• Nenhum resultado encontrado

Análise das supostas obrigações constitucionais de criminalização

PARTE III – A CRIMINALIZAÇÃO DE SEU TEMPO

7. B EM J URÍDICO E C ONSTITUIÇÃO : L IMITES E P ARÂMETROS PARA A

7.2 Constituição como limite do direito penal

7.3.2 Análise das supostas obrigações constitucionais de criminalização

Nas linhas que antecederam o tópico que se inicia, foram abordados os pontos principais acerca da teoria dos mandados constitucionais de criminalização, normas contempladas expressa ou implicitamente no texto da Constituição, que supostamente vinculariam a produção legislativa ao tornar obrigatória aprioristicamente a criminalização de determinadas condutas.

A doutrina que adota a teoria em questão sustenta que nesses casos o constituinte já teria se antecipado na avaliação da dignidade e da necessidade da tutela penal, não restando ao legislador qualquer liberdade para analisar concretamente a necessidade de normas penais destinadas à matéria.

Nesse sentido, a autora portuguesa Maria da Conceição Ferreira da Cunha afirma que “no caso de imposições expressas, a Constituição como que implicitamente declara não só a dignidade, mas também a carência de tutela penal” (341).

Como já se adiantou na abertura do capítulo (342), a pedra angular para o descortinamento do tema reside em estabelecer se a Constituição é limite (fixando um patamar máximo) ou fundamento do direito penal.

Isso porque, se for considerada limite do direito penal, a Constituição não poderia estabelecer uma relação de obrigatoriedade face à criminalização, mas sim uma relação de possibilidade de fazê-lo, diante da efetiva necessidade a ser verificada pelo legislador, ao passo que, sendo considerada fundamento do direito penal, as normas constitucionais ensejariam sua utilização, muitas vezes como “prima” e não como “ultima ratio”, em especial nos casos de mandados expressos de criminalização.

341 FERREIRA CUNHA, Maria da Conceição. Constituição e crime: uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 316.

342

187

A ideia de que a Constituição fundamenta e não limita a incidência do direito penal legitima discursos no sentido de que certas condutas devem obrigatoriamente ser penalmente previstas, dispensando qualquer investigação acerca de necessidade e eficácia da intervenção punitiva.

Dessa forma, se se pretende fiel ao propósito de um direito penal mínimo, somente se pode vislumbrar na Constituição um limite positivo ao poder punitivo estatal, afastando-se de plano a tese de que as normas constitucionais constituiriam se fundamento, obrigando a criminalização de condutas independentemente da real e concreta necessidade social.

Assim é que a tomada da Constituição como limite do direito penal permite que, mesmo diante de determinações (ou mandados) expressas de criminalização, não exista obrigatoriedade de tipificar, mas sim a possibilidade de fazê-lo, condicionada a uma efetiva necessidade da produção normativa, verificada pelo legislador ordinário.

Conforme afirma Alessandra Baratta, nenhum direito, ontologicamente e por sua própria natureza, pode ser automaticamente considerado digno e carente de tutela penal, ressaltando que “não existem bens jurídicos reconhecidos na constituição que por sua própria natureza imponham que nela se estabeleça uma norma tácita que tenha por objeto uma obrigação deste tipo”. (343)

Francisco Muñoz Conde aduz, no mesmo sentido, que:

“(...) no todo bien merecedor de protección esta necessitado de protección penal. Muchas veces bastará con la que le conceden lan leyes civiles, administrativas etc. Conforme al principio de intervención mínima el Derecho penal concederá, pues, su protección, cuando fracasen o sean

343 BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico”. Trad. Ana Lúcia Sabadell. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São

188

insificientes las barreras protectoras que deparan las demás ramas jurídicas”. (344)

A inexistência de obrigatoriedade em relação ao legislador ordinário em matéria penal decorre, inicialmente, da constatação de que as determinações expressas de criminalização estão diretamente relacionadas a fatores históricos ou demandas sociais predominantes à época da elaboração da Constituição. Tais fatores ou demandas podem não perdurar ao longo do tempo, já que os textos constitucionais se propõem eternos.

