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4 A EUTANÁSIA E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO

4.2 Tratamento jurídico-penal adotado no Brasil

No que concerne às questões jurídico-penais, como é cediço, atualmente a eutanásia é uma conduta criminalizada no Brasil, a qual recebe tratamento jurídico semelhante ao aplicado nos casos de homicídio.

O Código Penal vigente, datado de 1940, inclui o crime de homicídio na sua Parte Especial, no Capítulo I, intitulado Dos Crimes Contra a Vida, senão vejamos:

Homicídio simples

Art. 121. Matar alguém.

Pena – Reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.89

Pelo que se percebe do artigo supracitado, instituiu-se o homicídio na modalidade privilegiada, a qual se concretiza quando o agente pratica determinado crime “impelido por motivo de relevante valor social ou moral”, autorizando-se, portanto, a diminuição de pena de um sexto a um terço.

Nesse diapasão, a doutrina elucida o que se entende por “motivo de relevante valor social ou moral”. Segundo Greco, “relevante valor social é aquele motivo que atende aos interesses da coletividade. Não interessa tão somente ao agente, mas sim ao corpo social.” E esse autor continua dizendo que “relevante valor moral é aquele que, embora importante, é considerado levando-se em conta os

       

89

interesses do agente. Seria, por assim dizer, um motivo egoisticamente considerado, a exemplo do pai que mata o estuprador de sua filha”. Ele ainda registra que as hipóteses de eutanásia também se amoldam à primeira parte do §1º do art. 121 do Código Penal.90

Inclusive, na Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal há também referência a essa expressão, ocasião em que o projeto esclarece que tal colocação significa “o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico), a indignação contra um traidor da pátria, etc”.91

Dessa forma, de acordo com o referido penalista, quando o agente provoca a morte de um paciente que já se encontra em estado terminal, o qual não suporta mais as dores causadas pela doença que o acometeu, movido por um sentimento de compaixão, deve esse ser considerado um motivo de relevante valor moral, razão pela qual deve ser aplicada, obrigatoriamente, a redução de pena aplicada ao agente.92

Nesse sentido, Sá preleciona:

A eutanásia, nas suas diversas formas, vem sendo tratada pelo Direito Penal pátrio como homicídio, ainda que privilegiado. Do conteúdo da regra do artigo 121, § 1º, do Código Penal, depreende-se que o ato de tirar a vida de outrem que se encontre em grande sofrimento pode ser considerado motivo de relevante valor moral e, por isso, o agente que praticar o delito terá sua pena reduzida de um sexto a um terço.93

E essa autora continua afirmando que esse dispositivo não estabelece quem seja o agente, a partir do que se conclui que qualquer pessoa pode realizar o ato eutanásico, desde que esteja compelida por motivo de relevante valor moral. Assim, segundo ela, não há no Direito brasileiro a exigência de que a eutanásia seja praticada por médico, como, tecnicamente, é entendida.94

Com todo respeito a esse posicionamento, porém, acredita-se, para fins desse estudo, que somente a conduta praticada por um médico, no ato de suas

       

90

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: Parte especial. Vol. 2. 12. ed. Niterói: Impetus, 2010. p. 146.

91

BRASIL. Código Penal (1940). Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Exposição de

Motivos da Parte Especial do Código Penal. Disponível em: <http://www.diariodasleis.com.br/busca/exibelink.php?numlink=1-96-15-1940-12-07-2848-CP>. Acesso em: 20 abr. 2014.

92 GRECO, 2010, p. 146. 93 SÁ, 2005, p. 128. 94 Ibid., p. 128-129.

atribuições enquanto tal, é que pode configurar, de fato, a eutanásia, como exposto alhures.

Assim, pelo que se percebe, a eutanásia somente pode ser contemplada com o benefício da redução de pena se for demonstrado, no caso concreto, que o agente, ao cometer a conduta eutanásica, estava, de fato, impelido por um sentimento de compaixão, ou seja, por um motivo de relevante valor moral. Apesar de alguns doutrinadores defenderem a possibilidade de se aplicar o privilégio de redução da pena de um sexto a um terço em casos de eutanásia, ainda assim tal conduta continua a ser criminalizada no Brasil.

