UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO
YANA THÁSSIA TOMAZ LIMA
EUTANÁSIA: A RELATIVIZAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE DO DIREITO À VIDA
À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E DA LIBERDADE
YANA THÁSSIA TOMAZ LIMA
EUTANÁSIA: A RELATIVIZAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE DO DIREITO À VIDA À
LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E DA LIBERDADE
Monografia submetida à Coordenação do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. M. Raul Carneiro Nepomuceno.
FORTALEZA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito
L732e Lima, Yana Thássia Tomaz.
Eutanásia: a relativização da indisponibilidade do direito à vida à luz do princípio da dignidade humana e da liberdade / Yana Thássia Tomaz Lima. – 2014.
81 f. : enc. ; 30 cm.
Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2014.
Área de Concentração: Direito Penal.
Orientação: Prof. Me. Raul Carneiro Nepomuceno.
1. Dignidade. 2. Eutanásia. 3. Direito à vida – Brasil. 4. Liberdade – Brasil. 5. Direitos fundamentais – Brasil. I. Nepomuceno, Raul Carneiro (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.
YANA THÁSSIA TOMAZ LIMA
EUTANÁSIA: A RELATIVIZAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE DO DIREITO À VIDA À
LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E DA LIBERDADE
Monografia submetida à Coordenação do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito.
Aprovada em ___/___/_____.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________
Prof. M. Raul Carneiro Nepomuceno (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Bruno Araújo Rebouças
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_____________________________________________________________
Mestrando Edvaldo de Aguiar Portela Moita
A Deus, pela vida.
Aos meus pais, Wálbert e Vanda, e aos
meus irmãos, Thayssa e Wálbert Júnior,
por todo o amor, a força e a paciência que
vocês dispensaram a mim durante esta
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e por todas as conquistas até aqui alcançadas.
Aos meus pais Wálbert e Vanda, pelo exemplo de força e determinação
que representam para mim, pelas palavras de incentivo, paciência, serenidade,
pelos mais diversos ensinamentos e, principalmente, pelo amor incondicional, que
foi a força motriz para que eu alcançasse a tão sonhada graduação em Direito.
Aos meus irmãos, pela parceria e compreensão nos momentos mais
difíceis durante essa jornada.
Aos meus familiares, pelos bons conselhos, pelas rezas, pela torcida e
por saber que vocês estão do meu lado, para o que der e vier.
Ao meu namorado Ciro, pelo companheirismo de todas as horas, também
pelos puxões de orelha e, principalmente, por ser uma pessoa tão especial,
ajudando-me a superar mais esse desafio.
À Binha, pelas diversas consultas profissionais, as quais com certeza me
serão muito úteis, e ainda pelos bons momentos que vivenciamos juntas.
Aos meus grandes amigos da época de colégio, pelos quais tenho o
maior respeito e admiração, por terem feito parte de mais uma conquista, apesar da
distância que a rotina nos impõe, pois sei que posso contar com vocês.
Ao grupo do Tacaopall, construído ao longo desses cinco anos de
faculdade, à base de muitas risadas e acontecimentos inesquecíveis, espero que
nossa amizade realmente perdure para além dos assuntos jurídicos.
Às RA, por terem sido fiéis escudeiras durante todo esse tempo e por
terem compartilhado muitos bons momentos, os quais ficarão na memória.
Àqueles que tive o prazer de conhecer e trabalhar diariamente, em
especial os colegas do Mota & Massler Advogados Associados, do Gabinete do
Desembargador Durval Aires Filho e da Sim Imobiliária, pela excelente recepção que
recebi em todos esses lugares, por toda a paciência em me ensinar e,
principalmente, pelo aprendizado que conquistei, pois, certamente, contribuíram
sobremaneira para que eu vencesse mais essa etapa da minha vida.
Por fim, ao meu orientador Raul Nepomuceno, pela integridade e pelo
admirável trabalho que desempenhou durante toda a minha jornada acadêmica, pois
Não há maior riqueza que a saúde do
corpo; não há prazer que se iguale à
alegria do coração.
Mais vale a morte que uma vida na
aflição; e o repouso eterno que um
definhamento sem fim.
RESUMO
Incita discussões em torno da tão polêmica temática relacionada à prática da
eutanásia, sob uma perspectiva semelhante à adotada pelo ordenamento jurídico
brasileiro, dando enfoque, porém, na relativização da indisponibilidade do direito à
vida frente aos princípios constitucionais, respeitando a dignidade e a liberdade do
enfermo incurável, conferindo-lhe o direito de escolher uma “boa morte”. Percorre
alguns conceitos indispensáveis ao presente trabalho, como, obviamente, o de
eutanásia e até os de ortotanásia e de distanásia. Como consequência, mostra-se
ainda quando efetivamente ocorre o evento morte tanto para a Medicina quanto para
o Direito. Ademais, analisa as consequências jurídico-penais dessa prática no Brasil
e também qual o tratamento jurídico conferido a ela em alguns países estrangeiros.
Considera a questão do consentimento do enfermo para se atribuir ou não culpa ao
agente. Finalmente, conclui, discorrendo sobre a legitimidade da prática da
eutanásia, tendo como paradigma os princípios constitucionais brasileiros da
dignidade da pessoa humana e da liberdade de autodeterminação, a fim de mostrar
vários aspectos positivos que esta prática é capaz de conferir, enxergando o “direito
a uma boa morte” como inerente à dignidade humana, em determinadas
circunstâncias, bem restritas, em que esta dignidade esteja ameaçada. Apresenta-se
ainda a questão da autonomia do portador do mal de Alzheimer e, por via de
consequência, a autorização da prática da eutanásia em casos avançados dessa
doença, haja vista tratar-se de tema curioso e polêmico, pouco abordado na
sociedade.
ABSTRACT
Encourages discussions about controversial themes as related to the practice of
euthanasia, on the same perspective from the one adopted by the Brazilian legal
system, but focusing on the relativization of the unavailability of the right to live in
relation to constitutional principles, respecting the dignity and freedom of the
incurable diseased giving it the right to choose a "good death". This paper discusses
about some essential concepts such as, obviously, the euthanasia and even the
orthothanasia and dysthanasia. As a consequence, it also shows when the death
actually occurs to Medicine and to Law as well. Besides, analyzes the legal and
criminal consequences of this practice in Brazil and the legal treatment given to it in
some foreign countries. It considers the issue of consent of the patient to attribute the
fault or not to the agent. Finally, it concludes by discussing the legitimacy of the
practice of euthanasia based on the constitutional principles having as paradigm the
human dignity and freedom of self-determination to show some positive aspects that
this practice is able to proportionate looking to the "right to a good death" as inherent
to human dignity in certain circumstances well restricted, where this dignity is
threatened. It still presents the question of the autonomy of people with Alzheimer's
disease and as consequence the authorization of the practice of euthanasia in
advanced cases of this illness, because it is a curious and polemic topic that is rarely
spoken by society.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...11
2 DEFINIÇÃO E OS LIMITES DA EUTANÁSIA...14
2.1 Conceitos bioéticos – diferentes pontos de vista...14
2.2 Eutanásia...15
2.2.1 Tipos de eutanásia...22
2.3 Distanásia...27
2.4 Ortotanásia...29
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A EUTANÁSIA: O EXTREMO FINAL DA VIDA ...32
3.1 Aspectos históricos...32
3.2 Eutanásia: por que estudá-la?...34
3.3 O uso dos conceitos: as diferentes concepções de morte...36
4 A EUTANÁSIA E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO...40
4.1 A morte como fator essencial para o deslinde de questões bioéticas – A Lei nº 9.434/97 e a Resolução do CFM nº 1.480/97...40
4.2 Tratamento jurídico-penal adotado no Brasil...46
4.2 O direito à vida à luz da Constituição Federal do Brasil de 1988...53
4.2.1 A dignidade da pessoa humana...55
4.2.2 Mudança de paradigma: o direito à vida digna...58
4.2.3 O problema do consentimento...63
4.3 A eutanásia na legislação estrangeira...66
4.4 A autonomia dos portadores de demência e a eutanásia em diagnósticos de Alzheimer em estágios avançados...70
5 CONCLUSÃO...75
1 INTRODUÇÃO
A morte sempre significou um grande mistério para toda a humanidade, e
é um acontecimento que assusta muitas pessoas, especialmente pelo fato de não se
saber quando isso de fato ocorrerá.
