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4 A EUTANÁSIA E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO

4.2 O direito à vida à luz da Constituição Federal do Brasil de 1988

4.2.1 A dignidade da pessoa humana

Nessa perspectiva, existe outro princípio fundamental da Constituição Federal do Brasil de 1988, qual seja a dignidade da pessoa humana, instituído como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, reconhecendo-se categoricamente, tal como na Alemanha, que o Estado existe em função da pessoa humana, caracterizada como a finalidade precípua e não o meio da atividade estatal.112 Veja-se:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.113 (grifo nosso).

A partir disso, é de fundamental relevância tentar delinear, em breves linhas, o que se entende por dignidade da pessoa humana, haja vista o fato de o ordenamento legal e constitucional brasileiro prevê-lo como seu princípio basilar, ou seja, como verdadeiro metaprincípio a escudar direitos e garantias fundamentais.114

Dworkin, ao discorrer sobre a dignidade, preleciona:

A expressão “direito à dignidade” é usada de muitas formas e em muitos sentidos na filosofia moral e política. Às vezes, por exemplo, significa o direito a viver em condições, quaisquer que sejam, nas quais o amor-próprio é possível ou pertinente. Aqui, porém, devemos examinar uma idéia mais limitada: a de que as pessoas têm o direito de não ser vítimas da indignidade, de não ser tratadas de um modo que, em sua cultura ou comunidade, se entende como demonstração de desrespeito. Toda sociedade civilizada tem padrões e convenções que definem essas indignidades, que diferem conforme o lugar e a época em que se manifestam.115

De fato, a definição do que seja dignidade é tarefa realmente bastante árdua, tendo em vista os diversos posicionamentos e ainda a sua constante

        112 RIBAS, 2008, passim. 113 BRASIL, 1988. 114

JÚNIOR, Weber Abrahão. Apontamentos para um estudo sobre o princípio da dignidade

humana. Centro Universitário de Patos de Minas: Jurisvox, 2011, p. 213. Disponível em:

<http://jurisvox.unipam.edu.br/documents/48188/50570/apontamentos.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2014.

115

DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 333-334.

modificação, como pontuou Dworkin, a fim de tentar acompanhar os valores sociais compatíveis com determinada época.

Nesse sentido, Rocha preleciona:

A partir do século XVIII, porém, a dignidade da pessoa passa ser objeto de reivindicação política e embute o conceito que ainda hoje ostenta, referindo- se a uma condição que é essencialmente própria à pessoa humana.

Quando retorna com novo conteúdo e contornos fundamentais no Direito contemporâneo, aquela palavra, referindo-se à pessoa humana, ganha significado inédito, qual seja, passa a respeitar à integridade e à inviolabilidade do homem, e não apenas tomados tais atributos em sua dimensão física, mas em todas as dimensões existenciais nas quais se contém a sua humanidade, que o lança para muito além do meramente físico.

O emprego daquela palavra pelo direito, com todas as controvérsias de que ainda se cerca, conforme antes assinalado, não se despoja do significado ético e filosófico, relativo à condição essencial do homem, à sua humanidade. Mas é bem certo que multiplica-se (sic) o seu significado com a conceituação jurídica acima mencionada e, ainda, com o envoltório político que igualmente passa a ostentar e segundo o qual a dignidade política é a base de um projeto político concebido sob o respeito restrito à pessoa humana, que a torna centro do próprio modelo de Estado cogitado e tendente a ser adotado segundo a escolha livre de um povo.

