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PARTE I – BEM JURÍDICO, CONSTITUIÇÃO E DIREITO PENAL MÍNIMO

1.9. Uma visão do bem jurídico penal

As diversas concepções sobre o bem jurídico só podem ser compreendidas como produto de seu tempo, no contexto político e filosófico em que foram imaginadas. Fato é que, independentemente das características apontadas, pode-se afirmar que o bem jurídico penal apresenta sempre uma varga valorativa.

Pretende-se fixar as âncoras do presente trabalho em dois pontos basilares apresentados pela teoria do bem jurídico: (i) a existência de um conteúdo material, com referência indissociável ao ser humano e (ii) a necessária ― mas não suficiente! ― contemplação constitucional para uma legítima intervenção penal.

Antes da abordagem desses dois elementos, cumpre destacar um aspecto elementar, mas por vezes negligenciado: mediante a consagrada expressão bem jurídico não se quer dizer que o bem seja ontologicamente fruto do sistema jurídico, mas sim que o direito

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Especialmente em “4.2. Direito penal e política criminal”

60“(...) el planteamiento de Jakobs es más positivista que funcionalista” (RAMOS, Enrique Peñaranda. Sobre la influencia del funcionalismo y la teoria de sistemas em las actuales concepciones de la pena y delito - in DIEZ, Carlos Gómez-Jara, Teoria de sistemas y derecho penal – fundamentos e possibilidades de aplicación. Granada: Ed. Comares, 2005, p. 243)

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o toma como objeto, seja ela próprio de sistemas biológicos (ex: vida) ou do sistema econômico (ex: patrimônio).

Édson Luís Baldan explica que melhor seria falar-se em bem juridicizado, pois,

“embora seja uma questão unicamente de nomenclatura, o uso impróprio da locução ‘bem jurídico’, além de ocultar uma impropriedade semântica, revela uma confusão entre os planos ideal e real. Bem jurídico significa bem do Direito, isto é, um bem que pertence ao Direito e, não, que por ele seja apenas protegido. Bens jurídicos são o ordenamento jurídico, o acervo jurisprudencial, as elaborações teóricas da ciência jurídica, os institutos e tradições do Direito. Não mais. O patrimônio não é um bem, em si, ‘jurídico’, mas, corretamente, um bem econômico; a vida é um bem biológico; a honra um bem moral e assim por diante. Todos estes bens, ao terem seu valor reconhecido pelo Direito, transformam-se em bens juridicizados, mas jamais jurídicos. Embora não comportado adequadamente pela língua portuguesa, melhor ainda seria falar em “bens juridicizandos”, pois, ao contrário do particípio que evoca uma ação já consumada, o gerúndio expressa uma ação em realização atual, remetendo, com isso, à historicidade do Direito, já que a proteção do Direito sobre os bens não é plena e tampouco eterna. Falar simplesmente em “bem jurídico” pode conduzir a equívocos pela indistinção entre os planos ideal e real. (62)

Assim, ao sublinhar que não existe um bem ontologicamente jurídico penal, é importante notar que dado bem jurídico penal é tão-somente o bem jurídico penal de seu tempo. Não há um bem jurídico penal absoluto, pois até mesmo a vida pode deixar de se

62 BALDAN, Édson Luís. Intertipicidade penal. Tese (Doutorado em Direito Penal) – Pontifícia

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revestir da característica de bem jurídico penal no caso de violação sob incidência de uma norma permissiva. (63)

Portanto, ao se falar de bem jurídico penal de seu tempo, antevendo brevemente as considerações que se seguirão sobre a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhman (64), não se pretende adotar uma visão ontológica, absoluta e que se confirme eterna de bem jurídico.

A tentativa é demonstrar que o bem jurídico é uma aquisição evolutiva (65) e, como diferente não haveria de ser, assumiu diversas formas e conteúdos ao longo da história e outras tantas poderá assumir diante da contingência inevitável que o futuro nos reserva.