No entanto, importante relembrar que o vocábulo eutanásia admite diferentes significados, variando sua conceituação e seus limites de acordo com quem a define. A partir dessa multiplicidade de juízos acerca do que se entende por eutanásia, podem existir, consequentemente, os mais variados entendimentos concernentes à legalidade ou não dessa prática no âmbito jurídico.

Pimentel assevera que:

somada a essa plurissignificação do termo, temos ainda a enorme amplitude de posicionamentos filosófico-ideológicos, sócio-políticos, culturais e religiosos em relação à eutanásia (mesmo quando o vernáculo assume um conceito unívoco), o que também leva a uma grande divergência de argumentos acerca de sua aceitação ou rejeição nos mais variados setores da sociedade. Portanto, na seara do Direito Penal não poderia ser diferente: a eutanásia é, realmente, assunto bastante controverso, não havendo consenso nem mesmo sobre qual seria, de fato, a sua natureza jurídica e, assim, qual a melhor forma de regulamentá-la juridicamente.95

Assim, quando o assunto é eutanásia, surgem diferentes posicionamentos em relação ao tratamento jurídico aplicável nesses casos, existindo até quem defenda ser essa uma causa de excludente de culpabilidade, diante da inexigibilidade de conduta diversa.

Para exemplificar essa diversidade de opiniões ao redor dessa temática, além do fato de que a eutanásia é, muitas vezes, considerada um homicídio privilegiado, citam-se algumas outras modalidades de natureza jurídica atribuída a essa conduta.

Dodge, por exemplo, defende tanto a possibilidade de a eutanásia ser caracterizada como homicídio privilegiado quanto qualificado, a depender da

       

95

circunstância que qualifica o crime, devendo esta ser objetiva, como ocorre no caso de utilização de veneno no paciente. Assim preleciona a referida autora:

A eutanásia vem sendo entendida, nos tribunais brasileiros, como hipótese de homicídio privilegiado, ou seja, cometido por motivo de relevante valor moral, quer dizer, cometido em decorrência de interesse particular e, por isso, é causa de atenuação da pena inicialmente prevista para o crime (Código Penal, art. 65-III-a e art. 121-§1º) (RTJSP, 41:346 e TJPR: Acrim 189, PJ, 32:201). Admite-se, no entanto, que a eutanásia possa, ao

mesmo tempo, caracterizar homicídio privilegiado e homicídio qualificado, cuja pena é consideravelmente superior à do homicídio simples, desde que a circunstância que qualifica o crime seja objetiva. É o caso do uso de veneno no paciente, mediante eutanásia, para causar-lhe a morte. O homicídio cometido mediante veneno sujeita a

pessoa a pena de reclusão de doze a trinta anos (é o homicídio qualificado), mas poderá ser diminuída de um sexto a um terço se for considerada eutanásia (é o homicídio privilegiado). Não se admite, porém, a combinação do homicídio privilegiado com o homicídio qualificado se a exasperação da pena decorre de motivo subjetivo, como é o caso de eutanásia mediante paga ou promessa de recompensa, ou outro motivo torpe (Código Penal, art. 121-§2º-I). Os motivos subjetivos são antagônicos e, por isso, não podem justificar a um só tempo a diminuição e o aumento da pena.96 (grifo nosso).

Guimarães consegue resumir a enorme variedade de posicionamentos acerca da regulamentação jurídico-penal dispensada à eutanásia, ratificando que existem as mais diferenciadas e vastas manifestações, umas com maior e outras com menor aceitação, mas cada uma com seus argumentos próprios, com o intuito de se encontrar uma solução legal para essa questão polêmica.

