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Limites e parâmetros para a criminalização de nosso tempo

PARTE III – A CRIMINALIZAÇÃO DE SEU TEMPO

7. B EM J URÍDICO E C ONSTITUIÇÃO : L IMITES E P ARÂMETROS PARA A

7.4 Limites e parâmetros para a criminalização de nosso tempo

Em linhas anteriores, demonstrou-se que a partir do final do século passado nossa sociedade tem experimentado transformações estruturais profundas, mediante uma redefinição dos papéis sociais e um acréscimo de complexidade aos sistemas que compõem essa rede comunicacional.

Falou-se que as últimas décadas têm sido objeto de diversas nomenclaturas: a pós-modernidade de Jean Lyotard e Boaventura de Sousa Santos, a modernidade líquida de Zygmunt Bauman e a sociedade do risco de Ulrich Beck e Anthony Giddens são alguns exemplos, a partir da noção de que a dinâmica das relações humanas e o funcionamento da sociedade, bem como sua relação com a natureza, têm sofrido mudanças profundas.

Dessa forma, vivemos em tempos de mudanças significativas e sentidas num âmbito global. Alterações profundas na ordem econômica (globalização), ambiental (dilemas relacionados à poluição) e político-cultural (expansão do regime democrático) propõem novos contornos para a sociedade de nosso tempo. (354)

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Conforme já ressaltado, são tempos de insegurança global: tempos de risco. Diante do cenário amedrontador, de forma análoga à mentalidade científica que atribui os malefícios da modernidade à implantação incompleta ou insuficiente de seus fundamentos (ao invés de reconhecerem uma modernidade fora do controle, ela mesma geradora de novos riscos), resulta o perigo de se exigir uma extensão ilimitada do papel do Estado e especialmente de sua função repressiva ― cuja manifestação extrema é o direito penal ― buscando o combate dos novos perigos e riscos da condição social atual.

Nesse contexto, destaca-se a expansão do direito penal mediante a “creación de nuevos bienes jurídico-penale, ampliación de los espacios de riesgos juridico-penalmente relevantes, flexibilización de las reglas deimputación y relativización de los principios politicos criminales” (355).

Com efeito, demonstrou-se inicialmente que a intervenção penal encontra fundamento na identificação de uma situação de relevante lesão ou perigo a um bem jurídico, missão que incumbe ao legislador, mediante uma análise concreta das expectativas sociais.

Paralelamente a essa constatação é importante sublinhar que a criminalização está limitada positivamente pelas normas constitucionais, pois conforme se pretendeu demonstrar no presente capítulo, a aproximação entre a Constituição e o direito penal justifica-se na medida em que os princípios e garantias constitucionais dão forma a um direito penal mínimo.

O bem jurídico que fundamenta a expectativa consubstanciada em uma norma incriminadora deve estar contemplado na Constituição, mas especificamente na forma de um direito fundamental, uma vez que a sanção aplicada como consequência do delito viola por sua natureza um direito fundamental daquele que pratica o crime.

Nesse sentido, cumpre destacar que os tratados internacionais sobre direitos humanos também são capazes de limitar a produção de normas incriminadores, pois gozam de eficácia supralegal, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal.

355 SILVA SÁNCHEZ, JESÚS-MARÍA, La expansión del derecho penal: aspectos de la política

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O voto do Ministro Marco Aurélio, no julgamento da ADPF 187, ilustra essa situação, na medida em que considerou derrogado o crime de apologia de crime ou criminoso, previsto no artigo 287 do Código Penal, em função da extensão conferida à inatingibilidade da liberdade de expressão no Pacto de São José da Costa Rica, internalizado no direito brasileiro pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. (356)

Todavia, cumpre destacar que a Constituição não apenas limita a intervenção penal, mas também impõe a observância à hierarquia dos direitos fundamentais como critério para a criminalização, que deve tomar como parâmetro a escala de valores contemplada constitucionalmente.

Já alertava para isso Cesare Bonesana, ao afirmar que o legislador deve “ser um habilidoso arquiteto, que saiba igualmente utilizar todas as forças que podem colaborar para firmar o edifício e debilitar todas as que possam arruiná-lo”. (357)

É curioso comparar a referência que o Marquês de Beccaria faz à construção de um edifício, remetendo ao que ora se afirma tratar-se do acoplamento estrutural entre direito penal e política criminal (bem jurídico), com o que Niklas Luhmann diria séculos após sobre o acoplamento estrutural mais geral, entre direito e política (Constituição): “a invenção da Constituição, e que de todo modo a ela se coligam fragmentos de tradição, é a chave de retorno desse edifício. E a partir daí é reorganizado o material estrutural e semântico disponível naquele momento.” (358)