A entronização do princípio da dignidade da pessoa humana nos sistemas constitucionais positivos, com o sentido em que agora é ele concebido, é, pois, recente e tem como fundamentos a integridade e a inviolabilidade da pessoa humana pensada em sua dimensão superior e para além da existência apenas de um ser dotado de físico.116

Segundo Sarlet, a dignidade da pessoa humana pode ser definida como a qualidade intrínseca ao ser humano e que distingue, fazendo-o merecedor de igual respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. A partir disso, implica-se uma gama de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa contra qualquer ato de cunho degradante e desumano, além de lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.117

Inclusive Kant, apud Rocha, dispõe sobre a dignidade, afirmando que o homem é um fim em si mesmo. Por isso, distinguiu no mundo o que tem um preço e

       

116

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista Interesse Público, v. 4, p. 23-48, 1999. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32229-38415-1-PB.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2014.

117

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de de Direito Público, n. 21, março, abril, maio, 2010. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/rere-21-marco-2010-ingo-sarlet.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2014.

o que tem uma dignidade. O preço é conferido àquilo que se pode aquilatar, avaliar, até mesmo para a sua substituição ou troca por outra de igual valor e cuidado; daí valer-se para a obtenção de uma finalidade definida. Já o que é dignidade não pode ser valorado, sendo, portanto, insubstituível, dispondo, assim, de uma qualidade intrínseca que o faz sobrepor-se a qualquer outro critério de fixação de preço.118

Dworkin, utilizando o pensamento do referido filósofo, preleciona:

O fato de entender que a dignidade significa reconhecer os interesses críticos de uma pessoa, como coisa distinta de fomentar esses interesses, nos proporciona uma leitura útil do princípio kantiano segundo o qual as pessoas devem ser tratadas como fins, nunca simplesmente como meios. Assim compreendido, esse princípio não exige que as pessoas nunca sejam colocadas em desvantagem com o objetivo de oferecer vantagens a outras, mas sim que nunca sejam tratadas de maneira que se negue a evidente importância de suas próprias vidas.119

Assim, continua esse autor, asseverando que a dignidade é uma questão de convenção, tendo em vista os diferentes sistemas aos quais a sociedade recorre para traçar os limites entre desvantagem e indignidade, mas o direito que todas as pessoas têm, qual seja o de ser reconhecida a importância de suas vidas, não constitui, em si, uma questão de convenção.120

Ainda utilizando como base o imperativo categórico kantiano, Azevedo sustenta que:

O princípio jurídico da dignidade fundamenta-se na pessoa humana e a pessoa humana pressupõe, antes de mais nada, uma condição objetiva, a vida. A dignidade impõe, portanto, um primeiro dever, um dever básico, o de reconhecer a intangibilidade da vida humana. Esse pressuposto, conforme veremos adiante, é um preceito jurídico absoluto; é um imperativo jurídico categórico. Em seguida, numa ordem lógica, e como consequência do respeito à vida, a dignidade dá base jurídica à exigência do respeito à integridade física e psíquica (condições naturais) e aos meios mínimos para o exercício da vida (condições materiais) [...]121

Por tudo isso, verifica-se que a dignidade é realmente uma ideia vaga e confusa. Porém, sem prejuízo das outras correntes conhecidas sobre essa temática, resta claro que há um consenso razoável no sentido de se aceitar a dignidade da

        118 ROCHA, 1999, passim. 119 DWORKIN, 2009, p. 338-339. 120 Ibid., p. 339. 121

DE AZEVEDO, Antônio Junqueira. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa

humana. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 97, p. 107-125, 2002.

Disponível em: <http://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt- PT&q=antonio+junqueira+de+azevedo&btnG=&lr=>. Acesso em: 27 abr. 2014.

pessoa humana como o fundamento e a justificação última dos direitos fundamentais.122

Assim, a priori, este princípio, na verdade, trata-se de uma real proibição à instrumentalização do ser humano, à total disponibilização do outro de modo egoístico, à intenção de utilizar o semelhante apenas como meio para atingir certo objetivo. Desta forma, conclui-se que o fator determinante para se reconhecer que houve uma agressão à dignidade da pessoa humana vem a ser, na maioria dos casos, o objetivo da conduta praticada pelo indivíduo, ou seja, o propósito de simplesmente instrumentalizar ou coisificar o outro.123