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PARTE III – A CRIMINALIZAÇÃO DE SEU TEMPO

7. B EM J URÍDICO E C ONSTITUIÇÃO : L IMITES E P ARÂMETROS PARA A

7.2 Constituição como limite do direito penal

7.3.1 Teoria dos mandados constitucionais de criminalização

7.3.1.2 Os mandados constitucionais implícitos

Os mandados implícitos de criminalização seriam aqueles que, embora não previstos expressamente, poderiam ser extraídos de uma análise do texto constitucional em seu contexto, ou seja, da avaliação como um todo dos valores contemplados pelas normas da Constituição.

Trata-se de conceito jurídico usado para justificar a obrigação de se criminalizar determinadas condutas, especificamente aquelas que ameacem ou lesem direitos fundamentais. Se inexiste tipificação da conduta, sustenta-se que o legislador incorreu em violação ao dever de proteção eficiente de direitos fundamentais.

Para os defensores da teoria dos mandados constitucionais de criminalização, considerando que as Constituições que buscam não apenas a garantia dos direitos individuais por meio da limitação ao poder estatal, mas, concomitantemente, a promoção e a defesa desses direitos pela atuação do próprio Estado, o direito penal passaria a ter sua delimitada limitada em patamares máximos e mínimos, representando-se a tutela dos interesses da sociedade sob a perspectiva de um garantismo integral.

É dizer que, embora não possa extrapolar os direitos e garantias individuais impostos à sua conduta por uma ação, o Estado não se poderia também admiti-lo por omissão, quedando-se inerente diante das normas constitucionais que o obrigariam a criminalizar certas condutas, ainda que implicitamente. A fim de orientar a política criminal, a Constituição teria determinado critérios expressa e implicitamente identificáveis.

330 HC 104410, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012,

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Assim é que, a par dos mandados constitucionais expressos de criminalização (obrigações mínimas, como não é demais repisar), haveria mandados de criminalização implícitos na Constituição Federal. Tais obrigações envolveriam um juízo de proporcionalidade ― visando-se ao equilíbrio entre a proibição do excesso (Übermassverbot) e a vedação à proteção insuficiente (Untermassverbot) ―, bem como a consideração dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade do Direito Penal.

Francesco Pallazo parece admitir a existência de mandados constitucionais de criminalização implícitos:

“Surge, neste ponto, o problema de se saber se junto às expressas cláusulas de penalização, outras não existem tacitamente. A resposta parece ser positiva, não apenas porque a presença de cláusulas expressas não autorizam, por certo, e fundadamente, o argumento do ubi lex voluit dixit... mas, de modo especial, pelo papel que podem representar na observância do princípio generalíssimo da ragionevolezza. O que se acha no bojo – é de ponderar-se – da ordem constitucional e impõe a proteção penalística dos valores, mesmo não sendo objeto de uma cláusula expressa de penalização, há, de qualquer modo, de ser entendido como parte integrante do que expressamente afirmado pelo constituinte. Disso resulta que no âmbito interno do sistema penal, considerado à luz do quadro dos valores constitucionais, enquanto seja exigida a obrigação de tutelar penalmente bens ou valores desprovidos de tutela, ou insuficientemente tutelados, resguardam-se outros bens ou valores que ocupam uma posição secundária na hierarquia constitucional”(331)

No Brasil, Antonio Carlos da Ponte justifica o reconhecimento de um mandado constitucional de criminalização implícito quando o bem objeto da tutela penal “apesar de afigurar-se como preponderante dentro da ordem constitucional, não contar com previsão

331 PALAZZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Trad. Gérson Pereira dos

Santos.

