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A Felicidade na Ética de Kant

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TÍTULO: A FELICIDADE NA ÉTICA DE KANT AUTOR: Mónica de Freitas e Silva Gutierres COLECÇÃO: ACADEMICA 3

Julho de 2006

TIRAGEM: 500 exemplares

EDITOR: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa - 2006 Obra publicada no âmbito do projecto POCTI/FIL/44903/2002, «Kant 2004: Posteridade e Actualidade», desenvolvido no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

CAPA: Pormenor de P. Bruegel o Velho: “A colheita”

Impressão e acabamento: Tipografia Abreu, Sousa & Braga, Lda - Braga ISBN: 978-972-8531-39-3

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Mónica Gutierres

A Felicidade na Ética de Kant

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ÍNDICE GERAL

Prefácio 9

Método de citação e siglas 10

Introdução 11

Parte I

A rejeição kantiana do eudemonismo

Capítulo 1: Elementos de uma analítica da razão prática empírica 17

1. Que significa desejar? 18

2. Acerca dos apetites e da sua relação com o prazer 23

3. Vontade e interesse 33

4. O conceito de felicidade 44

Capítulo 2: A argumentação kantiana contra o eudemonismo 57 1. Argumentos que sustentam a impossibilidade moral do princípio

da felicidade 57

1.1. Corolário da argumentação kantiana contra o eudemonismo:

a doutrina da felicidade como uma doutrina da prudência 71 2. Crítica kantiana ao epicurismo e às morais inglesas do sentimento 74

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Parte II

O lugar positivo da felicidade na ética de Kant

Capítulo 3: O problema da possibilidade do soberano bem 85

1. O que faz do soberano bem um problema? 85

2. Resolução do problema da possibilidade do soberano bem 88 3. Acerca das condições de resolução do problema da possibilidade do

soberano bem: a doutrina kantiana dos postulados 91 4. A possibilidade do soberano bem nos limites da religião da razão 102

5. Uma questão em aberto 105

Capítulo 4: O significado fundamental do soberano bem 107 1. A verificação da validade da lei moral e a sua relação com a

reflexão sobre o problema do soberano bem 107 2. A verdadeira justificação da necessidade de uma reflexão sobre

o problema do soberano bem 111

3. Uma omissão de Kant 116

Conclusão 121

Glossário 125

Index rerum 129

Index nominum 135

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PREFÁCIO

Este trabalho corresponde, quase na íntegra, ao texto da dissertação de mestrado em Filosofia apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Julho de 1998, agora revisto e actualizado. Mantive praticamente o texto original já que, salvo raras excepções, a numerosa bibliografia kantiana entretanto publicada pouco contempla o tema aqui abordado, a saber, a felicidade na ética de Kant. Apesar de a felicidade não ser um tema central da filosofia do autor, espero que este estudo constitua um bom instrumento de trabalho para quem se interesse pela ética kantiana em geral e por esta questão em particular.

Quero agora, e em primeiro lugar, renovar os meus agradecimentos ao Professor Doutor Manuel J. Carmo Ferreira, pela efectiva e rigorosa orientação da minha dissertação, pela generosa disponibilidade da sua biblioteca e também pela ilimitada paciência que manifestou sempre que por mim foi solicitado. Sem o seu essencial contributo, eu nada teria feito.

Quero desde já agradecer, também, ao Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos, a quem devo, para além da sua sempre gentil colaboração bibliográfica, o convite para publicar este estudo.

Agradeço ainda a todos aqueles que, de alguma forma, contribuiram para a concretização da minha dissertação e, portanto, deste volume: a Jorge Alves e a Eduardo Lourenço, pela sua colaboração no tratamento da língua alemã; à Professora Doutora Adriana Veríssimo Serrão, pelo apoio bibliográfico; às Funcionárias do Departamento de Filosofia, pela sua eficácia na superação de alguns obstáculos e ao Centro de Filosofia e, em particular, à Carla Simões, pelo seu útil apoio.

