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PARTE II – TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

3.2 A sociedade na teoria dos sistemas

Para Luhmann, a observação e o conhecimento são construções de quem observa. Dessa forma, tais construções não guardam necessária correspondência com a realidade externa, na medida em que são produto da linguagem do observador, baseadas em distinções. É a partir da distinção (e de distinções conectadas à distinção inicial) que Luhmann observa a sociedade. (126)

Um sistema caracteriza-se pela diferença com seu ambiente e se individualiza pelas operações internas de auto-reprodução de seus elementos. A sociedade é um grande sistema, do qual o homem é o ambiente necessário e indispensável para sua reprodução e que opera internamente mediante todas as formas de comunicação.

Luhmann é claro ao afirmar que entender a sociedade como um sistema (uma distinção sistema/ambiente) “não significa absolutamente que seja suficiente a teoria geral dos sistemas para que em virtude de um procedimento lógico possa deduzir o que se possa entender por sociedade” (127)

O ponto de partida luhmanniano é, portanto, a distinção sistema/ambiente. E a sociedade é o sistema que opera mediante comunicação, tendo como seu ambiente o homem. Sociedade é sinônimo de comunicação, sendo que a sociedade (e, por consequência, a comunicação) moderna se desenvolve(m) mediante diversos sistemas parciais. São exemplos de sistemas parciais os sistemas político, econômico e jurídico.

125 Ao longo de um semestre com encontro semanais, nas aulas de “Teoria Geral do Direito”,

ministradas no curso de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, durante o segundo semestre do ano de 2011.

126 CAMPILONGO, Celso. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. São Paulo: Editora Max

Limonad, 2002, p. 66.

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Cada um desses sistemas sociais parciais possui o seu próprio código ― “esquema binário que caracteriza a comunicação do sistema” (128) ―, suas operações

específicas de reprodução, seu fechamento operacional e sua abertura para o ambiente (cognitiva). Isso significa que um sistema assimila as demandas do ambiente, processando-as e respondendo-as, porém, com suas estruturas internas.

Dois traços importantes da teoria dos sistemas de Luhmann são as constatações de que (i) todos os sistemas parciais e especializados da sociedade moderna funcionam simultaneamente, com suas estruturas, funções, códigos operativos e programas próprios e (ii) o fechamento operativo do sistema, alcançado por meio de sua operação única e exclusiva na sociedade, não é sinônimo de irrelevância do ambiente ou de seu isolamento, mas, pelo contrário, é condição para sua própria abertura.

Pois bem. Nota-se que, ao invés de trabalhar com a ideia de que a sociedade seria um todo composto por partes funcionalmente dispostas, adota-se a distinção sistema/ambiente como ponto de partida teórico (o sistema não é um objeto concreto, mas parte de uma diferença), para enfrentar como questão central a rede de operações que permite ou interrompe a reprodução dos elementos internos do sistema.

Vale dizer, o que Luhmann reconhece como desenvolvimento da teoria “geral” dos sistemas outra coisa não é senão a passagem de uma noção concreta de “sistemas abertos” para uma visão de sistemas autorreferenciais operacionalmente fechados (129). Desse modo, a

128 CAMPILONGO, Celso. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. São Paulo: Editora Max

Limonad, 2002, p. 66.

129 Na década de 1950 a teoria dos sistemas trabalhava com a ideia de sistemas abertos

principalmente na termodinâmica. Perguntava-se como era possível a existência de sistemas que produzissem “ordem a partir de ruído” e que se mantivessem funcionando (ou seja, não sucumbindo à entropia), estabilizassem desequilíbrios e transformassem inputs (entradas) em outputs (saídas). Para Luhmann o avanço desta linha foi substituir o esquema “todo e suas partes” pela diferença “sistema/ambiente”. Assim, pôde-se perceber que “toda ordem depende da manutenção de fronteiras”. Todavia, para os sistemas abertos, “fronteiras são permeáveis ― seja à energia, seja à informação.” Luhmann afirma que esta concepção ainda encarava os sistemas como “um tipo especial de objeto” e não conseguia tematizar a diferença sistema/ambiente em si. Para ele, esta diferença sistema/ambiente foi radicalmente formulada na matemática, a partir do cálculo das formas de George Spencer Brown em 1969. Para Brown, algo apenas pode ser designado (indicado) quando pode ser diferenciado. O ato de diferenciar (ou indicar) leva à marcação de uma forma que sempre terá dois lados: em teoria dos sistemas o lado do sistema e do seu ambiente. Isso implica que o programa de pesquisa da teoria de sistemas não parte de objetos, mas de uma diferença, lembrando que “todo diferenciar pressupõe um diferenciador”. E só então torna-se possível perguntar o que

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teoria dos sistemas estaria seguindo uma tendência de se abandonar a ideia de sistemas abertos (que trocam energia e informação entre suas fronteiras), mediante esquemas de “inputs/outputs”, para sistemas operacionalmente fechados (clausura operativa), a saber, sistemas autorreferenciais que operam a partir de seus próprios elementos e não “importam” elementos de seu ambiente.