Nesta linha, são feitos investimentos vultosos nas pesquisas médicas, a
fim de se encontrar “uma fórmula” para prolongar a vida, capaz de fazer um ser
durar décadas a fio e, diante das descobertas cada vez mais surpreendentes,
aumentam-se essas possibilidades. Em contrapartida, à medida que os estudos
médicos avançam, os questionamentos acerca das novas técnicas também crescem
e passam a ser mais comuns no meio social, modificando ainda o modo de se
encarar a morte e todo o seu processo. Consequentemente, no mundo
contemporâneo, as pessoas tendem a valorizar a vida a qualquer custo, seja ela
como for, a simplesmente encarar a morte como um acontecimento natural e
inerente a qualquer ser vivo.
Por conta disso, a prática da eutanásia reveste-se de uma importância
fundamental, principalmente por ser este um período bastante fértil para suscitar tais
descobertas da medicina. Por outro lado, essa conduta também mostra ser um
assunto bastante polêmico que desperta acalorada discussão na sociedade desde
muito tempo.
Nesta linha, são diversos os posicionamentos adotados pelas pessoas
quando se trata desse tema, o que se torna imprescindível fazer ponderações
relevantes acerca de sua prática e também estimulá-las, garantindo um enfoque sob
a perspectiva dos direitos fundamentais e tendo como base a ética e o respeito à
vontade do enfermo. Esse tema suscita algumas controvérsias quanto à sua
utilização, mas ainda não alcançou ainda a merecida importância na cultura de
nossa época.
No entanto, a morte mais cedo ou mais tarde deverá ser encarada por
todos, e talvez numa situação de enfermidade incurável, a eutanásia poderá vir a ser
uma solução encontrada. Por isso, diante da mortalidade humana e de sua
inevitabilidade, não se pode esquecer de tratar de temática tão delicada.
Assim, o presente estudo discorre sobre a possibilidade de se praticar a
portador de doença incurável, sem qualquer perspectiva de cura, que deseje
abreviar sua vida, sem que isso configure um atentado ao direito à vida,
estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro.
Nessa linha, no primeiro capítulo, apresenta-se a definição de eutanásia,
com algumas variações, e os limites dessa conceituação para fins do presente
estudo, elencando-se os requisitos necessários à sua configuração. Além disso,
estabelecem-se as diferentes classificações da eutanásia e ainda as diferenças
entre esse instituto e a ortotanásia e a distanásia.
Em seguida, faz-se uma breve exposição dos aspectos históricos que
envolvem a eutanásia, abordando a morte em si, definindo-a, tanto do ponto de vista
da medicina, quanto do ponto de vista da ciência jurídica. Nesse sentido,
evidenciam-se as consequências que a delimitação do efetivo termo final da vida
acarreta na ordem jurídica brasileira, mormente em relação aos casos de eutanásia,
de aborto de anencéfalos e de pesquisas com células-tronco.
O terceiro e último capítulo tem como foco o direito à vida e o que ele
representa no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, aborda-se também o
princípio da dignidade humana e suas implicações, relacionando-o com a eutanásia.
A partir disso, evidencia-se o confronto entre o direito à vida e a liberdade de
autodeterminação, como consequência da liberdade de autodeterminação. Ademais,
apresenta-se o tratamento jurídico-penal conferido à eutanásia não só no Brasil, mas
também em alguns países estrangeiros. Por fim, traz-se à tona a questão do
consentimento do enfermo para a realização de tal prática, destacando esse ponto
em relação ao mal de Alzheimer e as doenças demenciais, enfatizando-se as
dificuldades enfrentadas pelos doentes e familiares, sugerindo uma discussão mais
profunda em relação à possibilidade de praticar a eutanásia nesses casos.
Finalmente, na conclusão deste trabalho acadêmico, discorre-se sobre a
possível legitimidade da prática da eutanásia, a partir dos princípios constitucionais
brasileiros, mormente o que estabelece a dignidade da pessoa humana. A partir
disso, sugere-se a ideia de enxergar a eutanásia não como um crime, mas como um
direito de uma pessoa que se encontra em estado terminal de dispor sobre sua
própria vida, podendo optar por morrer dignamente, sem que isso seja encarado
como um ato antijurídico, haja vista a liberdade e a autodeterminação conferida às
pessoas pelo nosso ordenamento jurídico e tendo como base o corolário
Assim, busca-se mostrar que a eutanásia pode ser vista como um direito
fundamental a ser exercido pelos enfermos terminais, portadores de doenças
incuráveis, que almejem pôr fim ao seu sofrimento e angústia, abreviando a vida.
Tudo isso deve ser possível a partir de um consentimento válido e mediante ato
médico, a fim de atribuir ao paciente terminal a dignidade a ele conferida pela
legislação pátria. Tudo isso seria possível a partir do metaprincípio norteador do
sistema legal brasileiro, que é a dignidade da pessoa humana. Dessa forma,
reconhecer-se-ia categoricamente que o Estado existe em função da pessoa
humana, caracterizada como a finalidade precípua e não o meio da atividade estatal.
A pesquisa do assunto em questão baseia-se em livros especializados,
artigos científicos, revistas e periódicos, além de trabalhos monográficos,
dissertações de mestrado e teses de doutorado. Ademais, no que concerne à
legislação, utiliza-se desde a Constituição Federal, passando pelos Códigos Penal e
Civil brasileiros, além de outras leis esparsas e estrangeiras e algumas Resoluções
do Conselho Federal de Medicina.
2 DEFINIÇÃO E OS LIMITES DA EUTANÁSIA
Na maior parte dos países considerados desenvolvidos ou até mesmo
naqueles em desenvolvimento, houve um considerável aumento na expectativa de
vida da população nos últimos anos. Esse aumento se deve, principalmente, à
urbanização nos grandes centros, além dos avanços tecnológicos e das mais
variadas descobertas da biomedicina. Esse acontecimento desencadeou o
recrudescimento no número de pessoas situadas na terceira idade, razão pela qual
se deve atentar para esse fato como uma questão política e com consequências na
saúde pública.
A partir disso, a eutanásia e outros assuntos ligados ao direito de morrer
tomaram mais forma, a partir da metade do século passado. Diniz e Costa
prelecionam:
Em consequência, questões de ética aplicada já clássicas, como a eutanásia ou o direito de morrer, foram revigoradas. A possibilidade de intervir no ciclo da vida, acelerando ou estendendo o momento da morte, é, talvez, uma das questões mais centrais à ética aplicada em saúde, sendo o Juramento de Hipócrates uma das referências éticas mais antigas (...) O avanço biomédico, em especial as técnicas paliativas, trouxe para a cena do debate não apenas a discussão sobre a existência ou não de um suposto direito a escolher o momento da morte, mas também o tema dos tratamentos extraordinários que podem estender indefinidamente a vida, impedindo que as pessoas efetivamente morram.1
Por isso, a Bioética tem buscado consolidar a diferença entre os diversos
conceitos relacionados ao debate acerca da cessação da vida, até porque há ainda
bastante confusão ao redor desses vocábulos, como a eutanásia, a distanásia e a
ortotanásia, por exemplo. Em virtude disso, é imprescindível estabelecer o
significado e os limites de cada uma dessas práticas, com o intuito de esclarecer
alguns desses conceitos bioéticos.