Agradeço também aos meus amigos e à minha família; sobretudo à minha mãe, Maria Luísa, pela sua total disponibilidade, e ao meu pai, José Ricardo, pelo seu habitual entusiasmo em matéria de estudo e de saber.

Reservo, finalmente, um especial agradecimento ao Ricardo, meu marido, a quem devo grande parte da minha motivação e uma grande ajuda.

Lisboa,

Dezembro de 2005

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MÉTODO DE CITAÇÃO E SIGLAS

Citaremos as obras de Kant, como é regra, indicando o volume da edição da Academia de Berlim e a respectiva página. Nas citações da Crítica da Razão Pura, acrescentaremos ainda as páginas da edição original. Quanto à Lição sobre Ética, não tendo sido possível o acesso à edição de referência (ed. Menzer, 1924), remeteremos a paginação para a tradução adoptada (vide Bibliografia). Além disso, sempre que exista tradução portuguesa, indicaremos, entre parêntesis, o número da página que lhe corresponde.

A citação de comentadores seguirá uma regra de economia: indicar-se-á apenas o nome do autor, a data da publicação e a página. Para identificar a obra em causa, consulte-se, no final, a bibliografia.

Para os títulos das obras de Kant, adoptaremos as seguintes siglas:

Antrop. – Antropologia numa perspectiva pragmática

CFJ – Crítica da Faculdade de Julgar

CRP – Crítica da Razão Pura

CRPr – Crítica da Razão Prática

Dissertação – Da forma e dos princípios do mundo sensível e do mundo

inteligível

Enciclopédia – Enciclopédia Filosófica

FMC – Fundamentação da Metafísica dos Costumes

Grand. neg. – Ensaio para introduzir na filosofia o conceito de grandezas

negativas

Hist. univ. – Ideia para uma história universal com propósito cosmopolita

Liç. Ét. – Lição sobre Ética

Lóg. – Lógica

MCDD – Metafísica dos Costumes: Doutrina do Direito

MCDV – Metafísica dos Costumes: Doutrina da Virtude

OP – Opus Postumum

Orientar-se – Que significa orientar-se no pensamento?

Refl. – Reflexões (do Kants Nachlaß)

Religião – A Religião nos limites da simples razão

T&P

– Sobre o dito comum: isso pode ser correcto na teoria,

mas não serve na prática

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INTRODUÇÃO

Procuraremos, neste volume, efectuar um estudo sobre o tema da felicidade na filosofia de Kant.

Embora não tenha escrito qualquer texto exclusivamente dedicado à análise do conceito de felicidade, a obra onde Kant o trata de modo mais completo e siste-mático é a Crítica da Razão Prática (1788), a qual constituirá, por isso, o objecto privilegiado do nosso estudo. Todavia, uma vez que o tratamento do conceito de felicidade não sofre oscilações significativas no conjunto das obras do autor, será este o nosso âmbito de investigação.

O tema da felicidade não tem constituído grande motivo de reflexão entre os comentadores de Kant. De qualquer modo, e de acordo com o estudo elaborado por Victoria Wike, Kant on Happiness in Ethics, é possível supreender, grosso modo, duas diferentes linhas interpretativas sobre esta matéria1: por um lado,

distinguem--se aqueles comentadores para quem a felicidade não desempenha qualquer papel na ética kantiana, considerada esta, sobretudo, como uma ética pura do dever2; por

outro lado, e opondo-se a esta linha interpretativa, destacam-se aqueles para quem a felicidade ocupa o lugar central da ética de Kant, considerada esta, fundamental-mente, como uma ética teleológica3. Ora, com esta investigação, procuraremos

mostrar que a relevância ou irrelevância da temática da felicidade na moral kan-tiana depende, mais precisamente, dos diferentes pontos de vista em que a avaliar-mos. Com efeito, uma coisa é a função da felicidade na ética de Kant, do ponto de vista de uma reflexão sobre os alicerces fundamentais que devem sustentar um sistema moral; outra é a função da felicidade na ética de Kant, do ponto de vista de uma reflexão sobre os principais fins da existência humana.

