socialista, o autor afirmou que “quem é capaz de impor o direito,

prova com isso que está chamado a criar o direito”, concluindo pela validez ilimitada do

direito positivo e pela impossibilidade de se conhecer um direito justo, vinculado a premissas de um direito natural. Já em um momento posterior à derrota do nacional-socialismo, o mesmo autor afirmou, em sentido diametralmente oposto à primeira reflexão, que “a ciência

do direito deve meditar, novamente, sobre a verdade milenar de que há um direito superior à lei, um direito natural, divino, racional, em relação ao qual a injustiça segue sendo injustiça,

42

El fin de cada uno de los tipos jurídico-penales se orienta em la protección de um determinado

‘bien jurídico’, cuyo descubrimiento y empleo constituye, em consecuencia, uma tarea especialmente

importante de la interpretación” (MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. Trad. José Arturo

(35)

35

ainda que revestida de forma legal”, isso tudo diante da experiência autoritária sentida

especialmente no âmbito jurídico-penal. (43)

No contexto do domínio político nacional-socialista, a teoria do bem jurídico acabou por sofrer uma nova sistemática de interpretação meramente teleológica, a partir da impugnação contundente da sua própria existência pela Escola de Kiel, que reunia penalistas simpáticos ao regime nacional-socialista. Tomava-se o bem jurídico como obstáculo às suas pretensões, negando-se qualquer efeito para a aplicação do direito positivo. (44)

Após o final da segunda guerra mundial, diante das atrocidades cometidas no âmbito dos regimes totalitários, o direito penal volta sua preocupação para a filosofia do direito e o mundo dos valores, visando à reconstrução de um ordenamento jurídico democrático.

Em meio a buscas por fundamentos de natureza ética com base na doutrina do direito natural, passa-se ao estudo do direito penal a partir de estruturas lógico-materiais. Assim, a teoria do crime Hans Welzel, em contraposição ao modelo neokantista, parte de uma perspectiva ontológica para explicar o fenômeno do crime. (45)

Segundo a perspectiva finalista proposta pelo autor, toda conduta humana poderia ser analisada dois aspectos: valor da ação e valor do resultado. O exame da conduta segunda a perspectiva finalista não se coaduna com os propósitos do presente trabalho, mas é importante destacar que a função do direito penal, para Hans Welzel, seria a proteção de valores éticos-sociais. O bem jurídico teria importância apenas na medida em que pudesse ser analisado em conjunto com o ordenamento social como um todo. (46)

43 BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva.

Da teoria do bem jurídico como critério de legitimidade do

direito penal. Tese livre docência, Universidade de São Paulo, 2010, p. 105-106.

44 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Introducción al derecho penal. Bogotá: Temis, 1994.p. 25.

45 WELZEL, Hans.

Introducción a la filosofia del derecho: derecho natural yjusticia material. Madrid:

Aguilar Editores, 1974, p. 275-285. 46 WELZEL, Hans.

Derecho penal alemán. Parte general 11 ed. Traducción Juan Bustos Ramirez e

(36)

36

Dessa forma, embora não tenha se proposto a efetivamente limitar a atuação do jus puniendi por meio da teoria do bem jurídico, o ponto positivo que se destaca da teoria de Hans Welzel é ter trazido à tona novamente importância do bem jurídico para a relação social. (47)

Retomou-se, portanto, a ideia de um conteúdo material do bem jurídico e abriu-se caminho para novos estudos de política criminal que, especialmente após à segunda guerra mundial, buscaram condicionar a legitimidade da intervenção penal a um referente material do bem jurídico.

1.7. Teorias constitucionalistas e a busca por critérios específicos

Nas linhas que se antecederam, procedeu-se a uma breve exposição da evolução histórica da teoria do bem jurídico com o objetivo de demonstrar que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos afigura-se como limite fundamental da intervenção penal, numa concepção político criminal garantista.