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expressa e tampouco com a consequente proteção normativa; caso esta já se encontre no ordenamento, afigure-se como débil, insuficiente ou ineficaz.” (332)

A primeira manifestação de que se tem notícia nesse sentido teve origem nos Tribunais alemães, cuja decisão precursora foi a “Schwangerschaftsabbruch I” (Alemanha, 2005, 266 p.ss.), do Tribunal Constitucional Alemão, em 25 de fevereiro 1975. Julgou-se inconstitucional, por violação a mandados constitucionais de criminalização implícitos, o § 218a, introduzido ao Código Penal Alemão pela 5ª Lei de Reforma do Direito Penal de 1974 (5. StrRG), que instituiu uma dirimente especial no aborto, sempre que realizado por um médico, com a concordância da grávida e desde que não tivessem passado doze semanas desde a concepção. (333)

Em outras palavras, o Tribunal Constitucional Federal alemão declarou a inconstitucionalidade da norma que descriminalizava o aborto em determinadas circunstâncias, em função da violação de um mandado de criminalização implícito:

“não convence a objeção de que não se possa deduzir de uma norma de direito fundamental garantidora de liberdade a obrigatoriedade do Estado de sancionar criminalmente. Se o Estado é obrigado, por meio de uma norma fundamental que encerra uma decisão axiológica, a proteger eficientemente um bem jurídico especialmente importante também contra ataques de terceiros, frequentemente serão inevitáveis medidas com as quais as áreas de liberdade de outros detentores de direitos fundamentais serão atingidas” (334)

332 PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 166

333 SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão.

Jurgen Schwabe; org. e introd. Leonardo Martins; pref. Jan Woischnik; trad. Beatriz Hennig ... et al., 2005, p. 267; e SCALCON, Raquel Lima. Crítica à teoria dos mandados constitucionais implícitos de

criminalização: podemos manter o legislador ordinário penal na prisão? Revista científica dos

estudantes de direito da UFRGS Porto Alegre, v. 1, n 1 – jul. 2009. p. 170. Disponível em:

<http://www6.ufrgs.br/ressevera/wp-content/uploads/2009/09/26-artigo-12.pdf> Acessado em 01 de março de 2011.

334 SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão.

Jurgen Schwabe; org. e introd. Leonardo Martins; pref. Jan Woischnik; trad. Beatriz Hennig ... et al., 2005, p. 267.

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Anos mais tarde, o Tribunal Constitucional da Espanha proferiu decisão semelhante ao declarar a inconstitucionalidade de projeto de lei que descriminalizava o aborto praticado em determinadas circunstâncias:

“(...) 3. Os direitos fundamentais não incluem somente direitos subjetivos de defesa dos indivíduos frente ao Estado e garantias institucionais, senão também deveres positivos por parte deste (...)5. Da obrigação da submissão de todos os poderes à Constituição não somente se deduz a obrigação negativa do Estado de não lesionar a esfera individual ou institucional protegida pelos direitos fundamentais senão também a obrigação positiva de contribuir à efetividade de tais direitos, e dos valores que representam, ainda que não exista uma pretensão subjetiva por parte do cidadão. Isso obriga especialmente ao legislador, quem recebe dos direitos fundamentais ‘os impulsos e linhas diretivas’, obrigação que adquire especial relevância ali onde um direito ou valor fundamental ficaria vazio de não se estabelecer os pressupostos para sua defesa. (...) 8. A proteção que a Constituição dispensa aos ‘nascituros’ implica para o Estado duas obrigações: a de abster-se de interromper ou de obstaculizar o processo natural de gestação, e a de estabelecer um sistema legal para a defesa da vida que suponha uma proteção efetiva da mesma e que, dado o caráter fundamental da vida, inclua também, como última garantia, as normas penais. (...)” (335)

No Brasil, nos parece que a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal posicionou-se acerca do tema foi em 09 de fevereiro de 2006, ocorreu quando do julgamento do Recurso Extraordinário n° 418.376/MS1 (336).

335 Decisão da Corte Constitucional da Espanha (STC 53/1985) – tradução livre.

336 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 418.376-5/MS. José Adélio

Franco de Moraes e Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello, Relator para Acórdão: Ministro Joaquim Barbosa. Tribunal Pleno. 09 de fevereiro de 2006, DJ 23-03-2007. Disponível

em:

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1="proibição%20de%20proteção %20deficiente"&base=baseAcordaos> Acesso em 11 dez. 2012.