Mas antes de passarmos a apresentar a organização que presidirá a este nosso estudo, cumpre-nos proceder à justificação do interesse de uma tal reflexão, a qual passa pela apresentação do carácter problemático que o tema da felicidade possui na filosofia de Kant. Respondamos, então, à questão que se nos impõe: por-que é por-que a felicidade constitui um problema na filosofia de Kant?

1 Wike (1994) xvi. Esta obra de Wike, contrariando a tendência geral dos comentadores de Kant, centra a sua atenção exclusivamente no tema da felicidade. A este propósito, importa também referir o estudo (este mais recente) de Paul Guyer (2000), Kant on Freedom, Law, and Happiness, o qual, embora não dê ao conceito de felicidade o mesmo lugar de destaque que lhe é atribuído por Wike, oferece uma abordagem do mesmo na sua relação com o conceito de liberdade.

2 Como primeiros representantes desta linha interpretativa, Victoria Wike destaca Garve, Schopenhauer e Schiller. Mais recentemente, esta mesma perspectiva tem sido defendida, especialmente, por autores de textos introdutórios, ainda que alguns estudiosos de Kant menos superficiais (como Edward Caird) também a sustentem.

3 Desta segunda tendência, aliás menos frequente, o próprio livro de Victoria Wike (1994), Kant on

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A felicidade constitui um problema na filosofia de Kant porque se, por um lado, ela não pode ser reconhecida como um fundamento legítimo das nossas acções, quer dizer, como um motivo de acção capaz de garantir ao mesmo tempo o valor moral da própria acção, por outro lado, ela tem de ser reconhecida como um fim a que o homem está inevitavelmente condenado. Sendo racional, mas também finito, o homem é dotado de desejos, de apetites e de inclinações que quer, natural-mente, ver satisfeitos e cuja satisfação lhe proporciona felicidade, pelo que admitir a possibilidade de o ser humano renunciar à sua própria felicidade significaria ingenuamente admitir a possibilidade de o homem renunciar a uma parte de si mesmo, da sua própria natureza. O carácter problemático da felicidade reside, deste modo, no facto de ela, enquanto fundamento de determinação da vontade, não garantir a moralidade do agir humano, constituindo, ainda assim e simultanea-mente, uma finalidade para que tende naturalmente o próprio agir e que, por essa razão, não pode de todo ser descurada.

A organização desta nossa investigação em dois momentos procurará, preci-samente, ter em conta os dois lados desta questão ou, e retomando algo que já aqui foi dito, os diferentes pontos de vista a que podemos submeter a apreciação do problema da felicidade.

Primeiramente, procederemos ao estudo da recusa kantiana do eudemo-nismo, entendendo-se por eudemonista toda e qualquer doutrina da moralidade segundo a qual a felicidade, ou o prazer, é o verdadeiro motivo da acção virtuosa4.

Começaremos este estudo com a elaboração de uma análise da razão na sua relação com o desejo5 e terminá-lo-emos com a apresentação e com a discussão da

argumentação dirigida por Kant contra a possibilidade de a felicidade constituir o fundamento da moralidade6.

Se quisermos situar a referida rejeição no percurso filosófico de Kant, pode-remos dizer dela que se inscreve num horizonte temático cuja preocupação funda-mental é a fundação de um sistema moral. Com efeito, a investigação kantiana que preside à fundação de um sistema moral estrutura-se, precisamente, segundo duas tarefas, as quais, embora sejam diferentes na sua essência, surgem frequentemente enlaçadas na exposição das matérias levada a efeito pelo autor: por um lado, pro-cura operar-se a distinção entre uma doutrina empírica da felicidade e uma doutrina pura da moralidade, distinção que o autor designa na Analítica da Crítica da Razão

Prática, em particular num sub-capítulo intitulado “Exame crítico da analítica da

4 Cf. MCDV, Ak VI, 377-378 (9). O eudemonista é aquele que coloca na felicidade pessoal, e não no dever, o fundamento de determinação supremo da sua vontade (cf. Antrop., Ak VII, 130).