356

“A convenção interamericana de direitos humanos – Pacto de São José da Costa Rica, internalizado no direito brasileiro pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992 – proclama a intangibilidade da liberdade de expressão. Referida liberdade, nos termos do Pacto, não pode sofrer peias. Apenas se admite a responsabilidade civil pós-fato. É o binômio: liberdade- responsabilidade, característica das sociedades livres, em oposição às sociedades paternalistas e tuteladas. (...)Parece- me, portanto, ser legítimo afirmar ter havido derrogação do artigo 287 do Código Penal com o advento do Pacto de São José da Costa Rica. A conjugação dos preceitos 13 (1) e 13 (5) conduz à conclusão de que somente são legítimos os crimes de opinião quando relacionados ao ódio nacional, racial ou religioso bem como a toda propaganda em favor da guerra. Fora disso, o reconhecimento de que a emissão de opinião pode configurar crime deve ser considerado proscrito pelo referido Tratado.” (STF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 - Distrito Federal)

357 BONESANA, Cesare (Marquês de Beccaria). Dos delitos e das penas. São Paulo: Rideel, 2003, p.

86.

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As bases desse edifício da criminalização devem tomar como referência o núcleo central dos direitos fundamentais, apresentado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. (359)

Em caso de desequilíbrio, caberia intervenção do sistema jurídico para restabelecer parâmetros constitucionalmente adequados apenas no sentido de uma limitação da intervenção penal.

É dizer que a atuação jurisdicional, em função dos princípios constitucionais relacionados ao direito penal mínimo, só estaria legitimada para corrigir eventuais distorções de forma negativa: ao revogar ou deixar de aplicar determinada norma penal incriminadora ou, eventualmente, reduzir-lhe a pena cominada pelo legislador em consonância com a razoabilidade do sistema como um todo.

Dessa forma, não há como obrigar o legislador a produzir ou mesmo impedir que revogue normas penais. O que se deve exigir é que a criminalização obedeça aos parâmetros consolidados nos valores constitucionais, sendo legítimo ao sistema jurídico reconhecer e corrigir abusos eventualmente cometidos pelo sistema político, sempre em benefício dos direitos e garantias individuais, que dão forma ao direito penal mínimo de nosso tempo.

359 Ilustrativamente, poderiam ser mencionadas distorções tais as penas desproporcionais cominadas

aos artigos 184, 273, 331 (este, especialmente se comparado às penas do crime de abuso de autoridade) do Código Penal.

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CONCLUSÕES

A história da humanidade marcha segundo a ambivalência entre

liberdade e segurança, dois valores absolutamente indispensáveis para que a

vida se desenvolva de forma plena. Para Zygmunt Bauman, será eterna a busca

por sua perfeita combinação, a fórmula de ouro.

Liberdade sem segurança é o domínio do caos, situação em que

não poderia germinar qualquer expectativa; o inverso resulta em subjugação,

domínio completo. A vida precisa de previsibilidade, tanto quanto o livre

arbítrio é inerente ao homem.

O movimento pendular entre liberdade e segurança conduziu as

relações sociais ao longo da nossa evolução. A partir de uma conquista evolutiva

em nome da liberdade, operou-se a diferenciação entre os sistemas jurídico e

político.

Se num momento anterior as funções do poder estavam

concentradas nas mãos arbitrárias de uma figura soberana, houve uma ruptura

identificada na sociedade ocidental a partir do século XVIII que proporcionou a

diferenciação sistêmica e a desconcentração de funções a partir de operações

próprias e distintas, especialmente no âmbito político e jurídico.

Direito e política assumiram a forma de sistemas autônomos na

sociedade. Segundo a ótica de Niklas Luhmann, trata-se de sistemas

autopoieticos, operacionalmente fechados por meio da repetição de funções

próprias e exclusivas, porém cognitivamente abertos e sujeitos a interferências

recíprocas.

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O direito tem como função a generalização congruente de

expectativas normativas. À política cabe a tomada de decisões coletivamente

vinculantes. O direito opera com expectativas normativas, a política trata de

expectativas cognitivas.

Assim, direito e política são sistemas autônomos e que não se

confundem. Todavia, estão ligados por um acoplamento estrutural, qual seja, a

Constituição, que surge como aquisição evolutiva decorrente da diferenciação

funcional e necessidade de religação entre os sistemas.

Da diferenciação entre direito e política, tem-se

― por

consequência e mais especificamente

― a dicotomia entre direito penal e

política criminal.

Ao direito penal compete a generalização congruente das

expectativas normativas, mediante a aplicação das sanções mais severas de um

ordenamento jurídico, enquanto a política criminal tem como função a tomada

de decisões coletivamente vinculantes, relacionadas aos valores e interesses

essenciais para a vida em sociedade.