2.1 Conceitos bioéticos – diferentes pontos de vista
Nesta toada, verifica-se também que há uma crescente necessidade de
se enfrentar abertamente essa temática, sem qualquer resistência, e ainda de
maneira consciente e responsável. Em muitos lugares do mundo e, principalmente,
1
no Brasil, há muito ainda a ser discutido sobre a eutanásia, a fim de se propor a
regularização dessa prática como um direito de todos.
2.2 Eutanásia
Nesse contexto, primeiramente, é de extrema relevância delimitar o
conceito de eutanásia e consequentemente sua aplicação, a fim de elucidar maiores
dúvidas acerca desse assunto, principalmente pelo fato de que esse termo tem sido
utilizado por muitas pessoas de maneira equivocada e ambígua, as quais conferem
uma significação polissêmica a essa prática.
Segundo prelecionam Castro et al.:
O personalismo global do ente humano, para efeito de focalização jurídica, abrangendo as mais variadas facetas da afirmação tanto do espírito quanto do corpo do homem e da mulher, pode ser considerado fenômeno relativamente recente. A rigor, passou a ocupar a atenção dos juristas na medida em que a medicina e, mais ultimamente, a bio-genética, foram emprestando valor científico, econômico e humanitário às partes singularizadas do organismo humano, encaminhando a ciência do direito para a regulação de questões até então inabordadas.2
A partir disso, portanto, faz-se necessário estabelecer seu conceito, a fim
de conferir a este maior precisão. Diante das inúmeras confusões feitas ao redor
desse vocábulo, foram criados novos outros como a ortotanásia e a distanásia, que,
anteriormente, eram confundidos com a própria eutanásia, no intuito de dirimir esses
conflitos terminológicos e de facilitar a compreensão dos leigos.
Dessa forma, etimologicamente, a palavra eutanásia é de origem grega e
significa eu, bom/boa, thanatos, morte, ou seja, literalmente quer dizer “boa morte”.
Nas palavras de Bizzato, significa “a morte sem sofrimento e sem dor” - para outros,
a palavra eutanásia também expressa: “morte fácil e sem dor”, “morte boa e
honrosa”, “alívio da dor”, “golpe de graça”, “morte direta e indolor”, “morte suave”,
etc.3
Esse termo foi empregado pela primeira vez pelo filósofo inglês Francis
Bacon, no século XVII, o qual sustentava, apud Menezes:
Eu creio que a missão do médico é a de devolver a saúde e aliviar os sofrimentos e as dores, não só quando esse alívio pode levar à cura, como também quando pode servir para proporcionar uma morte indolor e calma.
2
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira et al.Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 279.
3
Ao contrário, os médicos consideram um escrúpulo e uma religião atormentar, entretanto, o enfermo, ainda quando a enfermidade é sem esperança.4
De acordo com Villas-Bôas, citada por Guimarães:
A expressão eutanásia é mesmo classicamente atribuída ao filósofo e político inglês Francis Bacon, que a cunhara a partir dos radicais gregos eu, que significa ‘bom’, ‘belo’, ‘verdadeiro’, ‘tranquilo e thanatos, a significar ‘morte’, designando a ação do médico que fornece ao doente uma morte doce e pacífica, quando já não se tem mais esperança.5
Segundo Morselli, apud Bizzato, “a eutanásia é aquela morte que alguém
dá a outrem que sofre de uma enfermidade incurável, a seu próprio requerimento,
para abreviar agonia muito grande e dolorosa”.6
Ricardo Royo-Vilanova y Morales, citado por Menezes, define eutanásia
como a “boa morte, morte fácil, morte doce, sem dor nem sofrimentos. Melhor dito,
morte grata, morte desejável para os que querem evitar o tormento dos desejos
impotentes. Teologicamente significa morte em estado de graça”.7
Nogueira afirma que, “no entanto, não podemos nos prender ao
significado literal da palavra, pois a eutanásia em si é a abreviação do sofrimento de
que uma pessoa padece, que pode ser imposta tanto por meios suaves como
violentos”.8
Diferentemente do que afirma esse autor, atualmente, o conceito de
eutanásia assume uma acepção bem mais estreita, sendo apenas considerada uma
conduta praticada por médicos, no sentido de provocar a morte de pacientes
terminais, tendo em vista sê-la inevitável em um curto período de tempo.9
Nesse contexto, existem diversas situações bem distintas em que há
intervenção sobre a vida de alguém, sendo essas atitudes erroneamente
4
MENEZES, Evandro Corrêa. Direito de matar: eutanásia. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 39.
5
GUIMARÃES, Marcello Ovídio Lopes. Eutanásia: novas considerações penais. Biblioteca Digital de
Teses e Dissertações da USP, 2009, p.99 – Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-07072010-151229/pt-br.php>. Acesso em: 25 mar. 2014.
6
BIZZATO, 2000, p.15. 7
MENEZES, op. cit., p. 39. 8
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em defesa da vida: aborto, eutanásia, pena de morte, suicídio, violência e linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 42.
9
denominadas de condutas eutanásicas. Daí surgem os mais absurdos empregos
desse vocábulo.
Por isso, diante desses equívocos, é extremamente relevante esclarecer
os limites e o exato alcance desse termo, para que se estabeleça o entendimento
desejado acerca desse estudo.
Dessa forma, Pimentel admite que a eutanásia:
É a provocação de morte piedosa, por ação ou inação de terceiro, de que se determine encurtamento da vida, em caso de doença incurável que acometa paciente terminal a padecer de profundo sofrimento. A conduta detentora dos requisitos acima, normalmente, é denominada eutanásia própria ou propriamente dita. Observe-se que essa definição abrange tanto a provocação da morte por ação (eutanásia própria em sentido estrito ou eutanásia ativa) ou por inação (eutanásia passiva).10
Com base na conceituação aqui utilizada, qual seja a de eutanásia própria
ou propriamente dita estabelecida por Guimarães, segundo esse autor, convém
assim chamar a prática que for detentora dos seguintes requisitos: a provocação de
morte piedosa, por ação ou inação de um terceiro, de que se determine o
encurtamento da vida, no caso de haver doença incurável, que acometa paciente
terminal a padecer de um profundo sofrimento, abarcando ainda não só a
provocação da morte por ação (eutanásia própria em sentido estrito ou eutanásia
ativa) como também por inação (eutanásia passiva).11
Nesta linha, é possível perceber que existem dois aspectos fundamentais
para que haja a caracterização da eutanásia propriamente dita, quais sejam a
vontade do agente em cometê-la e ainda o resultado dessa ação.
Sá, nesse sentido, preleciona que “a intenção de realizar a eutanásia
pode gerar uma ação, daí tem-se ‘eutanásia ativa’, ou uma omissão, ou seja, a
não-realização de ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância –
‘eutanásia passiva’ ou ortotanásia”.12 Desde o ponto de vista da ética, ou seja, da
justificativa da ação, não há diferença entre ambas.