5 A referida análise constituirá o primeiro capítulo do nosso livro e por ela será facultado todo o aparelho teórico necessário para uma compreensão eficaz da rejeição kantiana da felicidade como princípio do dever.

6 A apresentação e discussão dos argumentos utilizados por Kant com vista à rejeição do eudemonismo constituirá o segundo capítulo da nossa investigação.

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razão pura prática”, como sendo “a primeira e a mais importante tarefa”7 a realizar

pela razão pura na sua analítica; por outro lado, procura expor-se os princípios fundamentais que presidem à própria doutrina pura da moralidade. Embora, por estas tarefas, não fique determinado que o exercício da moralidade exija uma rejeição absoluta e necessária da felicidade (pelo menos enquanto objecto possível a realizar por uma vontade), fica, todavia, demonstrada a impossibilidade de a nossa felicidade constituir positivamente um dever e, mais do que isso, o princípio de todo o dever, assim como fica estabelecida a tese segundo a qual a lei moral é o único fundamento legítimo de determinação da vontade capaz de garantir a moralidade do agir humano. Em suma: fica determinado que, em matéria de dever ou, mais correctamente, de fundação do dever, a felicidade é um elemento a não considerar.

Apresentado nos seus aspectos fundamentais aquele que constitui o hori-zonte temático em que se inscreve a primeira parte do nosso estudo, poderemos agora dizer, de modo mais preciso, que este último se situa essencialmente no contexto da tarefa que primeiramente apresentámos, a saber, a distinção entre uma doutrina empírica da felicidade e uma doutrina pura da moralidade.

O segundo momento deste nosso estudo incidirá sobre o tratamento kantiano do problema da possibilidade do soberano bem, enquanto fim final que à vontade se impõe realizar, como exigência prescrita pela lei moral. Pensar a possibilidade do soberano bem significa pensar a possibilidade de um justo acordo entre a felici-dade do ser racional e a moralifelici-dade que esse mesmo ser põe em exercício. O estudo que faremos neste último momento cumprir-se-á em duas etapas, competindo à primeira uma apresentação do referido problema, da sua solução e, ainda, das con-sequências dessa mesma solução8, e competindo à segunda determinar o

signifi-cado fundamental do problema da possibilidade do soberano bem para a filosofia kantiana em geral9. Uma e outra etapa, ao permitirem formular algumas questões

em relação às quais o nosso autor parece não oferecer resposta, ou pelo menos uma resposta absolutamente rigorosa, porão em evidência aqueles que julgamos serem os aspectos menos claros da filosofia prática de Kant considerada segundo a temá-tica da felicidade.

Os dois momentos principais que estruturarão esta nossa investigação per-mitirão, finalmente, compreender que, se do ponto de vista de uma reflexão sobre os fundamentos de um sistema moral, a felicidade se manifesta como sendo um elemento a excluir, diferentemente, do ponto de vista de uma reflexão sobre a des-tinação ou finalidade da vida humana, a felicidade surge clara e positivamente recuperada.

7 Cf. CRPr, Ak V, 92 (108).

8 Esta primeira etapa corresponde precisamente ao terceiro capítulo deste volume. 9 Esta segunda etapa cumprir-se-á com o quarto e último capítulo deste volume.

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* * *

Sempre que citarmos Kant, fá-lo-emos adoptando as traduções portuguesas existentes, introduzindo, quando necessário, correcções que devidamente assinala-remos. Quando não encontrarmos traduções portuguesas dos textos de Kant, utili-zaremos os originais alemães, socorrendo-nos do confronto com traduções france-sas e inglefrance-sas (no caso das Reflexões, recorreremos também a traduções parciais presentes em estudos sobre Kant).