Guimarães ensina que:

Existe, ainda, por evidência, de tempos em tempos, com mais ou menos força, quem defenda a aplicação de excludentes ou dirimentes para os casos de eutanásia. A fórmula da excludente de tipicidade foi defendida, dentre outros argumentos, porque assume o dolo homicida propriamente dito. Também houve posicionamento que enxergava, na hipótese, uma causa excludente de ilicitude, ou então uma situação em que estivesse excluída a culpabilidade, ou ainda uma circunstância de isenção de pena, chegando-se às escusas absolutórias, à graça ou ao perdão judicial. Mais recentemente, outrossim, verificou-se a defesa de entendimento de que não seria função do Direito Penal preocupar-se com casos de eutanásia, ou ao menos de que, diante do que se compreende como função ou necessidade da pena, não seria razoável sancionar-se o agente que praticou uma conduta eutanásica. Daí adveio também a idéia de que não se poderia imputar objetivamente uma responsabilidade penal a esse agente, anotada a noção de que com tal conduta não se teria incrementado qualquer risco que, em princípio seria permitido.97

       

96

DODGE, Raquel Elias Ferreira. Eutanásia: aspectos jurídicos. Revista Bioética, v. 7, n. 01, 2009.

Disponível em:

<http://www.revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/299/438>. Acesso em: 20 abr. 2014.

97

A partir disso, verifica-se que são vários os argumentos das mais diversas espécies acerca da natureza jurídica da eutanásia e, por conseguinte, das consequências jurídico-penais que essa prática acarreta no ordenamento brasileiro.

Apesar disso, porém, o entendimento majoritário da doutrina pátria na atualidade permanece defendendo que a eutanásia, quando praticada no Brasil, realmente configura crime de homicídio, sendo, no entanto, concedido ao agente o benefício do privilégio, uma vez que demonstrado, no caso concreto, que autor do delito assim o cometeu imbuído de altruísmo e constatada a motivação de “relevante valor moral”.

Cesarin se inclui entre os que consideram a eutanásia hipótese de homicídio privilegiado, quando diz que, é baseado no preceito do artigo 121, §1º do Código Penal que a doutrina situa o tratamento penal dispensado à eutanásia, quando praticada por motivo piedoso e para a qual o consentimento do paciente ao médico não tem qualquer relevância, pois não exclui a ilicitude da conduta.98

Da mesma forma, Pimentel descreve o posicionamento de M. Iglesias, o qual, segundo referida autora, afirma que não é rara a aceitação de uma punição menos severa para o homicídio piedoso quando se o compara a um homicídio vulgar, sendo a causa dessa atenuação, geralmente, o móvel que orienta o agente, além do consentimento do agente.99 E continua dizendo:

[...] Iglesias leciona, particularmente, que o consentimento não chega a ter valor justificante na eutanásia, mas recorda que autores como Ingenieros e Del Vecchio o entendem como a razão mais legítima de impunidade nas hipóteses de homicídio piedoso. Iglesias continua sua lição, justificando uma menor severidade do sistema penal em relação à eutanásia, com o argumento da importância do direito da pessoa sobre o próprio corpo, consequência da autonomia da vontade, mas, sobretudo ressalta a relevância que tem, no Direito Penal Moderno, o motivo que dirige o autor da conduta. Assevera que seria absurdo declarar impunidade de quem mata um paciente com enfermidade incurável em virtude de móbil egoístico – como, por exemplo, para alcançar mais rapidamente uma herança ou para se desfazer da pesada carga econômica que representa um doente crônico. Contudo, se o móvel que anima o agente tem finalidade altruísta apenas, a imposição da pena seria carente de sentido e inútil.100

Vale ressaltar que Capez também comunga dessa mesma opinião, no sentido de que a eutanásia configura homicídio privilegiado, o qual está previsto no

       

98

CESARIN, Selma Aparecida. Breves considerações sobre eutanásia e ortotanásia e o respeito

ao princípio da dignidade no momento da morte. Anuário da Produção Acadêmica Docente, v. 2,

n. 02, p. 7-24, 2008. Disponível em:

<http://sare.anhanguera.com/index.php/anudo/article/view/445/440>. Acesso em: 21 abr. 2014.

99

PIMENTEL, 2012, p. 119-120.