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Discutia-se, em linhas gerais, se a negativa de equiparação do instituto da união estável ao casamento, para fins de incidência da hipótese especial de extinção de punibilidade nos tipos penais componentes dos “crimes contra os costumes”, consubstanciada no já revogado art. 107, VII do CP (337) estaria em harmonia com o texto constitucional, que reconhecia a união estável como entidade familiar do mesmo modo que o casamento.

O acórdão, por maioria, negou provimento ao Recurso Extraordinário, afastando o reconhecimento da união estável, ressaltando que, inclusive, tal hipótese de extinção de punibilidade já havia sido revogada pela Lei nº. 11.106/2005.

Interessa é notar o voto de Gilmar Mendes, cujo argumento central, de forma inédita na Corte, gravitou em torno da proibição da proteção deficiente dos direitos fundamentais em matéria penal. Nesse sentido, sustentou que o reconhecimento da união estável como hipótese apta a ensejar a extinção da punibilidade do agente permitiria blindar, através de norma penal benéfica, uma situação repugnada pela sociedade, “caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico”. (338)

Após, referiu que a doutrina já apontava para a existência de uma espécie de garantismo positivo, como outra face da proporcionalidade, de modo que a proibição da proteção deficiente era essencial na proteção dos direitos fundamentais, especificamente naqueles casos em que “o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental”. (339)

337 Art. 107, caput

– “Extingue-se a punibilidade”; inc. VII – “pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos 1, 2 e 3 do Título VI da Parte Especial deste Código”

338 Voto-vista do Ministro Gilmar Mendes, p. 688. In: BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Recurso Extraordinário n. 418.376-5/MS. José Adélio Franco de Moraes e Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello, Relator para Acórdão: Ministro Joaquim Barbosa. Tribunal Pleno. 09 de fevereiro de 2006, DJ 23-03-2007. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1="proibição%20de%20proteção %20deficiente"&base=baseAcordaos> Acesso em 11 dez. 2012.

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Entretanto, o primeiro julgado do Supremo Tribunal Federal que efetivamente utilizou a teoria dos mandados de criminalização como fundamento central de sua decisão data de 26 de março de 2012. O voto, novamente da lavra de Gilmar Mendes (340), estrutura- se com base na teoria dos mandados de criminalização, sugerindo a vinculação da produção de normas incriminadoras a obrigações previstas em normas constitucionais:

“Outras vezes cogita-se mesmo de mandatos de criminalização implícitos, tendo em vista uma ordem de valores estabelecida pela Constituição. Assim, levando-se em conta o dever de proteção e a proibição de uma proteção deficiente ou insuficiente (Untermassverbot), cumpriria ao legislador estatuir o sistema de proteção constitucional penal adequado (...)Se é certo, por um lado, que a Constituição confere ao legislador uma margem discricionária de avaliação, valoração e conformação quanto às medidas eficazes e suficientes para a proteção do bem jurídico penal, e, por outro, que a mesma Constituição também impõe ao legislador os limites do dever de respeito ao princípio da proporcionalidade, é possível concluir pela viabilidade da fiscalização judicial da constitucionalidade dessa atividade legislativa. O Tribunal está incumbido de examinar se o legislador considerou suficientemente os fatos e prognoses e se utilizou de sua margem de ação de forma adequada para a proteção suficiente dos bens jurídicos fundamentais” Ao reconhecer a existência de obrigações previstas na Constituição para a criação de normas incriminadoras pelo legislador penal, a teoria permite que se exerça um controle de constitucionalidade em caso de violação de tais deveres por omissão legislativa. Conforme passamos a detalhar, trata-se de subversão à ordem principiológica constitucional, negação da teoria do bem jurídico segundo sua formulação histórica, que remonta ao século XVIII, bem como desvirtuamento das funções sistêmicas jurídico penal e político criminal.

340 HC 104410, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012,

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7.3.2 Análise das supostas obrigações constitucionais de criminalização sob o