Segundo a definição desse autor13, para que realmente haja a
configuração da eutanásia própria ou propriamente dita, é imperioso reforçar cada
10
PIMENTEL, 2012, p 24. 11
GUIMARÃES, 2009, p.99. 12
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 39.
13
um dos elementos retromencionados e delimitar o alcance desses requisitos.
Veja-se:
a) Provocação da morte
O que se entende por provocação da morte é que, sem esse evento, não
é possível se falar em eutanásia. Para que haja a configuração da eutanásia, a
morte tem que ser, necessariamente, provocada, não podendo ser um
acontecimento natural.
b) Ação ou inação de terceiro
A morte tem que ser provocada por uma terceira pessoa, não podendo
ser mero resultado da ação do próprio indivíduo, situação em que se configura o
suicídio. Ademais, compartilha-se da mesma opinião de Pimentel, no sentido de que
é imprescindível que tal “conduta praticada com o intuito de encurtar o período vital
seja praticada por um médico, profissional de saúde devidamente habilitado para
lidar adequadamente com a situação em que o paciente, que se sujeitará à
eutanásia, se encontra”.14 Aliás, Pessini assim ensina:
Sugerimos que o termo eutanásia seja reservado apenas para o ato médico que, por compaixão, abrevia diretamente a vida do paciente com a intenção de eliminar a dor e que outros procedimentos sejam identificados como expressões de assassinato por misericórdia, mistanásia, distanásia ou ortotanásia conforme seus resultados, a intecionalidade, sua natureza e as circunstâncias.15 (grifo nosso).
Nesse caso, se o agente provocador da morte não for um profissional da
medicina, não se pode dizer que houve a configuração de eutanásia. Sem falar que
o médico tem ainda que agir de acordo com uma conduta médica, dentro de um
contexto profissional.
Nesse aspecto, há autores que entendem que, para que se caracterize a
eutanásia, não é imprescindível que a morte antecipada de um paciente terminal
seja causada necessariamente por um médico. No entanto, para fins deste trabalho,
14
PIMENTEL, 2012, p. 27. 15
PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: São Camilo, 2004. p. 205.
Disponível em:
considera-se que a eutanásia própria somente pode ser praticada por um
profissional da medicina.16
c) Conduta piedosa
O agente deve agir movido por um sentimento altruístico, de piedade ou
de compaixão em relação ao enfermo incurável, a fim de minimizar o sofrimento
desse indivíduo.
Conforme preleciona Guimarães:
A configuração da eutanásia (ao menos da eutanásia própria), não existe, pois, no caso de morte provocada com todos os requisitos já referidos, mas sem esse móvel humanístico, daí porque o fomento da morte com o intuito de ‘purificar ou melhorar raça’, como o utilizado pelo nazismo alemão contra judeus, doentes e deficientes físicos ou mentais, ou ainda para fins sócio-econômicos (doentes incuráveis tidos como estorvo social ou econômico para o Estado ou para os sãos), não pode, evidentemente, merecer a denominação eutanásica, mormente a de eutanásia propriamente dita.17
d) Determinação do encurtamento do curso natural de vida
Deve haver o verdadeiro encurtamento da vida, para que haja a
eutanásia. Sem esse elemento, ela não se consuma.
e) Doença incurável
O paciente submetido à eutanásia deve estar acometido por uma
enfermidade intransponível, sem qualquer expectativa de cura, diante de uma
situação de irreversibilidade, e, consequentemente, ausência de cura, mesmo se
forem utilizados todos os possíveis procedimentos médicos e recursos
biotecnológicos disponíveis.
Guimarães afirma ainda que:
Havendo possibilidade de reversão da doença e, portanto, sendo o mal curável, mesmo que de difícil e lento quadro de melhora, o ato de terceiro, ao por fim à vida do doente, mesmo que motivado por compaixão, não configuraria eutanásia pelos critérios acima indicados, isto é, de acordo com as limitações postas pela acepção atual do termo. Eventualmente tal situação poderia configurar um homicídio privilegiado, invocando-se que a conduta fora praticada por relevante valor social ou moral.18
f) Paciente terminal
Esse mesmo autor estabelece que o requisito do estado terminal é
limitador da prática eutanásica, impedindo, assim, o alargamento fático de seu
16
A conduta praticada por terceiro, na opinião de Guimarães, é um dos requisitos para que se configure a eutanásia. Porém, diferentemente da linha que se segue neste trabalho, o referido autor não entende que esse terceiro deve ser necessariamente um médico.
17
GUIMARÃES, 2009, p. 108. 18
conceito, de modo a recusar a denominação de eutanásia para um caso
aproximado, mas que, na verdade não o é, quando se tem como base os critérios
atualmente mais aceitos para a sua exata configuração.19
Assim, é relevante consignar o que se entende por paciente terminal,
tendo em vista que, mesmo acometido por uma doença incurável, podem existir
enfermos com a possibilidade de obter uma melhora de seu estado de saúde. Nesse
caso, sendo incurável a doença, com a morte provocada por terceiro, de forma
piedosa, não se encontrando, porém, o doente em estado terminal, pode haver a
caracterização até do homicídio privilegiado, mas não da eutanásia. Essa é a
conclusão porque, mesmo que seja incurável o mal, se o doente não estiver em
estado terminal, pode ele ainda ter sobrevida, com certa qualidade de vida ou
melhoria no seu estado geral, o que afasta a figura da eutanásia em sentido estrito.
Segundo Gutierrez:
A conceituação de paciente terminal não é algo simples de ser estabelecido, embora freqüentemente nos deparemos com avaliações consensuais de diferentes profissionais. Talvez, a dificuldade maior esteja em objetivar este momento, não em reconhecê-lo. A terminalidade parece ser o eixo central do conceito em torno da qual se situam as consequências. É quando se esgotam as possibilidades de resgate das condições de saúde do paciente e a possibilidade de morte próxima parece inevitável e previsível. O paciente se torna "irrecuperável" e caminha para a morte, sem que se consiga reverter este caminhar.20
Há outras definições, porém, que enxergam um paciente como terminal a
partir de um critério mais objetivo, como quando se afere um determinado intervalo
de tempo como elemento determinante para a caracterização dessa terminalidade.21
Nesta linha, não há qualquer unanimidade entre os estudiosos em relação
ao tempo de vida necessário que determinado indivíduo deve dispor para que ele
seja denominado de paciente terminal, até porque é bastante difícil precisar
exatamente esse tempo, já que existem muitas variáveis que nele influenciam.
Apesar disso, porém, ainda que não exista consenso no que diz respeito a esse
aspecto, muitos entendem que o paciente terminal é aquele cuja evolução de sua
enfermidade se apresenta como irreversível, dentre as possibilidades que a
19
GUIMARÃES, 2009, p. 110. 20
GUTIERREZ, Pilar L. O que é paciente terminal? Ver. Assoc. Med. Bras., São Paulo, v.47, n. 02,
junho de 2001. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-42302001000200010&script=sci_arttext>. Acesso em: 26 mar. 2014. 21
biomedicina oferece, além de ser bastante alta a probabilidade de esse indivíduo
morrer num curto período de tempo.
Nesse sentido, França, citado por Rocha, assinala que se considera
paciente terminal aquele que, na evolução de sua doença, não reage a mais
nenhuma medida terapêutica que seja conhecida e utilizada no meio médico,
demonstrando, portanto, que não possui condições de cura ou de prolongamento da
sobrevivência, necessitando apenas de cuidados que faculte ao máximo de conforto
e bem-estar.22
g)Padecer de profundo sofrimento
Pode-se dizer que o que se entende por profundo sofrimento é um estado
de agonia, que leve o indivíduo a um estado insustentável, causado por uma
enfermidade incurável. Alguns autores admitem, além do sofrimento físico, também
o de ordem moral como causador desse estado de agonia.