Muitas vezes, as Constituições adiantam juízos de valor que devem ser feitos pelo legislador, em função da experiência histórica e de projetos e objetivos aos quais os países se propõem no momento da promulgação da nova Constituição, visando principalmente impedir o retorno de experiências trágicas, como no caso do texto constitucional alemão prever punição para atividades preparatórias de guerra, ou tutelar bens cuja proteção é tema atual, como no caso do meio ambiente nas Constituições brasileira e espanhola. (345)

Não menos relevante é a evidência de que o constituinte apresenta um quadro máximo, dentro do qual o legislador ordinário, observando os princípios básicos informadores do direito penal, deve orientar a produção legislativa.

Ressalte-se que nem Hans Kelsen pretendeu aprisionar o legislador às normas constitucionais. Sobre as regras de produção das normas, o autor afirmava que as normas de um escalão inferior devem buscar seu fundamento de validade em normas de um escalão superior; todavia, no que diz respeito ao conteúdo das normas, o jurista apontou a existência inevitável de uma margem de livre apreciação por parte do legislador. (346)

344 CONDE, Francisco Muños. Introducción al Derecho Penal. Barcelona: Boch, 1975. p. 74.

345 MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Constituição e escolha dos bens jurídicos, Revista

Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra: Aequitas – Editorial Notícias, ano 4, fascísulo 2, abr./jun. 1994, p. 173.

346 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 8ª ed. São Paulo:

189

Dessa forma, é curioso notar que nem mesmo o autor a quem se aponta quando se pretende referir-se à teoria clássica do positivismo jurídico imaginou que a Constituição vincularia a produção legislativa e supriria a apreciação concreta do legislador. A tradicional analogia de Hans Kelsen é ilustrativa, ao apontar que normas de escalão superior equivaleriam a uma moldura ou quadro, a ser preenchido pela norma inferior, de modo que “mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer”. (347)

Alberto Silva Franco assume postura especialmente crítica em relação ao fato do legislador constituinte ter se antecipado ao legislador ordinário na tarefa incriminadora, chegando a afirmar que por meio de tais mandados constitucionais de criminalização “verdadeiros ovos de serpentes, é posto em xeque o caráter instrumental e garantístico da intervenção penal para atribuir-se ao controle social penal ou uma função puramente promocional ou uma função meramente simbólica”. (348)

Dizer que o constituinte avalia aprioristicamente o merecimento e a necessidade da tutela penal, estando, por consequência, o legislador obrigado a criminalizar certas condutas equivale a negar o caráter material da lei e da própria Constituição, numa perspectiva eminentemente formalista e dissociada dos princípios que instruem o direito penal e, em suma, pressupõem a avaliação de uma necessidade efetiva e não meramente formal da tutela penal.

Nesse contexto, não parece razoável a afirmação de Lenio Luiz Streck no sentido de que “o legislador ordinário não tem liberdade nem para criminalizar, nem para descriminalizar. Dizendo de outro modo, para retirar a proteção penal – ou do processo penal

347“A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o

ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer” (Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 388)

348 SILVA FRANCO, Alberto. Do princípio da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção.

190

- o Estado-legislador deve provar que o direito penal (ou a norma de processo penal que impõe exigências para alcançar a liberdade) tornou-se desnecessário”. (349)

Em verdade, é justamente o contrário. O legislador não deve provar que a norma de natureza penal tornou-se desnecessária, mas sim avaliar a necessidade concreta de uma ameaça ao bem jurídico para que a criminalização seja legítima.

A preocupação de Antonio Carlos da Ponte sobre a “eleição de critérios seguros” para a identificação de mandados implícitos de criminalização, ao que apresenta como solução “uma análise contextual da Carta Magna”, que não poderia “se dar no campo meramente subjetivo, atrelado unicamente ao talante do intérprete” (350), demonstra por si só a

fragilidade e insegurança insuperável dessa teoria.