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PARTE I

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CAPÍTULO 1

ELEMENTOS DE UMA ANALÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA EMPÍRICA

O objecto de estudo da primeira parte deste volume, a saber, uma análise da recusa kantiana do eudemonismo, inscreve-se, como foi dito na Introdução, no âmbito geral do esforço de fundação de um sistema moral e, mais particularmente, no âmbito da distinção kantiana entre uma doutrina empírica da felicidade e uma doutrina pura da moralidade. Precisamente porque isso acontece1 e porque o

sen-tido de uma tal distinção põe imediatamente em evidência a irredutibilidade de todo o agir humano ao agir moral (ou, dito de outro modo, aponta para a possibili-dade de um agir humano não especificamente moral), julgamos necessário, como exigência de clarificação da análise da rejeição enunciada, proceder à exposição prévia de um aparato conceptual que, por vezes, se revela mais próprio de uma teoria kantiana da acção em geral do que de uma teoria kantiana da acção moral em particular. Embora não possamos encontrar na filosofia prática de Kant a formula-ção explícita de uma teoria da acformula-ção que funcione como preparaformula-ção para a apresentação de uma teoria moral2 e, pelo contrário, no sistema filosófico kantiano,

o desenvolvimento daquela proceda sempre a partir do desenvolvimento desta, este nosso estudo exigirá, todavia, a análise de alguns aspectos fundamentais relativos à acção em geral3. Com efeito, só com o concurso destes aspectos será possível levar

a efeito a tarefa inicial da primeira parte desta nossa investigação, a saber, a elabo-ração daquilo a que Lewis White Beck chama uma “analítica da razão prática

1 A rejeição kantiana do princípio da felicidade como princípio do dever não só surge no seio da distinção entre uma doutrina empírica da felicidade e uma doutrina pura da moralidade, como constitui, pelo menos na obra onde Kant faz um tratamento mais sistemático destas matérias (referimo-nos à CRPr), o elemento que primeira-mente é considerado. Efectivaprimeira-mente, e apesar de não podermos falar da existência de uma ordem rigorosa na exposição destes assuntos, o autor ocupa-se primeiramente da demonstração da impossibilidade dos princípios práticos materiais fornecerem leis universais, para passar a estabelecer, depois, a tese segundo a qual só a lei moral é o princípio legítimo capaz de garantir a moralidade do agir humano. Veja-se, a este propósito, a seguinte passa-gem: “Ora, de uma lei, uma vez separada toda a matéria, isto é, todo o objecto da vontade (como fundamento de determinação), nada mais resta do que a simples forma de uma legislação universal” (“Nun bleibt von einem Gesetze, wenn man alle Materie, d.i. jeden Gegenstand des Willens (als Bestimmungsgrund) davon absondert, nichts übrig, als die blosse Form einer allgemeinen Gesetzgebund”, CRPr, Ak V, 27 [38, tradução corrigida]).

2 A ausência da formulação explícita de uma teoria geral da acção em Kant surge justificada pelo próprio filósofo (cf. e.g. FMC, Ak IV, 390 [27-28]; CRPr, Ak V, 9n [17n]). Sullivan (1989) equaciona essa justificação de uma forma bastante clara: “He [Kant] wished to avoid what he saw as a fundamental mistake made by other authors such as Christian Wolff, who, he thought offered a theory of action that by its excessive dependence on empirical information, corrupted any analysis of morality following it” (23).

3 Encontramos elementos importantes para uma teoria da acção em geral na Introdução da CFJ (ver, por exemplo, CFJ, Ak V, 172-173, 175 [52-54, 56], a distinção entre a causalidade mediante conceitos e a causalidade mediante o mecanismo, a distinção entre os princípios que são práticos de um ponto de vista técnico e aqueles que são práticos de um ponto de vista moral). Ver também, a este propósito, o capítulo segundo da Doutrina Transcen-dental do Método da CRP que contém noções importantes como as de prático, pragmático, etc.

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empírica”4. Competirá precisamente a uma tal analítica5, enquanto estudo sobre a

razão considerada do ponto de vista da sua relação com os nossos impulsos, dese-jos, apetites, inclinações, etc., facultar os elementos fundamentais que preparam a rejeição kantiana da possibilidade moral do princípio da felicidade. Passemos, então, ao estudo desses elementos.