Villas-Bôas, ao tratar desse aspecto, esclarece o que pode ser
considerado como um intenso sofrimento, quando diz que:
Em relação ao sofrimento incontrolável e à condição de terminalidade, é algumas vezes preconizado que esse sofrimento não precisa ser físico, admitindo-se também o sofrimento moral do tetraplégico, o sofrimento por antecipação do portador de Alzheimer ou o sofrimento presumido do indivíduo em estado vegetativo persistente, que declarara previamente preferir a morte a tal situação.23
Corroborando com esse entendimento, Rocha dispõe que:
Outro elemento essencial é a confirmação de que o paciente, alvo da prática da eutanásia, encontra-se em um estado de sofrimento físico ou mental derivado de uma doença/condição insuportável. Destaca-se, inicialmente, que não somente as doenças justificam a prática da eutanásia, uma vez que determinados acontecimentos podem reduzir um indivíduo a uma condição tal que nenhum tratamento consiga restabelecer a integridade corporal de outrora. Dá-se, como exemplo, um acidente de trânsito onde um indivíduo sofre trauma físico que o reduz à incapacidade de respirar por si mesmo, sendo necessários meios artificiais para garantir a capacidade respiratória elementar.24
22
ROCHA, Francisco Ilídio Ferreira. Eutanásia. Revista Jurídica, v. 8, n. 07, 2012, p. 122. Disponível
em:
<http://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&q=francisco+ilidio+rocha%2C+eutanasia&btnG=&lr>. Acesso em: 28 mar. 2014. 23
VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro. Revista Bioética, Vol. 16,
n. 01, 2009, p. 62. Disponível em:
<http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/56/59>. Acesso em: 28 mar. 2014.
24
Apesar do conceito de eutanásia aqui utilizado, muitos outros autores e
estudiosos entendem de maneira diversa, não considerando essa prática nos limites
que foram aqui estabelecidos, o que não influencia na definição de eutanásia trazida
por este trabalho.
Com tudo isso, segundo Guimarães, pode-se dizer que, para que realmente
a eutanásia se concretize, é necessário que todos esses elementos coexistam.25 No
entanto, há que se alargar um pouco esse conceito para abarcar alguns casos
bastante peculiares que, apesar de não se encaixarem formalmente no significado
de eutanásia aqui assumido, devem ser encarados como se o fossem. Em
contrapartida, existem situações que preenchem todos os requisitos da eutanásia
acima elencados, mas, por algum motivo, também diante de algumas
singularidades, não devem assim ser consideradas.26
Contudo, é preciso muita cautela ao dilatar o significado da palavra
eutanásia, tendo em vista que, muitas vezes, esse vocábulo é utilizado de maneira
inconveniente, significando outras condutas que não propriamente a aqui
estabelecida.
Nesse diapasão, o referido vocábulo já foi empregado em situações diversas
e ainda continua sendo, estando ou não presentes todos os critérios para a
caracterização de sua forma própria, razão pela qual se arrisca aqui a chamar essas
variadas práticas de “eutanásia imprópria”.27
Assim, diante das várias imprecisões terminológicas ao redor desse
vocábulo e ainda se considerados outros fatores, há diferentes tipos de eutanásia,
cada qual com suas peculiaridades. Por essa razão, torna-se difícil um consenso em
relação à tentativa de classificá-la em subtipos, dadas as diversas e amplas
interpretações relativas ao mesmo instituto. Apesar disso, porém, apenas para fins
didáticos, apresenta-se uma tentativa de classificação da eutanásia própria, tendo
como base os critérios anteriormente estabelecidos.
2.2.1 Tipos de eutanásia
A partir do desenvolvimento tecnológico, especialmente no século XX, a
eutanásia ganhou mais força e passou a expandir seus conceitos e sua
25
GUIMARÃES, 2009, p. 106. 26
PIMENTEL, 2012, p. 28. 27
aplicabilidade, razão pela qual conferiu oportunidade à sociedade de discuti-la, de
contestá-la e de aperfeiçoá-la. Muitos a defendem, outros a condenam.28
Nesse sentido, apesar das dificuldades em classificar a eutanásia própria em
subtipos, como exposto alhures, por questões terminológicas e também para facilitar
a didática, propõe-se aqui a tentar fazê-lo, de acordo com os requisitos listados, a
partir do que existirão, basicamente, três subdivisões, a depender do critério
considerado. Assim, a eutanásia pode ser classificada da seguinte forma,
seguindo-se a categorização proposta por Guimarães:29
Quanto ao tipo de ação, tem-se a eutanásia ativa e a passiva. A ativa ocorre
quando a ação praticada pelo terceiro que abrevia a vida é positiva, ou seja, quando
há a prática de ato deliberado no sentido de provocar a morte sem sofrimento do
paciente, por fins misericordiosos.
Já a eutanásia passiva é considerada aquela em que a morte do paciente
ocorre, dentro de uma situação de terminalidade, ou porque não se inicia uma ação
médica ou pela interrupção de uma medida extraordinária, com o objetivo de minorar
o sofrimento. Assim, há omissão ou inação por parte do agente.
Essa classificação toma como base o modo de atuação do agente
provocador da morte, ou seja, qual sua conduta em relação ao paciente.
Em relação à intenção do agente, pode-se classificar em eutanásia direta,
eutanásia indireta (ou de duplo efeito). No caso de eutanásia direta, a intenção do
agente causador da morte é, primeiramente, antecipar a cessação da vida de um
indivíduo portador de moléstia incurável, o qual passa por um estado de profundo
sofrimento, sendo a intenção remota desse agente a eliminação da dor do paciente.
O provocador da morte antecipada pode executá-la de diversas maneiras, dentre
elas a administração de droga em doses letais, obviamente, com o intuito de eliminar
definitivamente a agonia e o sofrimento do paciente.
A eutanásia indireta, diferentemente, ocorre quando o agente, apesar de
provocar a morte do paciente, tem como propósito fundamental eliminar seu
sofrimento e sua dor, devido à moléstia que lhe acometeu. Na verdade, nesse tipo
de eutanásia, a morte não é propriamente terapêutica, mas tão somente
consequência da conduta médica de analgesia, praticada com o fim de minimizar a
agonia de determinado enfermo incurável, com fins altruísticos. “Aqui, o óbito do
28
BIZZATO, 2000, p. 35. 29
paciente é efeito secundário, mediato, de sua analgesia ou sedação (desejada e
provocada imediatamente pelo agente)”.30
A eutanásia indireta ainda pode ser chamada de eutanásia de duplo efeito,
tendo em vista que a morte, apesar de não ser o objetivo precípuo do agente, acaba
sendo acelerada como uma consequência indireta das ações médicas que são
executadas visando o alívio do sofrimento de um paciente terminal.
Assim, esta classificação visa a descobrir o que o agente efetivamente
deseja, com exatidão, em relação ao paciente, a partir do animus do agente
provocador da antecipação do momento da morte de enfermo incurável.
No que concerne ao consentimento do paciente, classifica-se em eutanásia
voluntária e involuntária. A primeira consuma-se quando a morte é provocada
atendendo a uma vontade do paciente, que solicitou ao agente que praticasse a
conduta eutanásica. Por outro lado, a eutanásia involuntária configura-se quando a
decisão de provocar a morte antecipada é tomada por outra pessoa, diferentemente
do paciente, que, por alguma razão, não está em condições de exprimir sua
vontade. Já essa última classificação diz respeito tão somente à vontade do paciente
em relação à realização ou não da eutanásia.
