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A morte como fator essencial para o deslinde de questões bioéticas – A

4 A EUTANÁSIA E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO

4.1 A morte como fator essencial para o deslinde de questões bioéticas – A

Nesse aspecto, durante muito tempo, estabeleceu-se o critério da parada cardiorrespiratória para se diagnosticar a morte humana. No entanto, com o surgimento das Unidades de Terapia Intensiva (UTI), alguns aparatos, como ventilação e circulação, tornaram-se capazes de manter as funções vitais, com exceção da função cerebral. A partir disso, como os respiradores não conseguiam manter o cérebro sem sequelas, surgiu a questão ética relativa à situação de pacientes que tinham perdido totalmente a função cerebral e eram mantidos respirando à base de aparelhos. Com isso, a tradicional definição de morte como sendo parada cardiorrespiratória passou a ser repensada.77

A partir disso, inclui-se a função neurológica como um fator essencial para se considerar a morte de alguém, aliada, obviamente, às funções cardíaca e respiratória. Assim, passou-se a adotar o critério da cessação total da função encefálica, o que ficou conhecido como “morte cerebral”, para se determinar o momento a partir do qual um ser humano poderia ser considerado clinicamente morto. O Brasil, seguindo o que foi convencionado pela comunidade científica mundial, aderiu aos novos critérios internacionais, considerando que a parada total e irreversível das funções encefálicas seria análoga à morte.

Nessa perspectiva, foi promulgada a Lei nº 9.434/97, que trata sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Nos termos do artigo 3º dessa lei, o Conselho Federal de Medicina (CFM) é o órgão responsável para determinar os critérios para diagnosticar a morte. Além disso, estabelece ainda que a retirada de órgãos e tecidos humanos do corpo de alguém tem que ser, necessariamente, precedida de um "diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos

       

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definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina".78 Assim, percebe-se que, a partir de então, não é suficiente apenas a parada cardiorrespiratória para a constatação da morte, mas é preciso, além disso, a verificação da morte encefálica.

Em seguida, o CFM editou a Resolução nº 1.480/97, a qual substituiu a antiga Resolução nº 1.396/91, trazendo, em seu bojo, os requisitos necessários para que se pudesse alcançar o diagnóstico de morte encefálica.79 Aliás, referida resolução institui que, para se caracterizar a morte encefálica, é necessário que esta seja consequência de processo irreversível e de causa conhecida, além da observação dos seguintes parâmetros clínicos: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supraespinal e apnéia. Ademais, a depender da idade do paciente, os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica são diferentes. Ao mesmo tempo, os exames complementares a serem analisados deverão demonstrar de forma inequívoca que há ausência de atividade elétrica cerebral ou de atividade metabólica cerebral ou ainda de perfusão sanguínea cerebral.80

Com isso, a delimitação legal do momento da morte dirimiu todas as dúvidas que existiam em relação à apreciação da responsabilidade civil e penal do indivíduo que, por exemplo, fizesse cessar a vida de alguém que estivesse em estado de terminalidade, por compaixão. Guimarães, nesse aspecto, dispõe:

Outrora, na seara legal, problema de grande monta existia para se apreciar a responsabilidade civil e, especialmente, a criminal do indivíduo que, por exemplo, matava por compaixão quem estivesse em estado terminal de doença incurável, em situação irreversível e provavelmente sem mais qualquer atividade cerebral. Em princípio, para o ordenamento jurídico pátrio, poderia ser responsabilizado penalmente quem assim agisse em relação à pessoa com morte encefálica, mas ainda com alguma atividade cardíaca.

Com a referida delimitação legal do momento da morte, tal não mais ocorre, posto que, em se constatando a morte encefálica, legalmente é considerado já morto o indivíduo, ainda que não tenha já se instalado a plena cessação do sistema cárdio-respiratório.81 (grifo nosso).

Nesse contexto, na hipótese de quadros clínicos em que o médico desligue os aparelhos mantenedores da respiração artificial ou mesmo ministre drogas para cessar a atividade cardíaca do paciente cuja atividade encefálica já

       

78

BRASIL. Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm>. Acesso em: 16 mai. 2014.

79

PIMENTEL, op. cit., p. 112.

80

BRASIL. Resolução CFM 1.480/97. Disponível em:

<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm>. Acesso em: 16 mai. 2014.