1. Que Significa Desejar?

Na Crítica da Razão Pura, Kant apresenta o conceito de acção em geral como sendo um “predicável” subordinado à categoria da causalidade, ou seja, apre-senta o conceito de acção como sendo um conceito derivado do de causalidade, permitindo-nos deste modo compreender, genericamente, a acção como o fenó-meno pelo qual um agente, mediante o seu poder de ser causa de, produz um determinado efeito, uma determinada mudança, no mundo6. Ora, é precisamente a

tentativa de compreensão do funcionamento específico do poder causal exercido pelos seres racionais e, portanto, exercido pelo homem, que nos conduz ao conceito kantiano de faculdade de desejar (Begehrungsvermögen)7 ou de desejo (Begehren),

no sentido global do termo, e à sua respectiva definição:

“A faculdade de desejar é o poder que ele [um ser] tem de ser, pelas suas

representações, causa da realidade dos objectos dessas representações.”8

Esta definição não é absolutamente clara: porque se subtrai à explicitação de determinados aspectos, acaba por manifestar-se ambígua. Ao dizer da faculdade de desejar que é a faculdade que um ser tem de, através das suas representações, reali-zar os objectos correspondentes a essas mesmas representações, Kant convoca-nos de imediato à colocação de uma série de perguntas cuja resposta não alcançamos

4 Cf. Beck (1960) 76.

5 Utilizamos a expressão “analítica da razão prática empírica” com vista a sublinhar a orientação de fundo que presidirá a este primeiro momento da nossa investigação. Todavia, convém chamar a atenção para o facto de, por vezes, cairmos na análise de elementos que fogem ao domínio estrito da referida analítica. Uma tal atitude impõe-se por duas razões: por um lado, porque a natureza da exposição kantiana das matérias torna por vezes impossível o isolamento total dos elementos exclusivamente empíricos; por outro lado, porque a compreensão de alguns desses elementos só se clarifica a partir da relação que eles mantêm com a teoria moral propriamente dita.

6 Cf. CRP, Ak IV, 67 (A82/B108 [112]), 137-138 (A204-206/B249-251 [227-229]).

7 Na CRPr, Ak V, 58 (72) Kant chega a distinguir uma faculdade de desejar (Begehrungsvermögen) de uma faculdade de aversão (Abscheuungsvermögen) e na MCDV, Ak VI, 448 (94) fala-nos da atracção e da repulsa nas relações entre os homens.

8 CRPr, Ak V, 9n (17n, trad. corrigida): “Das Begehrungsvermögen ist das Vermögen desselben, durch

seine Vorstellungen Ursache von der Wirklichkeit der Gegenstände dieser Vorstellungen zu sein”. Ver ainda MCDD, Ak VI, 211 (15); CFJ, Ak V, 177n (85n). A definição de faculdade de desejar está imediatamente relacio-nada com a definição de vida, pois a vida é precisamente o poder de agir segundo as leis de uma tal faculdade (cf. CRPr, Ak V, 9n [17n]).

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rapidamente: O que são representações? Qual é especificamente a causa da reali-dade dos objectos das referidas representações? Um ser que representa? As suas representações? Essa realização dos objectos efectiva-se sempre? E se essa realiza-ção não se efectiva, ainda assim poderemos falar de causalidade?

A ausência de uma explicação rigorosa destes aspectos (ausência que parece, aliás, ter justificado algumas das objecções que foram dirigidas ao autor) obriga--nos a centrar a nossa atenção na defesa kantiana da própria definição de faculdade de desejar. Mas, antes de o fazermos, avancemos numa tentativa de sistematização da informação implicada ou contida na definição citada e comecemos por respon-der às primeiras questões que acima colocámos.