Pimentel afirma que, nesses casos:
[...] há quem diga que a eutanásia voluntária alcançaria a vontade do enfermo ou a de seu representante, enquanto que a involuntária abrangeria as hipóteses em que terceiros decidem no lugar do paciente ou seu representante. Contudo, o entendimento majoritário é outro. A maior parte da doutrina afirma que, na eutanásia voluntária, o próprio paciente – por ter condições para a tomada de decisão – delibera sobre a sua prática. Essa escolha do doente pode se dar de forma direta (quando o paciente manifesta diretamente ao agente a sua vontade) ou de maneira indireta (como, por exemplo, mediante um testamento vital ou outro meio que não deixe dúvidas sobre a sua vontade).31
Nessa esteira, haja vista a complexidade dessa discussão, importante
fazer algumas considerações acerca da questão do consentimento do paciente em
relação à pratica da eutanásia, a partir do que surgem alguns questionamentos.
Primeiramente, é necessário estabelecer quem pode assumir o papel de
terceiro autorizado ou permitido a expressar a vontade do enfermo, no caso de este
estar, de alguma forma, impossibilitado de fazê-lo. Em seguida, cabe o
questionamento se o paciente está consciente e totalmente apto a manifestar sua
30
PIMENTEL, 2012, p. 32. 31
vontade no sentido de se autorizar a conduta eutanásica. Essas questões serão
abordadas em momento oportuno nesse trabalho. Apenas para retratar a
complexidade dessa temática, mostram-se duas opiniões diversas quando o assunto
em debate é o consentimento do enfermo.
Em relação à aquiescência do interessado, Guimarães entende que:
O fato de não haver consentimento, mormente expresso, do interessado (por não estar em condições físicas e mentais de decidir), estando presentes os elementos constitutivos da figura eutanásica, pode não afastar, de pronto, a sua caracterização (eutanásia propriamente dita), posto que somente seria ela inquestionavelmente afastada se a decisão pela prática da eutanásia ocorresse contra a vontade do paciente capaz de decidir.32
Já Kovács, diferentemente, defende que:
Só se pode falar em eutanásia se houver um pedido voluntário e explícito do paciente – se este não ocorrer, trata-se de assassinato, mesmo que tenha abrandamento pelo seu caráter piedoso. E é só neste sentido que difere de um homicídio, que ocorre à revelia de qualquer pedido da pessoa.33
Em virtude dos diferentes posicionamentos entre os estudiosos, no que
concerne à aquiescência do paciente terminal, é importante uma reflexão mais
profunda e que abarque vários aspectos dessa problemática, como a exata
constatação do estado de (in)consciência do enfermo ou ainda a relação de
parentesco entre o portador de moléstia incurável e o terceiro que pode ser
autorizado a exprimir a vontade, na hipótese de o paciente não podê-lo, e ainda
quando houver conflito entre as opiniões dos familiares, ou entre estes e o
profissional da medicina, por exemplo.34 Por tudo isso, alguns desses pontos serão
retomados em momento adequado. (Item 4.2.3)
Além da classificação aqui exposta, há ainda algumas outras, nas quais
se insere a chamada eutanásia imprópria. Esse tipo é representado por diversas
condutas que pouco se assemelham à eutanásia propriamente dita.35 Apesar disso,
porém, ainda é muito recorrente que tais situações sejam erroneamente
denominadas de eutanásia, motivo pelo qual elas serão assim tratadas nesse
trabalho, mesmo que de maneira inapropriada. Por isso, convém chamá-las
32
GUIMARÃES, 2009, p. 105. 33
KOVÁCS, Maria Julia. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicologia. USP, São Paulo,
vol.14, n. 02, 2003, p.115-167. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642003000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 30 mar. 2014. 34
PIMENTEL, 2012, p. 34. 35
eutanásia imprópria, exatamente pelo fato de que, com o uso histórico e com os
costumes, acabou-se conferindo a certas ocorrências a designação inapropriada.
Nesse sentido, alguns autores acreditam que existem outras formas de
eutanásia, dividindo-a em três espécies. Dessa forma, Nogueira preleciona:
Os autores costumam dividir a eutanásia em três espécies: a) libertadora ou
terapêutica; b) a selecionadora ou eugênica; e c) a eliminadora ou
econômica. A libertadora ou terapêutica consiste na morte ministrada por médico a enfermo que, padecendo horrivelmente, não tem esperança de cura. A selecionadora ou eugênica consiste na supressão de pessoas portadoras de deformidades, doenças contagiosas e de recém-nascidos degenerescentes cujo estado acarrete despesas inúteis. Visa a melhoria da raça humana. A eliminadora ou econômica visa a morte dos loucos, idiotas, dementes, irrecuperáveis, anciãos imprestáveis, enfim, de todos os que sejam inúteis e incapazes para o trabalho.36
Apesar de estabelecer tal classificação, o referido autor defende que
existe somente uma única forma de eutanásia e que deve ser realmente
considerada, chamada por ele de libertadora ou terapêutica, ou seja, a que é
aplicada pelos médicos em doentes terminais.37
Já Licurzi, citado por Menezes, divide a eutanásia em três modalidades,
quais sejam: a) a morte libertadora, que ocorre quando um enfermo incurável pede
que se lhe abrevie a vida, de forma indolor, pondo fim à sua agonia; b) a morte
piedosa, que é aquela sem dor, dada aos doentes inconscientes no fim de
enfermidades intermináveis, movido por um sentimento de piedade, a fim de fazer
cessar todas as agonias do doente; e, por fim, c) a morte eugênica ou econômica, a
qual é definida como sendo a supressão eutanásica dos associais absolutos, dos
idiotas graves e loucos incuráveis, por exemplo, e ainda de todos aqueles que são
alheios à vida moral no mundo humano.38
Apesar dessas classificações, acredita-se que as referidas situações não
se encaixam no conceito de eutanásia propriamente dita, pelo fato de não
atenderem a todos os requisitos que a caracterizam e ainda pelo fato de pouco se
assemelharem ao que a eutanásia se propõe, segundo a definição trazida por
Guimarães.39 Vale ressaltar que um dos elementos necessários para configurar a
prática eutanásica é o de que o agente deve atuar com um fim altruísta, no sentido
de amenizar as dores e o sofrimento do enfermo, o que não ocorre, por exemplo, no
36
NOGUEIRA, 1995, p. 44. 37
Ibid., p 45. 38
MENEZES, 1977, p. 51. 39
caso da eutanásia eugênica. Por essa razão, convém chamá-la imprópria, bem
como todos os outros tipos que não constituem realmente a eutanásia própria.
Por tudo isso é que a eutanásia própria pode ser admitida, diferentemente
da imprópria, a qual é claramente incompatível com a estrutura dos sistemas legais
do mundo contemporâneo. Assim, é conveniente ampliar as discussões em torno da
eutanásia própria, já que essa realmente se propõe a conferir ao enfermo incurável
um “boa morte”, dentro dos moldes legais, devendo-se pensar na possibilidade de
sua legalização. “Todas as demais conditas, mesmo que assemelhadas por alguma
razão ao que se acaba de descrever aqui, estão excluídas do conceito de eutanásia,
pelo menos para os objetivos da presente obra”.40
2.3 Distanásia
Diante de algumas dúvidas quando se trata desse tema, faz-se
necessário estabelecer também o conceito de distanásia, mormente pelo fato de que
esse termo é pouco familiar entre os leigos.