Parte-se, assim, da necessidade de se impor o uso mais restritivo possível do direito penal, nos casos em que se revelar necessário. A questão a ser respondida consiste em saber quando estaria legitimada a criminalização, em que situações e quais os parâmetros para se analisar a intervenção penal.

Parece natural que nem todo bem jurídico deva assumir a forma de bem jurídico penal. Mas quais os limites ou critérios específicos capazes de limitar por meio de um filtro de valoração jurídico penal a produção de normas penais?

Especialmente após a segunda guerra mundial e diante das arbitrariedades perpetradas por regimes totalitários, a ideia de Estado de Direito é reconstruída a partir do

47 BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva.

Da teoria do bem jurídico como critério de legitimidade do

(37)

37

reconhecimento de direitos fundamentais, o que pode ser sintetizado pela análise da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Nesse contexto político-social, tem-se o restabelecimento do constitucionalismo, tradicionalmente identificado como o movimento político-social, de origem histórica que remonta às civilizações antigas ― há quem sustente manifestações de

um constitucionalismo incipiente já entre o povo hebreu e, posteriormente, durante a experiência das cidades-estados gregas (48) ―, cuja principal característica é a instituição de

regras tendentes à limitação do poder e a promoção dos direitos fundamentais.

Para Joaquim Jorge Gomes Canotilho, trata-se o constitucionalismo de uma teoria/ideologia fundada no princípio do governo limitado como mecanismo indispensável à garantia dos direitos referentes à organização político-social de uma comunidade. (49)

As Constituições produzidas a partir de então apresentam como fundamento a dignidade humana, dando contornos jurídicos ao código de valores que em outros tempos remeteriam a ideais de direito natural. A relação entre o indivíduo e o Estado passa a ser conformada pelas normas constitucionais, que concretizam uma série de garantias ao cidadão.

Diante da exigência de fundamentação da intervenção penal a partir da política criminal e do próprio texto constitucional, a teoria do bem jurídico também se adequou ao novo paradigma. Parte-se do raciocínio segundo o qual se a sanção penal afeta diretamente os direitos fundamentais protegidos pela Constituição, a criminalização deve atingir apenas valores consagrados em normas constitucionais.

Passa-se a identificar na Constituição uma referência para a intervenção penal. A pedra angular para o desenvolvimento da problemática proposta pelo presente trabalho é

48 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970, p. 154/157.

49 CANOTILHO, Joaquim Jorge Gomes.

Direito Constitucional e teoria da constituição, 7 ed.

Referências

Documentos relacionados

Por outro lado, não nos furtaremos a incorporar os ensinamentos da teoria neoinstitucio- nalista, atentando para a autonomia burocrática da Anvisa e o possível controle exercido

A cultura material e o consumo são contextualizados com o design, e são demonstradas estratégias de sustentabilidade no ciclo de vida nos produtos de moda.. Por fim, são

Avraham (Abraão), que na época ainda se chamava Avram (Abrão), sobe à guerra contra os reis estrangeiros, livrando não apenas seu sobrinho Lot, mas também os reis

Não é admissível que qualquer material elétrico não tenha este tipo de verificação, ainda mais se tratando de um produto para uso residencial... DI SJ UN TO RE S RE SI DE NC IA

Durante o trabalho coletivo, no campo e nas faenas – uma espécie de mutirão muito comum na organização social de povos andinos (ver Isbell, 2005) – mascar coca,

(D) É melhor para o empregado X aceitar as condições impostas pela Ferrovia Centro Atlântica S/A, pois em tempos de crise a CLT não é respeitada e o Poder Judiciário sequer

O peso de cem grãos e o comprimento de vagem não são afetados pelas diferentes densidades de plantas. O aumento da população de plantas reduz a produção

Em seguida, realiza-se um estudo clínico, onde se busca avaliar a relação existente entre as variações observadas na área do segmento ST, na amplitude do ponto J e na amplitude