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3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A EUTANÁSIA: O EXTREMO FINAL DA VIDA

3.3 O uso dos conceitos: as diferentes concepções de morte 36

Para que seja possível explicar as diversas dúvidas ao redor dessa temática, é imprescindível apresentar a definição legal de morte, evidenciando suas consequências no campo do Direito e também da Medicina, e ainda tomar emprestados conceitos e vocábulos pertencentes a outras áreas do conhecimento,

       

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já que a ciência jurídica não possui o suporte necessário para responder a todas essas questões da melhor maneira possível. Nesse contexto, é preciso entender como o Direito caracteriza a morte.

Para essa ciência, a morte natural é considerada um fato jurídico stricto

sensu. Nas palavras de Maria Helena Diniz, “o fato jurídico stricto sensu seria o acontecimento independente da vontade humana que produz efeitos jurídicos, criando, modificando, ou extinguindo direitos”. Seria ainda esse fato jurídico em sentido estrito do tipo ordinário, existindo também os do tipo extraordinário, como o caso fortuito e a força maior.65

Nessa perspectiva, a cessação da vida encontra guarida na ciência normativa e ainda pode acarretar diversas consequências na esfera jurídica, a depender do âmbito em questão.

O primeiro e talvez mais comum dos efeitos gerados pelo fato jurídico morte no ordenamento jurídico brasileiro é exatamente o de que este põe fim à existência da pessoa natural, e, consequentemente, extingue a sua personalidade. Mesmo quanto aos ausentes, a morte pode ser presumida. É o que se extrai do artigo 6º do Código Civil de 2002, o qual preleciona que “a existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”.66 Além disso, é a partir da morte que se desencadeia toda a linha sucessória do de cujus, sendo possíveis os mais variados efeitos.

Ademais, a morte ocasiona desdobramentos não só no âmbito civil, mas também no penal. Nessa seara, existe o princípio da pessoalidade ou da intranscendência da pena, o qual está insculpido no art. 5º, inciso XLV da Constituição Federal, em que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.67 Com isso, apenas o condenado é que terá de se submeter à sanção que lhe foi aplicada pelo Estado.

       

65

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 596 p.

66

BRASIL. Código civil (2002). Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 18 abr. 2014.

67

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 abr. 2014.

Assim, preleciona Greco:

Havendo o falecimento do condenado, por exemplo, a pena que lhe foi infligida, mesmo que de natureza pecuniária, não poderá ser estendida a ninguém, tendo em vista o seu caráter personalíssimo, quer dizer, somente o autor do delito é que pode submeter-se às sanções penais a ele aplicadas.68

Com base nisso, se o condenado vier a morrer, o valor correspondente à pena de multa a ele aplicada não poderá sequer ser cobrada de seus herdeiros, em virtude do princípio da pessoalidade. Todavia, se houver uma responsabilidade não penal, como a obrigação de reparar um dano, nada impede que, no caso de falecimento do condenado e tendo este transferido bens aos seus herdeiros, sejam estes responsáveis por reparar tal dano, na proporção da parte que lhes coube na herança, conforme preceitua o artigo 1.997 do Código Civil de 2002.69 Para corroborar esse entendimento, o artigo 107, inciso I do Código Penal Brasileiro estabelece que a punibilidade do agente se extingue com a morte deste.70

Por tudo isso, percebe-se que o evento morte acarreta uma série de efeitos na esfera jurídica, sendo muito importante estabelecer quando isso ocorre. Para tal, a Medicina dá uma pista de quando a cessação da vida se concretiza, para que, a partir disso, seja possível também entender a eutanásia.

Segundo Thoinot, apud Favero:

[...] a morte é a cessação dos atos vitais mas, faz-se necessário saber que esses atos tão diversos não cessam todos de uma vez. A morte não é um momento, mas um verdadeiro processo. Em que instante, pois, se coloca o que vulgarmente se chama de morte? Na prática, e com a lógica, admite-se que a vida cessa quando a respiração e a circulação definitivamente se extinguiram; a ação cardíaca sobrevive, em geral, à ação respiratória.71 Já Hungria preleciona: “mas o que é vida? [...] A respiração é uma prova, ou melhor, a infalível prova da vida; mas não é a imprescindível condição desta, nem a sua única prova”.72

Segundo Nucci, a morte é a:

[...] cessação das funções vitais do ser humano (coração, pulmão, cérebro), de modo que ele não possa mais sobreviver por suas próprias energias, terminados os recursos médicos validados pela medicina contemporânea,

       

68

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: Parte geral. Vol. 1. 12. ed. Niterói: Impetus, 2010. p. 75.

69

BRASIL, 2002.

70

BRASIL. Código penal (1940). Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 19 abr. 2014.

71

FAVERO, Flamínio. Medicina legal. 11. ed. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada, 1980. 624 p.

72

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v.V, p. 37-38.

experimentados por um tempo suficiente, o qual somente os médicos poderão estipular para cada caso isoladamente.73

França, apud Bizzato, ao discorrer sobre a morte, estabeleceu que “a noção mais simplificada de morte é a cessação total e permanente das funções vitais, pois para a lei a morte é um fenômeno instantâneo, considerando que o indivíduo só pode estar em dois estados – de vida ou de morte”.74 Bizzato, diferentemente, acredita que, para os médicos, a morte verifica-se por etapas e em um determinado intervalo temporal, tendo em vista que nem todos os órgãos morrem no mesmo instante.75

Já Félix defende que “a linha divisória entre a vida e a morte é tênue e de difícil delimitação em face das nuances criadas com o desenvolvimento tecnológico das biociências”.76 E de fato o é. A morte não é um acontecimento instantâneo, mas um processo, por isso que se considera sutil o limiar entre vida e morte.

Mas em que realmente consiste a morte? Quando se trata desse assunto, automaticamente vem à mente a morte clínica ou a biológica, principalmente quando se trata de pessoas alheias ao conhecimento da Medicina. Por isso, percebe-se que há diferentes perspectivas para a diversidade de conceitos médicos de morte, a depender da situação do paciente, podendo ser do tipo clínica, biológica, ou cerebral, por exemplo. Ademais, ao longo de toda a história, esse conceito sofreu inúmeras alterações, o que demonstra ser esse ele mutável, dependendo das inovações científico-biológicas. Consequentemente, surgem também novas possibilidades de haver mudanças de perspectiva em relação à morte na seara do Direito.

No que diz respeito às questões relacionadas à determinação do momento da morte, elas serão abordadas em momento oportuno, quando da discussão dos aspectos jurídicos que cercam a eutanásia. (Item 4.1)

       

73

NUCCI, Guilherme. Código penal comentado. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 367. 74 BIZATTO, 2000, p. 286. 75 Ibid., p. 287. 76 FÉLIX, 2006, p. 16.