Dessa forma, procedeu-se a uma breve demonstração da evolução histórica da teoria do bem jurídico como critério de legitimidade da criminalização para que se pudessem notar as formas e características que a noção de bem jurídico assumiu ao longo do tempo.

O nosso tempo é o de uma sociedade de riscos, mas também de uma Constituição Federal garantista, fundamentada na proteção da dignidade da pessoa humana, que constitui o alicerce para uma série de princípios penais e processuais penais que compõem a moldura de um direito penal mínimo.

Portanto, conforme já se adiantou nas primeiras linhas deste tópico, a visão que se apresenta do bem jurídico é decorrente de duas premissas: (i) a existência de um conteúdo material, com referência indissociável ao ser humano e (ii) a necessidade de sua contemplação constitucional para uma legítima intervenção penal.

63 Entendemos que normas proibitivas, imperativas e permissivas devem ser vistas como unidade,

malgrado sua formulação separada. Atuar tipicamente, mas não-antijuridicamente, representa tanto não-proibido como um comportamento que, desde o princípio, está de acordo com a prescrição aparente da norma. Nestes casos estará ausente a proteção jurídica sobre o objeto material, sequer podendo-se falar, rigorosamente, em “bem jurídico”, pois este somente se aperfeiçoa, conceitualmente, quando valioso para o Direito. (BALDAN, Édson Luís. Intertipicidade penal. Tese (Doutorado em Direito Penal) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010, p. 223.)

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“Parte II – Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann”

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O conteúdo material pressupõe o resgate da noção de bem jurídico do mundo abstrato e axiológico, mediante sua integração na realidade social; remete à capacidade de uma conduta em proporcionar lesão ou perigo de lesão socialmente relevante a determinado bem da vida. Aliado a isso, a referência central ao ser humano é elemento que se acrescenta como parâmetro para aferição do potencial de produção de tal lesão, na medida em que uma sociedade livre e democrática representa uma conquista evolutiva, cujo pressuposto é assegurar a expectativa de que as liberdades individuais violadas sejam penalmente reprimidas.

Sem embargo, a necessidade de consagração do bem jurídico na Constituição para revesti-lo do caráter penal fundamenta-se na ideia de que só um consenso de nível constitucional pode justificar a aplicação da pena mais intensa reservada pelo ordenamento jurídico. Um indivíduo que frustre determinada expectativa normativa apenas deve receber a censura de natureza criminal se lesar um bem jurídico de nível constitucional, já que a sanção que lhe será imposta será a mais gravosa de que o Estado pode se valer e, inexoravelmente, implicará em uma violação de algum de seus direitos fundamentais (seja a liberdade, cuja pena privativa é a essência do direito penal de nosso tempo; quer a restrição de algum outro direito).

Jesús-María Silva Sánchez (66) sintetiza ambos os traços marcantes do bem jurídico penal, ao afirmar que

“de ahí que quizá se alo mejor el integrar em uma sola ideal os aspectos de «referencia individual» y de «dañosidad social», afirmando que el objeto de protección jurídico-penal necessariamente debe expressar las condiciones que hacen posible um libre desarrollo del individuo a través de su participación em la vida social. (...) La exigencia de uma consagración constitucional, directa o indirecta, de los bienes penalmente protegibles me parece, pues, plenamente justificada.

66 SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: J.M.

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A partir da breve demonstração da evolução da teoria do bem jurídico como paradigma de legitimidade da criminalização a que se procedeu no presente capítulo, procurou-se apontar os traços mais marcantes construídos pelos autores responsáveis pelo desenvolvimento do tema.

Em linhas gerais, o capítulo se propôs a fixar os alicerces para a demonstração, ao longo das linhas que se seguirão, de que o único e legítimo fundamento para a criminalização é a lesão (ou ameaça de lesão) relevante para um bem jurídico, identificado concretamente pelo legislador diante do contexto social, com referência ao potencial lesivo ao ser humano, cujas limitações se encontram no quadro de valores contemplados na Constituição.