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faliu, não se caracteriza o homicídio. Isso porque, já não estando mais viva a pessoa no momento em que o agente praticou uma dessas condutas, com base nos critérios anteriormente citados, estar-se-ia diante de um crime impossível.82

Consequentemente, essa definição legal do instante da morte reflete não só na prática da eutanásia, mas também de várias outras questões médicas, como no caso de manipulação de células embrionárias e de aborto de anencéfalo. Nesse último, por exemplo, assim pode ser considerado, uma vez que, se a morte é definitivamente constatada pelos recursos mais modernos disponíveis no campo médico-tecnológico, tem-se a inexistência de toda atividade e função encefálica, o que provoca, no âmbito legal, no caso de haver manobra médica para a retirada do feto diante dessa circunstância, a não responsabilização penal do agente por aborto, justamente pelo fato de o feto anencéfalo ser considerado, nos termos da Lei nº 9.434/97, como já sem vida.83

Aliás, no campo prático de aplicação, merece destaque o julgamento da tão emblemática ADPF 54/DF, cujo relator é o Ministro Marco Aurélio. Nesse caso, discutiu-se acerca da constitucionalidade ou não da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do CP. O voto do referido ministro realçou que o pleito da requerente seria o reconhecimento do direito da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica de parto na hipótese de gravidez de feto anencéfalo, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. Além disso, ponderou que a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo não se coadunaria com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantiriam o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.

No que diz respeito à anencefalia, explicou que consistiria na malformação do tubo neural, a caracterizar-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento embrionário. Nestes termos, aludiu que o anencéfalo, assim como o morto cerebral, não deteria atividade cortical alguma, de modo que se mostraria deficiente de forma grave no plano neurológico, uma vez que lhe faltariam não

       

82

PIMENTEL, 2012, p. 115.

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somente os fenômenos da vida psíquica, mas também a sensibilidade, a mobilidade, a integração de quase todas as funções corpóreas. Portanto, o feto anencefálico não desfrutaria de nenhuma função superior do sistema nervoso central responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Destacou ainda que essa má-formação seria doença congênita letal, já que é consenso na medicina que o falecimento diagnosticar-se-ia pela morte cerebral.

Citou ainda a Resolução 1.480/97, do CFM, ressaltando que os exames complementares a serem observados para a constatação de morte encefálica deveriam demonstrar, de modo inequívoco, a ausência de atividade elétrica cerebral ou metabólica deste órgão ou, ainda, inexistência de perfusão sanguínea nele. Elucidou que, por essa razão, o CFM, mediante a Resolução 1.752/2004, consignara serem os anencéfalos natimortos cerebrais. Desse modo, eles jamais se tornariam pessoa. Assim, não se cuidaria de vida em potencial, porém, seguramente, de morte. Discorreu ainda que não se cuidaria de feto com deficiência grave que permitisse sobrevida fora do útero, mas tão somente de anencefalia. Por isso, exprimiu a anencefalia mostrar-se-ia incompatível com a vida extrauterina, ao passo que a deficiência, não.

Observou também que seria improcedente a alegação de direito à vida dos anencéfalos, ocasião em que explicou que, por ser o anencéfalo absolutamente inviável, não seria titular do direito à vida, motivo pelo qual o conflito entre direitos fundamentais seria apenas aparente, dado que, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontraria o direito à vida ou à dignidade humana de quem estivesse por vir. Ressaltou que o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, já que tinha em sua composição células e tecidos vivos, seria juridicamente morto, de maneira que não deteria sequer proteção jurídica, principalmente a jurídico-penal. Corroborou esse entendimento ao inferir o conceito jurídico de morte cerebral, fazendo alusão à Lei 9.434/97, destacando que seria impróprio falar em direito à vida intra ou extrauterina do anencéfalo, uma vez que considerado natimorto cerebral. Desse modo, a interrupção de gestação de feto anencefálico não configuraria crime contra a vida, porquanto se revelaria conduta atípica.

Por fim, prevaleceu o voto do ministro relator, a fim de declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, I e II, do CP.84

Ainda em relação ao conceito de vida humana e, por via de consequência, o conceito de morte, vale enfatizar também que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida, tampouco a dignidade da pessoa humana. Esses argumentos foram utilizados pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510) ajuizada com o propósito de impedir essa linha de estudo científico. Para seis ministros, ou seja, para a maioria da Corte, o artigo 5º da Lei de Biossegurança não merece qualquer reparo.85

No julgamento da ADI 3510, que se discutiu acerca da utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas, mormente no que concerne à relação entre a Lei de Transplante de Órgão (Lei nº 9.434/97) e a Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05), sobressai-se o voto do Ministro relator Ayres Britto, o qual se transcreve in verbis:

[...] É que a nossa Carta Magna não diz quando começa a vida humana. Não dispõe sobre nenhuma das formas de vida humana pré-natal [...] Por

isso que a Lei nº 9.434, na parte que interessa ao desfecho desta causa, dispôs que a morte encefálica é o marco da cessação da vida de qualquer pessoa física ou natural. Ele, o cérebro humano,

comparecendo como divisor de águas; isto é, aquela pessoa que preserva as suas funções neurais, permanece viva para o Direito [...] O paralelo com o art. 5º da Lei de Biossegurança é perfeito. Respeitados que sejam os pressupostos de aplicabilidade desta última lei, o embrião ali referido não é jamais uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova. Faltam-lhe todas as possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas que são o anúncio biológico de um cérebro humano em gestação. Numa palavra, não há cérebro. Nem concluído nem em formação. Pessoa humana, por consequência, não existe nem mesmo com potencialidade. Pelo que não se pode sequer cogitar da distinção aristotélica entre ato e potência, porque, se o embrião in vitro é algo valioso por si mesmo, se permanecer assim inescapavelmente confinado é algo que jamais será alguém [...] O paralelo é mesmo este: diante da constatação médica de

morte encefálica, a lei dá por finda a personalidade humana, decretando e simultaneamente executando a pena capital de tudo o mais. A vida tão-só e irreversivelmente assegurada por aparelhos já não conta, porque definitivamente apartada da pessoa a que pertencia

(a pessoa já se foi, juridicamente, enquanto a vida exclusivamente induzida

       

84

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo STF nº 661, de 9 a 13 de abril de 2012. ADPF 54/DF. Relator: Ministro Marcos Aurélio. Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm#ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 1>. Acesso em: 17 mai. 2014.

85

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF. 29 de maio de 2008. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=89917>. Acesso em: 17 mai. 2014.

teima a ficar) [...] Em suma, e já agora não mais por modo conceitualmente provisório, porém definitivo, vida humana já rematadamente adornada com o atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral.86 (grifo nosso).

Ele anotou, dentre vários argumentos, que o embrião, na sua fase inicial, não possui terminações nervosas ou qualquer função encefálica, razão pela qual não pode ser considerado ser humano embrionário, mas sim embrião de ser humano, com um desenvolvimento inviável, estando fora do ventre materno.87

Assim, percebe-se que o referido Ministro votou pela total improcedência da ação, fundamentando seu voto em dispositivos da Constituição Federal que garantem o direito à vida, à saúde, ao planejamento familiar e à pesquisa científica. Destacou ainda o espírito de sociedade fraternal preconizado pela Carta Magna, ao defender a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa para curar doenças. Ademais, qualificou a Lei de Biossegurança como um “perfeito” e “bem concatenado bloco normativo”. Sustentou a tese de que, para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no útero humano. Segundo ele, tem que haver a participação ativa da futura mãe. No seu entender, o zigoto (embrião em estágio inicial) é a primeira fase do embrião humano, a célula-ovo ou célula-mãe, mas representa uma realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro formado. Ele se reportou também a diversos artigos da Constituição que tratam do direito à saúde e à obrigatoriedade do Estado de garanti-la, para defender a utilização de células-tronco embrionárias para o tratamento de doenças.88

Por tudo isso, evidencia-se que, no âmbito normativo, pelo menos, a discussão a respeito da concretização da morte está, de fato, concluída, já que a lei assinalou, por último, exatamente quando pode ser considerada a efetiva morte da pessoa humana.

Por outro lado, porém, apesar de já se saber quando realmente há a cessação da vida com base no ordenamento jurídico pátrio e, consequentemente, os reflexos na seara penal e civil, ainda não há unanimidade em relação a essa temática. Inclusive, muitas pessoas continuam posicionando-se radicalmente

       

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VOTO do Ministro Carlos Ayres Britto no julgamento da ação relativa à inconstitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrionárias. ADI nº 3510, em 29 de maio de 2008. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronic o.jsf?seqobjetoincidente=2299631>. Acesso em: 17 mai. 2014.

87

GUIMARÃES, 2009, p. 60-61.

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contrárias a esse entendimento, sustentando sua inconstitucionalidade, haja vista a inviolabilidade do direito à vida insculpido na Constituição Federal.

Por tudo isso, este estudo propõe-se a trazer o tema da eutanásia à baila, primeiramente porque essa conduta ainda é criminalizada em muitos países, especialmente no Brasil. Segundo porque, a partir de uma discussão mais profunda sobre esse assunto, busca-se amparar e dar maior visibilidade e credibilidade ao conceito de eutanásia num sentido mais humanitário, a fim de garantir aos indivíduos com enfermidade incurável, em casos de real irreversibilidade do quadro, o direito de viver as suas escolhas e os seus valores, podendo dispor sobre sua própria vida.