Do ponto de vista da teoria dos sistemas autopoieticos, viu-se que a sociedade é entendida como um sistema operativamente fechado. Sem embargo, reconhecer este caráter autopoietico na sociedade ainda é muito pouco. A teoria sociológica dos sistemas deve poder explicar a peculiaridade dos sistemas que se entendem como sociais, deve-se apontar qual a operação distintiva da sociedade, cujo fechamento autopoietico leve a que se formem sistemas sociais e seus ambientes correspondentes: são as comunicações. É aqui que os sistemas sociais ganham sua peculiaridade, pois sistemas sociais são sistemas autopoieticos (com sentido) e que operam (e se reproduzem) por meio de comunicações.

A comunicação é, pois, uma “operação genuinamente social, a única genuinamente social. Isso porque pressupõe um concurso de um grande número de sistemas de consciências e, precisamente por isso, não pode atribuir-se como unidade a nenhuma consciência individual”. (130)

Para Luhmann a sociedade não se compõe de homens, pois os indivíduos estão no ambiente da sociedade. Isso não representa um conservadorismo ou qualquer prescrição normativa de se desejar uma sociedade tecnicista ou desumanizada, ao contrário do que podem imaginar críticos mais apressados. Pelo contrário, ao entender o homem como ambiente do sistema social, Luhmann reconhece ser o homem mais complexo e rico de

acontece com o mundo quando nele e no interior de fronteiras autodemarcadas se diferencia um sistema social, o qual tem a possibilidade de se distinguir-se, ele mesmo, de outro e de designar, respectivamente, o lado interno e o externo da forma assim produzida”. (LUHMANN, Niklas. “Sobre os fundamentos teórico-sistêmicos da teoria da sociedade”. op. cit., p. 62)

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possibilidades do que seus sistemas, atribuindo-lhe mais liberdade e reconhecendo sua maior imprevisibilidade e autonomia. (131)

Como já observado, a teoria dos sistemas se baseia na diferença sistema/ambiente (e não na oposição entre sujeito e objeto). Desta forma, ao afirmar que a sociedade opera processando seus elementos (comunicações), não se quer afirmar que a sociedade é completamente independente dos homens e mulheres. Todavia, isso não quer dizer que a sociedade opera por meio deles: sem homens não há sociedade, é claro, mas isso não implica que as duas coisas se confundam.

De forma clara, Luhmann afirma que

“a sociedade não pesa o mesmo que o total dos homens e não muda seu peso por cada um que nasça ou morra. Não se reproduz pelo fato de células dos homens se transformam em macromoléculas, ou pelo fato de que haja mudanças de células nos organismos dos seres humanos individuais. A sociedade não vive. Tampouco poderá ser levado a sério sustentar que os processos neurofisiológicos do cérebro seriam equivalentes a processos sociais, uma vez que eles não são sequer acessíveis à consciência”. (132)

Na sequência, o autor apresenta um argumento provocativo: “tratar os homens como parte da sociedade” ― além de ser um problema analítico que complica o entendimento do conceito de sociedade (e do humano) ― pode significar o “fracasso do humanismo perante suas próprias ideias”. Compreender a sociedade como composta de homens levaria a teoria da diferenciação à “necessidade de se desenhar como uma teoria da classificação de seres humanos - seja por estratos sociais, por nações, por etnias, por grupos. Mas isso entraria em

131 Luhmann afirma não entender p

orque a colocação do homem no ambiente da sociedade é ”tão má”. Para o autor, isso não implica nenhuma desvalorização, muito pelo contrário. A colocação da humanidade fora da sociedade poderia até, como argumenta Luhmann, colocá-la em uma condição autônoma com um tratamento mais adequado. Ainda, Luhmann chega a sustentar que, não bastasse isso, algumas “representações sobre os homens” provenientes de referências externas têm servido para “endurecer assimetrias de papéis”. Como exemplo, são citados “a ideologia da raça e a distinção entre elegidos e malditos, a doutrina prescrita pelo socialismo, o que significam para os norte- americanos a ideologia melting pot e o American way of life”. (LUHMANN, Niklas. La astucia del sujeto y la pregunta por el hombre. op. cit., p.228).

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oposição evidente com o conceito de direitos humanos, em especial com o conceito de igualdade. (...) Assim, não resta nenhuma outra possibilidade que não a de considerar o homem por inteiro – em corpo e alma –, como parte do ambiente da sociedade.” (133)

Como dito, ao deslocar os indivíduos para o ambiente, Luhmann reconhece que a sociedade opera por meio de comunicação. Operação é a “reprodução de um elemento do sistema fechado a partir dos elementos que compõem esse mesmo sistema”. Portanto, o sistema social apresenta como operação específica a comunicação, que é também reproduzida de forma ainda mais específica nos sistemas parciais: comunicação jurídica, comunicação econômica etc. Assim é que se pode visualizar a sociedade como “sistema fechado de comunicações conectadas que reproduzem comunicação por meio de comunicação” (134).