Diametralmente oposta à eutanásia encontra-se a distanásia, tendo em
vista que, enquanto aquela deseja fazer cessar o sofrimento e a agonia de um
enfermo incurável, essa tem o intuito de prolongar, ao máximo, a duração da vida
humana.
Sá estabelece:
Do lado oposto da eutanásia, encontra-se a distanásia. Como se disse, na primeira, o ato médico tem por finalidade acabar com a dor e o a indignidade na doença crônica e, no morrer, eliminando o portador da dor. A preocupação primordial é com a qualidade da vida humana na sua fase final. A distanásia, por sua vez, dedica-se a prolongar, ao máximoa quantidade de vida humana, combatendo a morte como grande e último inimigo.41
Na mesma linha, Pessini, de forma bastante contundente, expõe:
O que entender por distanásia? O Dicionário Aurélio traz a seguinte conceituação: "Morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento". Trata-se, assim, de um neologismo, uma palavra nova, de origem grega. O prefixo grego dis tem o significado de "afastamento", portanto a distanásia significa prolongamento exagerado da morte de um paciente. O termo também pode ser empregado como sinônimo de tratamento inútil. Trata-se da atitude médica que, visando salvar a vida do paciente terminal, submete-o a grande sofrimento. Nesta conduta não se prolonga a vida propriamente dita, mas o processo de morrer. No mundo europeu fala-se de "obstinação terapêutica",
40
PIMENTEL, 2012, p.38. 41
nos Estados Unidos de "futilidade médica" (medical futility). Em termos mais populares a questão seria colocada da seguinte forma: até que ponto se deve prolongar o processo do morrer quando não há mais esperança de reverter o quadro? Manter a pessoa "mortaviva" interessa a quem?42
Essa definição contempla, de forma ampla, o que se entende por
distanásia e, a partir disso, verifica-se que essa é uma prática recorrente na
atualidade, em decorrência dos avanços da biotecnologia e dos recursos médicos.
Com isso, muitas vezes leva-se um enfermo a ter uma morte lenta e sofrida,
causando desgaste não só no doente, mas também em toda a relação familiar que o
cerca.
Além disso, como bem explicitou o mencionado autor, algumas pessoas
definem a distanásia como tratamento fútil, pelo fato de que, nesse caso, as ações
médicas que objetivam melhoramentos para o paciente terminal são inúteis ou
ineficazes, pois não são capazes de reverter o quadro clínico. O único efeito
conseguido por meio dessa técnica é justamente o prolongamento do processo de
morte do doente, que se submete a mais tempo de sofrimento e agonia, sem resultar
em benefício algum.
Importante ressaltar o que realmente está por trás de tudo isso e quais os
valores que estão em jogo. Diante desse contraste de perspectivas, o médico
encontra-se numa posição delicada numa situação como essas, tendo que optar
entre beneficiar seu paciente com tratamentos paliativos e preservar a sacralização
da vida humana, escolhendo, geralmente, a última opção.
Ademais, se se tomar como paradigma o critério técnico-científico, a
intenção em preservar os sinais vitais a qualquer custo justifica-se pelo fato de que
atualmente se atribui à vida humana um valor sagrado e absoluto, sendo ela
considerada indisponível. Por outro lado, se o enfoque for o da rentabilidade
comercial que essa prática proporciona, constata-se que a distanásia, na verdade,
nada mais é do que uma fonte geradora de lucros exorbitantes. Isso pode ser
verificado principalmente pelo fato de que, com o envelhecimento da população
mundial, muitas pessoas com idade avançada são, cada vez mais, acometidas por
enfermidade incurável e, se submetidas a tratamentos médicos, podem sobreviver
anos a fio, sem, porém, qualquer chance de melhora ou cura.
42
Já em relação à obstinação terapêutica, Pessini salienta:
A expressão "obstinação terapêutica" (l'acharnement thérapeutique) foi introduzida na linguagem médica francesa por Jean-Robert Debray, no início dos anos 50, e foi definida como sendo "o comportamento médico que consiste em utilizar processos terapêuticos cujo efeito é mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível e o benefício esperado, é menor que os inconvenientes previsíveis".43
Desta feita, tendo em vista que na contemporaneidade a vida assume um
lugar de destaque frente aos valores humanos e sagrados, o que leva as pessoas a
lutarem pela vida a qualquer sorte, é que a prática da distanásia vem ganhando
força. Aliado a esse elemento, há ainda outros fatores que contribuem com isso,
como o avanço da biotecnologia e das ciências. Há, porém, que se utilizar o bom
senso, a fim de aplicar os recursos que a medicina e a tecnologia dispõem, sem, no
entanto, ferir a dignidade humana, prolongando a vida de enfermos que,
notadamente, não possuem perspectiva alguma de cura.
Eis aqui o grande desafio: utilizar as técnicas médicas, com o intuito de
proporcionar benefícios a pessoas acometidas por doenças terminais, sem, de
alguma forma, prolongar seu sofrimento e sua agonia num momento de dor
profunda.
2.4 Ortotanásia
Pode-se dizer que a ortotanásia representa o equilíbrio entre as condutas
da eutanásia e da distanásia. Na sua etimologia, esse vocábulo deriva dos radicais
gregos orthos, que significa reto, correto, e thanatos, que quer dizer morte. Assim,
indica que a morte ocorre no seu tempo normal, sem ser prematura ou prolongada.
Nas palavras de Junges et al., a ortotanásia identifica-se com a atitude
médica de acompanhar o moribundo a uma morte sem sofrimento, sem o uso de
métodos desproporcionais de prolongamento da vida, como respiração artificial e
outras medidas invasivas. “Significa o não prolongamento artificial do processo de
morte, além do que seria o processo natural. Essa prática é tida como manifestação
de boa morte ou morte desejável, não ocorrendo prolongamento da vida por meios
que implicariam em aumento de sofrimento”.44
43
PESSINI, 2009, passim. 44
Segundo Villas-Bôas:
Na ortotanásia, o médico não interfere no momento do desfecho letal, nem para antecipá-lo nem para adiá-lo. Diz-se que não há encurtamento do período vital, uma vez que já se encontra em inevitável esgotamento. Também não se recorre a medidas que, sem terem o condão de reverter o quadro terminal, apenas resultariam em prolongar o processo de sofrer e morrer para o paciente e sua família. Mantêm-se os cuidados básicos.45
Pimentel, acrescentando, pondera que:
A ortotanásia é, geralmente, praticada por médico. Nela, o profissional de saúde tão somente deixa que o processo de morte – já instalado anteriormente – se desenvolva, percorrendo seu caminho natural. Assim, o médico não tem o dever de prolongar, artificialmente, o sofrimento que permeia o processo de morrer do paciente, principalmente se ele não pediu que isso acontecesse, ou, ainda pior, se a vontade do doente é que não ocorra tal alongamento.46
Com isso, pode-se dizer que a ortotanásia não almeja, tampouco
efetivamente produz o resultado morte; na verdade, com essa prática objetiva-se tão
somente a humanização do processo de morrer, sem prolongar o sofrimento do
enfermo de forma indefinida. Aqui, a morte é resultado natural, consequência da
enfermidade incurável da qual o indivíduo é acometido.
A partir disso, surge, naturalmente, uma confusão entre a eutanásia na
modalidade passiva e a ortotanásia, tendo em vista a posição de não interferência
médica.