Só um apego excessivo e desproporcional ao formalismo tornaria a “análise contextual da Carta Magna”, imaginada por Antonio Carlos da Ponte (351), apta a justificar a

criminalização. Conforme já se adiantou nesse trabalho, os princípios básicos que fundamentam um direito penal mínimo impõem que sejam avaliados não apenas a dignidade (constitucional) do bem jurídico em questão, mas também e indispensavelmente a carência de uma expectativa identificada concretamente na sociedade de que a violação ao bem jurídico tutelado deva ser objeto de sanção de natureza penal.

Com razão, Janaína Conceição Paschoal afirma que “falta à doutrina um posicionamento firme e coerente com relação ao papel que a Constituição deve exercer frente ao Direito Penal”. (352)

349 STRECK, Lenio Luiz. Parecer do Ministério Público. Tribunal de Justiça: 5ª Câmara Criminal

origem: Porto Alegre. Disponível em:

<http://www.mp.rs.gov.br/areas/atuacaomp/anexos_noticias/progressao_lenio_parecer.doc> Acessado em 01 de março de 2011.

350 PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 166. 351 PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 166.

352 PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição criminalização e direito penal mínimo, 2002. Tese

191

Pois bem. É, de fato, incompatível que a doutrina ora ressalte os princípios da fragmentariedade, da subsidiariedade e da intervenção mínima do direito penal para, em um momento seguinte, apegar-se a um formalismo exagerado e assumir que o direito penal deve ser aplicado ainda que não represente a melhor forma de tutela, apenas porque consta de previsões abstratas e por vezes implícitas no texto constitucional.

Sendo fragmentariedade, subsidiariedade, necessidade e ofensividade princípios essenciais informadores do direito penal, devem ser aplicados integralmente no sistema criminal, não se podendo excepcionar situações em homenagem a um posicionamento formalista em relação à Constituição. A necessidade da tutela penal perante a sociedade deve ser avaliada não apenas quando da elaboração do texto constitucional, mas também ― e principalmente ― quando da elaboração da própria norma penal pelo legislador ordinário, que tem como limite máximo justamente o próprio texto constitucional.

Se as determinações (também chamadas de mandados) constitucionais expressas de criminalização devem ser tomadas apenas como situações possíveis ― jamais obrigatórias ― de criminalização, sujeitando-se indispensavelmente à avaliação concreta de sua necessidade pelo legislador, por imperativo lógico também não há que se falar em obrigações decorrentes dos chamados mandados constitucionais implícitos de criminalização.

A busca por um direito penal mínimo não pode caminhar ao lado de uma Constituição que apresenta, em seu bojo, deveres abstratos decorrentes de necessidades aprioristicamente tomadas como pressupostas que imponham a criminalização de determinadas matérias.

Com efeito, Janaína Paschoal (353) traça um ilustrativo paralelo “entre a obrigatoriedade de criminalização (no caso de indicações constitucionais ou determinações constitucionais expressas) e as prisões provisórias obrigatórias, ou seja, decretadas em função da natureza (ou ‘gravidade’) do delito e não da análise da necessidade da cautela excepcional. Ora o Direito Penal, dentro de uma filosofia de última ‘ratio’, também deve ser tomado como excepcional”.

353

PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição criminalização e direito penal mínimo, 2002. Tese (Doutorado em Direito Penal) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, p. 72.

192

Diante desse cenário, deve-se tomar a tipificação constitucionalmente delineada como sendo possível e jamais obrigatória. Deve sempre o legislador penal ordinário verificar a necessidade da criminalização diante do cenário social. Os princípios básicos que fundamentam um direito penal mínimo impõem que sejam avaliados não apenas a dignidade (constitucional) do bem jurídico em questão ― sendo a Constituição limite positivo do direito penal ―, mas também e indispensavelmente a carência (real, concreta, fática) ― essa sim fundamento do direito penal ― de uma expectativa identificada na sociedade de que a violação do bem jurídico tutelado deva ser objeto de sanção de natureza penal.