100

artigo 121, § 1º do Código Penal, conferindo ao agente o privilégio de redução de pena, por ser uma especial causa de diminuição desta, incidindo na terceira fase de sua aplicação. Ademais, afirma que a concessão desse benefício não desvirtua a condição da eutanásia de homicídio previsto no tipo básico, ou seja, o caput desse artigo, mas em razão da reunião de determinadas circunstâncias subjetivas que levam a uma menor censura social, o legislador prevê uma causa especial de atenuação da pena.101

Importante destacar ainda, como bem pontuara Guimarães, anteriormente citado, que existem outros posicionamentos sustentados pela doutrina, como o caso de aplicação de excludente de ilicitude ou de culpabilidade ou ainda a configuração de circunstância autorizadora da isenção de pena ou do perdão judicial, por exemplo.

Jiménez de Asúa discute sobre a melhor forma de se encarar a eutanásia, questionando se o homicídio piedoso poderia ser uma causa de justificação, inculpabilidade ou desculpa absolutória. Nesse sentido, sustenta que conferir ao homicídio piedoso uma causa de justificação parece fugir um pouco ao senso do que é razoável. Assim, conclui que seria mais sensato reconhecer nessa conduta uma causa de inculpabilidade ou ainda uma escusa absolutória mais restrita, uma vez que o fato permanece ilícito e culposo, mas a impunidade se justificaria em virtude das circunstâncias concorrentes no agente. Assim, acaba por opinar que a solução mais correta a ser seguida nos casos de eutanásia seria não expressar a impunidade no homicídio piedoso, mas sim aceitar a aplicação do perdão judicial nesses casos, respeitadas as particularidades de cada situação.102

Segundo Pimentel, há ainda quem defenda não ser ofício do Direito Penal abarcar as hipóteses de eutanásia, uma vez que não se mostra razoável aplicar uma pena ao agente que praticou tal conduta, pois essa ação não aumenta qualquer risco que, a priori, seria permitido.103

Inclusive Capez, quando trata desse aspecto, fala sobre a teoria da imputação objetiva, segundo a qual, na visão do referido penalista, pode-se dizer que somente há imputação do resultado ao autor do fato se o resultado tiver sido

       

101

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 34.

102

JIMÉNEZ DE ASÚA, 1929 apud GUIMARÃES, 2009, p. 291.

103

provocado por uma conduta criadora de um risco juridicamente proibido ou se o agente, com seu comportamento, tiver aumentado a situação de risco proibido e, com isso, gerado o resultado.104

Nesse diapasão, percebe-se, portanto, que, nos casos de eutanásia, o agente, ao praticar tal conduta, não aumenta a situação de risco do enfermo, o qual, à época da ação médico, já fora diagnosticado com terminalidade, sem chances de melhora ou cura. Assim, segundo essa teoria, não há razoabilidade em sancionar alguém que pratique esse tipo de procedimento.

Como exposto alhures, há ainda alguns outros posicionamentos doutrinários em relação ao tratamento jurídico que deve ser dispensado à eutanásia no Brasil, os quais não serão aqui abordados.

Na verdade, pelo que se percebe da legislação pátria atualmente em vigor, não existe um tipo penal próprio e específico para a eutanásia, nem incriminando-a tampouco permitindo tal prática. Nesse sentido, Pimentel pondera:

Como já mencionado anteriormente, o Código Penal vigente, do ano de 1940, traz – em sua parte especial, na conduta tipificada como homicídio – uma causa especial de diminuição de pena, que pode ser aplicada caso o agente cometa o crime conduzido por motivo de relevante valor social, ou moral. Na exposição de motivos do referido código, revelou-se que o móvel da conduta somente pode ser considerado como tal (de relevante valor moral ou social), se aprovado pela moral prática. E um exemplo clássico de motivação que pode ser acatada como de relevante valor moral ou social é, justamente, a piedade ou a compaixão diante de vítima que padece de sofrimento intolerável e irremediável, nos casos de homicídio eutanásico.105 Nessa linha, observa-se o acaloramento das discussões acerca da possibilidade de se prolongar, artificialmente, a vida de muitas pessoas acometidas por sérias doenças, mormente diante das transformações da sociedade a ainda do aumento de recursos biotecnológicos. Com isso, surgiu a necessidade de se analisar e de se discutir a legitimidade do direito de se abreviar a vida em determinados contextos, uma vez que a Constituição estabelece o direito à vida como inviolável e indisponível, além de defender a dignidade da pessoa humana.

       

104

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 179-180.

105