Villas-Bôas estabelece que “muitos autores as apontam como sinônimas,
mas esse não é o entendimento mais preciso, haja vista que a eutanásia passiva é a
eutanásia (antecipação, portanto) praticada sob a forma de omissão”.47
Nesse diapasão, complementa a referida autora:
Embora sutil, a distinção entre eutanásia passiva e ortotanásia tem toda relevância na medida em que responde pela diferença de tratamento jurídico proposto: a ilicitude desta e a licitude daquela. Na eutanásia passiva, omitem-se ou suspendem-se arbitrariamente condutas que ainda eram indicadas e proporcionais, que poderiam beneficiar o paciente. Já as condutas médicas restritivas são lastradas em critérios médico-científicos de indicação ou não-indicação de uma medida, conforme a sua utilidade para o paciente, optando-se conscienciosamente pela abstenção, quando já não exerce a função que deveria exercer, servindo somente para prolongar artificialmente, sem melhorar a existência terminal.48
45
VILLAS-BÔAS, 2009, p. 66. 46
PIMENTEL, 2012, p. 49. 47
VILLAS-BÔAS, op. cit., p. 66-67. 48
Assim, no entendimento de Villas-Bôas, a eutanásia passiva consiste na
suspensão ou omissão deliberada de medidas que seriam indicadas no caso de um
paciente que use suporte artificial de vida, enquanto que na ortotanásia há omissão
ou suspensão de medidas que perderam sua indicação, por resultarem inúteis para
aquele indivíduo, no grau de doença em que se encontra.
Apesar desse posicionamento, a diferença entre essas duas modalidades
não é questão nada pacífica entre os autores, existindo quem defenda serem a
eutanásia passiva e a ortotanásia palavras sinônimas, como é o caso de Paulo
Daher Rodrigues e Sá, por exemplo. Esta última preleciona que “a intenção de
realizar a eutanásia pode gerar uma ação, daí tem-se ‘eutanásia ativa’, ou uma
omissão, ou seja, a não-realização de ação que teria indicação terapêutica naquela
circunstância – ‘eutanásia passiva’ ou ortotanásia”.49
Inclusive, é comum que nos acontecimentos da vida real os médicos não
se atenham muito a essa diferença, não demonstrando preocupação se a conduta
adotada configurará a ortotanásia ou a eutanásia na sua modalidade passiva.
Apesar disso, porém, é importante delimitar a diferença entre esses dois tipos, uma
vez que, no Brasil, elas recebem tratamento penal diferenciado, mesmo que ambas
resultem na morte do paciente.
Desse modo, como restou demonstrado, a ortotanásia é fato atípico,
razão pela qual não configura crime. Diferentemente, a eutanásia é considerada
crime de homicídio, embora na modalidade privilegiada como acreditam alguns, o
que demonstra não existir qualquer identidade entre esses dois conceitos.
Discussões à parte, importante delinear que na ortotanásia, claramente o
enfermo terminal e sua família encaram a morte com certa serenidade e aceitam-na
como um fenômeno natural. Por isso, entendem que a utilização de determinados
métodos terapêuticos tornam-se hostis e ineficazes, não proporcionando qualquer
benefício ao paciente, que, inevitavelmente sucumbirá.50
49
SÁ, 2005, p. 39. 50
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A EUTANÁSIA: O EXTREMO FINAL DA VIDA
A prática da eutanásia é tão antiga quanto a própria existência humana, e
os exemplos de sua aplicação se multiplicam ao longo da história e remontam desde
os mais velhos tempos.
3.1 Aspectos históricos
Se voltarmos a um passado bem distante, durante a Antiguidade,
facilmente se percebe que os povos dessa época praticaram a eutanásia nas suas
variadas formas e modalidades, sendo essa técnica bastante comum e valorizada
nesse período.
Nesse período, diversos povos primitivos tinham por hábito sacrificar os
velhos, os enfermos e também os débeis mentais, em benefício de outras pessoas.
Além disso, na Índia antiga, os doentes desenganados eram sacrificados no rio
Ganges.51
Inclusive, Plutarco, apud Bizzato, narra em seu livro intitulado Vidas
Paralelas que “em Esparta, todas as crianças fracas, sem muita esperança de vida,
imprestáveis para a comunidade, eram lançadas do cume de um monte, a fim de
evitar que sofressem e se tornassem carga inútil para os seus familiares, como
também para o Estado”.52
As práticas eutanásicas também permeiam algumas passagens bíblicas,
como a exemplo de Saul, rei de Israel, que, ferido na batalha, se lançara sobre a sua
espada, sem morrer, quando solicitou a um amalecita que lhe tirasse a vida.53
Segundo Nogueira, esse é o primeiro relato de eutanásia na história.54
Além dessa, há também uma situação vivenciada por Jesus, na qual ele,
“chegado que foi ao calvário, onde foi submetido aos suplícios da crucificação,
segundo Cícero, deram-lhe de beber vinagre e fel, chamado vinho da morte, mas
ele, provando a mistura, não quis tomar.”55
Embora haja dúvida em relação à natureza da bebida oferecida ao Cristo,
se era para antecipar sua morte ou para entorpecê-lo e fazê-lo suportar melhor a
51
FÉLIX, Francisco Hélio Cavalcante. Eutanásia: questões bioéticas e legais. 2006. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006. p. 35.
52
BIZZATO, 2000, p. 43. 53
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1998. 54
NOGUEIRA, 1995, p.42. 55
dor, conforme Nogueira, esses são, claramente, “exemplos da imposição ou da
recusa à prática da eutanásia, sob o aspecto religioso, na Antiguidade; a evolução
dos tempos implicou também a mudança de postura perante muitas crenças
religiosas”.56
Durante toda a história, além dessas, muitas outras pessoas foram
partidárias da eutanásia, a exemplo de Thomas Morus, em seu livro A Utopia, que
conferiu aos magistrados e sacerdotes o encargo de apresentar aos incuráveis e aos
que sofrem a melhor maneira de deixá-los morrer, quando hajam chegado no limite
da exaustão pela luta da sobrevivência. Não se pode esquecer também do pedido
que, nos tempos modernos, Napoleão Bonaparte fez, “na campanha do Egito, ao
cirurgião Degenettes, de matar com ópio soldados atacados de peste, respondendo
este que a isso se negava porque a função do médico não era matar e sim curar”.57
Vale ressaltar que algumas práticas aqui citadas, executadas em diversos
povos, não constituem, porém, propriamente atos eutanásicos, no sentido rigoroso
da palavra, tendo em vista a crueldade dos meios utilizados, o que, obviamente, se
contrapõe à verdadeira finalidade da eutanásia, a qual se sabe, consiste em
proporcionar uma morte digna e tranquila, sem dor.
Nesse sentido, pondera o advogado Rodrigues, citado por Nogueira, que
“a forma como se tira a vida tem relevância, aqui, em vista da amplitude da
conceituação de morte boa”.58
Desta feita, louvada na Antiguidade, a eutanásia apenas passou a ser
rechaçada a partir da difusão dos valores cristãos e judeus, os quais conferiram à
vida um valor sagrado. Apesar disso, a eutanásia somente veio a ser de fato
considerada uma conduta criminalizada nos tempos modernos, em que a proteção à
vida constitui o primeiro e mais fundamental dos direitos tutelados na legislação
atual. Isso pode ser constatado quando se observam os mais prodigiosos avanços
das ciências, “no afã de desvendar os mistérios da vida ou de prolongá-la, de
minorar as dores e sequelas das patologias e disfunções do organismo”.59
Por essa razão, Castro et al. acrescentam que se:
[...] impôs ao legislador nas últimas décadas a crescente vigilância quanto à possibilidade de riscos e danos perpetráveis à integridade física e mental
56
NOGUEIRA, 1995, p. 43. 57
MENEZES, 1977, p. 47. 58
NOGUEIRA, op. cit., p. 43. 59