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3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A EUTANÁSIA: O EXTREMO FINAL DA VIDA

3.1 Aspectos históricos

Se voltarmos a um passado bem distante, durante a Antiguidade, facilmente se percebe que os povos dessa época praticaram a eutanásia nas suas variadas formas e modalidades, sendo essa técnica bastante comum e valorizada nesse período.

Nesse período, diversos povos primitivos tinham por hábito sacrificar os velhos, os enfermos e também os débeis mentais, em benefício de outras pessoas. Além disso, na Índia antiga, os doentes desenganados eram sacrificados no rio Ganges.51

Inclusive, Plutarco, apud Bizzato, narra em seu livro intitulado Vidas

Paralelas que “em Esparta, todas as crianças fracas, sem muita esperança de vida,

imprestáveis para a comunidade, eram lançadas do cume de um monte, a fim de evitar que sofressem e se tornassem carga inútil para os seus familiares, como também para o Estado”.52

As práticas eutanásicas também permeiam algumas passagens bíblicas, como a exemplo de Saul, rei de Israel, que, ferido na batalha, se lançara sobre a sua espada, sem morrer, quando solicitou a um amalecita que lhe tirasse a vida.53 Segundo Nogueira, esse é o primeiro relato de eutanásia na história.54

Além dessa, há também uma situação vivenciada por Jesus, na qual ele, “chegado que foi ao calvário, onde foi submetido aos suplícios da crucificação, segundo Cícero, deram-lhe de beber vinagre e fel, chamado vinho da morte, mas ele, provando a mistura, não quis tomar.”55

Embora haja dúvida em relação à natureza da bebida oferecida ao Cristo, se era para antecipar sua morte ou para entorpecê-lo e fazê-lo suportar melhor a

       

51

FÉLIX, Francisco Hélio Cavalcante. Eutanásia: questões bioéticas e legais. 2006. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006. p. 35.

52

BIZZATO, 2000, p. 43.

53

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1998.

54

NOGUEIRA, 1995, p.42.

55

dor, conforme Nogueira, esses são, claramente, “exemplos da imposição ou da recusa à prática da eutanásia, sob o aspecto religioso, na Antiguidade; a evolução dos tempos implicou também a mudança de postura perante muitas crenças religiosas”.56

Durante toda a história, além dessas, muitas outras pessoas foram partidárias da eutanásia, a exemplo de Thomas Morus, em seu livro A Utopia, que conferiu aos magistrados e sacerdotes o encargo de apresentar aos incuráveis e aos que sofrem a melhor maneira de deixá-los morrer, quando hajam chegado no limite da exaustão pela luta da sobrevivência. Não se pode esquecer também do pedido que, nos tempos modernos, Napoleão Bonaparte fez, “na campanha do Egito, ao cirurgião Degenettes, de matar com ópio soldados atacados de peste, respondendo este que a isso se negava porque a função do médico não era matar e sim curar”.57

Vale ressaltar que algumas práticas aqui citadas, executadas em diversos povos, não constituem, porém, propriamente atos eutanásicos, no sentido rigoroso da palavra, tendo em vista a crueldade dos meios utilizados, o que, obviamente, se contrapõe à verdadeira finalidade da eutanásia, a qual se sabe, consiste em proporcionar uma morte digna e tranquila, sem dor.

Nesse sentido, pondera o advogado Rodrigues, citado por Nogueira, que “a forma como se tira a vida tem relevância, aqui, em vista da amplitude da conceituação de morte boa”.58

Desta feita, louvada na Antiguidade, a eutanásia apenas passou a ser rechaçada a partir da difusão dos valores cristãos e judeus, os quais conferiram à vida um valor sagrado. Apesar disso, a eutanásia somente veio a ser de fato considerada uma conduta criminalizada nos tempos modernos, em que a proteção à vida constitui o primeiro e mais fundamental dos direitos tutelados na legislação atual. Isso pode ser constatado quando se observam os mais prodigiosos avanços das ciências, “no afã de desvendar os mistérios da vida ou de prolongá-la, de minorar as dores e sequelas das patologias e disfunções do organismo”.59

Por essa razão, Castro et al. acrescentam que se:

[...] impôs ao legislador nas últimas décadas a crescente vigilância quanto à possibilidade de riscos e danos perpetráveis à integridade física e mental

        56 NOGUEIRA, 1995, p. 43. 57 MENEZES, 1977, p. 47. 58

NOGUEIRA, op. cit., p. 43.

59

dos seres humanos, a fim de que o progresso científico nesse importante e inesgotável campo de investigação se compatibilize com as normas e princípios tutelares da personalidade humana. A rigor, nunca foram tão estreitas em todo o mundo as relações entre os juristas e os cientistas da área biomédica.60

Por tudo isso é que não tem sido nada fácil encontrar o equilíbrio entre o espaço legítimo do progresso científico, em relação às possibilidades de prolongamento da vida humana, e os limites materializados nos direitos inerentes às pessoas e à dignidade a elas conferidas pelo direito moderno.

Apesar de todas essas dificuldades, a tarefa de encontrar essa justa equação mostra-se bastante desafiadora na medida em que tenta dar prioridade aos direitos fundamentais do homem e às suas escolhas, em detrimento da evolução da ciência, num momento em que há supervalorização das descobertas científicas frente à condição humana e seus valores.

Nas palavras dos autores em comento:

Diante desse contexto, que tende a supervalorizar a projeção das ciências em direção ao infinito e a subestimar o potencial humanístico que necessariamente subjaz ao progresso da técnica e às conquistas do conhecimento, tornou-se prioritário associar os avanços laboratoriais com o cardápio dos direitos fundamentais do homem, cujo currículo de tradições seculares não pode ser afastado da análise dessa série de questões que a ciência vai colocando na ordem do dia, mas que no fundo tocam sempre com a condição humana no universo.61

Assim, nessa linha, deve-se entender que a dimensão do que significa o homem e, consequentemente, o amparo à autonomia da sua vontade e à sua singularidade encontram guarida na Constituição Federal, razão pela qual não devem estas ser preteridas pelas descobertas da ciência e da biomedicina, podendo acarretar problemas de grande ordem capazes de influenciar negativamente os valores universais, tais como a liberdade e a autonomia.