A ideia que se defende é que ― tal a Constituição para os sistemas

jurídico e político, segundo a concepção luhmanniana ― o bem jurídico

desempenhe a função a função de acoplamento estrutural entre estes

subsistemas, produto da diferenciação funcional entre ambos.

Dessa forma, a intervenção penal está sujeita a uma análise de

legitimidade a partir da noção de bem jurídico.

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Tal qual as normas constitucionais provocam irritações recíprocas

nos sistemas jurídico e político, é por meio do bem jurídico que as tensões entre

direito penal e política criminal se estabilizam.

Daí exsurge a primeira conclusão: a intervenção penal

fundamenta-se no bem jurídico. Ao elaborar normas incriminadoras, o legislador

está vinculado à identificação de situações abstratas relevantemente lesivas ou

perigosas a um bem jurídico, pois a sanção cominada pelo direito penal é a mais

severa do ordenamento jurídico. Assim como, pela mesma razão, o julgador está

vinculado à constatação de uma situação concreta de lesão ou perigo relevantes

a um bem jurídico para a aplicação de uma sanção criminal.

Com efeito, o direito penal está contido no sistema jurídico e a

política criminal está contida no sistema político: são subsistemas. Atendendo à

mesma lógica, se o direito e a política encontram-se estruturalmente acoplados

pela Constituição e o direito penal e a política criminal estão estruturalmente

acoplados pelo bem jurídico, ambos (Constituição e bem jurídico) devem

guardar alguma relação.

Trata-se de uma relação de continência: para uma existência

legítima do acoplamento estrutural menor (bem jurídico), ele deve estar

contemplado no acoplamento estrutural maior (Constituição).

Daí se extrai a segunda conclusão: as normas constitucionais

limitam positivamente a intervenção penal, pois o bem jurídico deve estar

previsto no texto constitucional.

Essa é a leitura que se faz dos sistemas jurídico (penal) e político

(criminal) de nosso tempo.

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Todavia, a sociedade desse nosso tempo é vista como sociedade de

risco, segundo a visão de Ulrich Beck, destacando-se que a dinâmica das

relações humanas e o próprio funcionamento da sociedade, bem como sua

relação com a natureza, têm sofrido profundas mudanças.

A contingência e imprevisibilidade natural às relações sociais

parecem ter se intensificado nas últimas décadas. Nesse contexto, destacam-se

modelos que se propõem a adaptar o sistema penal para os novos desafios.

No âmbito do direito processual penal, cogitam-se diferentes

velocidades, destacando-se a flexibilização de direitos e garantias

constitucionalmente assegurados, em benefício de uma atuação mais célere e

pretensamente eficaz para a aplicação de sanções de natureza criminal.

Na esfera do direito penal, propõe-se a existência de mandados

constitucionais, situações em que a criminalização seria obrigatoriamente fixada

pela Constituição, a exigir a intervenção penal com vistas a uma suposta

proteção de determinados direitos mediante a correspondente cominação de uma

pena criminal.

O pêndulo parece mover-se pra longe da liberdade. Mas as rédeas

ainda estão ao nosso alcance: os direitos e garantias fundamentais contemplados

na Constituição Federal não dão margem a um direito penal máximo e

simbólico.

Os riscos ou medos contemporâneos não são expectativas que

comportam a atuação do sistema jurídico penal.

200

O processo penal constitucional não admite a flexibilização de

seus princípios e garantias, sob a forma de diferentes velocidades. Não se refuta,

porém, a criação de um direito de intervenção, nos termos imaginados por

Winfried Hassemer.

Que fique claro, porém, que não se estaria tratando do sistema

penal. Se o direito penal se diferencia funcionalmente pela cominação das

sanções mais graves de um ordenamento jurídico e ao pretenso direito de

intervenção estas não se lhe aplicariam, está nítida a configuração de um novo

subsistema, que então estaria legitimado a adotar as suas próprias operações.

Da mesma forma, a existência de supostas obrigações

constitucionais de criminalização não se sustentam diante de nosso sistema

penal constitucional.

A intervenção penal apresenta como fundamento a existência de

uma situação identificada pelo legislador de relevante lesão ou perigo a um bem

jurídico. Tais bens jurídicos devem estar contemplados na Constituição, o que

torna a criminalização limitada positivamente pelas normas constitucionais.

Não há razão para subverter essa lógica e encarar o texto

constitucional como o próprio fundamento da criminalização, propiciando a

existência de um direito penal máximo, pois estamos diante de uma Constituição

extensa, que se propôs a tratar das mais diversas temáticas e desafios sociais.

Essa subversão vai de encontro a toda construção teórica do bem

jurídico enquanto critério de legitimidade da intervenção penal, que remonta ao

século XVIII, bem como desconsidera em absoluto a estrutura principiológica

em que se sustenta o sistema penal de nosso tempo.