Se abrirmos um bom léxico da filosofia kantiana, como é o caso daquele que foi elaborado por Rudolf Eisler, na entrada “representação” (Vorstellung)9, somos

confrontados com o seguinte facto: não há nenhum momento em que Kant nos diga o que é uma representação; apresenta uma hierarquia das representações10, mas não

define exactamente um tal conceito. De qualquer forma – e, é certo, conscientes de que tudo aquilo que possamos afirmar de uma representação será ainda e sempre uma representação –, poderemos dizer que o referido termo, na filosofia de Kant, serve para designar todo e qualquer conteúdo da consciência. Dito de outro modo: “representação” é aquele conceito11 debaixo do qual cabe tudo aquilo que se

apre-senta à consciência do sujeito.

Definido o conceito de representação, a resposta que obtemos para a segunda questão colocada é, então, a seguinte: não são as representações que produzem os objectos; quem realiza os objectos é um ser que tem o poder de representar; é o homem, ser dotado de razão e, por conseguinte, ser dotado da capacidade de repre-sentar, que, através das suas representações, é causa da realidade dos objectos des-sas representações.

Repare-se como é pouco esclarecedora a definição kantiana de faculdade de desejar: por um lado, ela diz-nos que as representações não são quem produz os objectos; mas, por outro, faz das representações o meio sem o qual uma tal produ-ção não poderia ser levada a efeito, pois o homem é causa da realidade dos objectos das suas representações através das suas próprias representações.

Na Crítica da Faculdade de Julgar, em particular numa nota destinada à defesa da legitimidade da definição de faculdade de desejar, Kant parece ser um pouco mais explícito. Na verdade, o autor introduz aí um elemento que vem per-mitir, não só responder pontualmente à questão de saber quem é o verdadeiro

9 Cf. Eisler (1930) 922-923.

10 Cf. CRP, Ak IV, 203-204 (A320/B377 [312-313]): percepção, sensação, conhecimento, intuição, con-ceito, noção, ideia.

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ponsável pela realização dos objectos das representações, como também acaba por facultar-nos a solução para as outras questões colocadas.

“– A propósito de um procedimento semelhante (Crít. da R. Prát., p. 16 [9] do Prefácio) fizeram-me uma objecção e censuraram a definição da faculdade de desejar, como a faculdade de ser, através das suas representações, a causa

da realidade dos objectos destas representações. É que, diziam, simples

votos seriam então também desejos, em relação aos quais toda a gente se resigna a que só através deles não se pode produzir o respectivo objecto. – Porém, isto não demonstra outra coisa senão que existem também desejos no ser humano, pelos quais este se encontra em contradição consigo mesmo, na medida em que apenas através da sua representação esboça a produção do objecto, relativamente ao que ele não pode esperar qualquer sucesso, já que está consciente de que as suas forças mecânicas (se é que posso assim desig-nar aquelas que não são psicológicas), que teriam que ser determinadas atra-vés daquela representação para efectuar o objecto (por conseguinte, de forma mediata), ou não são suficientes ou, então, procedem a algo impossível, p. ex. tornar não acontecido aquilo que acontece (O mihi praeteritos, etc.) ou poder aniquilar, através de uma expectativa impaciente, o tempo que se estende até ao momento desejado. – Ainda que, em tais fantásticos desejos, estejamos conscientes da insuficiência das nossas representações (ou antes da sua inap-tidão) para serem causa dos seus objectos, todavia a relação dos mesmos como causa, por conseguinte a representação da sua causalidade, está contida em todo o voto e é particularmente visível quando este é um afecto, isto é,

ânsia. Na verdade estas demonstram assim que alargam e enfraquecem o

coração, esgotando deste modo as forças e que estas mesmas são repetida-mente postas em tensão mediante representações e nos deixam o ânimo cair de novo e incessantemente em esmorecimento, quando se dão conta dessa impossibilidade.”12

12 CFJ, Ak V, 177-178n (85n, trad. corrigida): “Man hat mir aus einem ähnlichen Verfahren (Krit. der prakt. V., S. 16 [9] der Vorrede) einen Vorwurf gemacht und die Definition des Begehrungsvermögens, als Vermögens durch seine Vorstellungen Ursache von der Wirklichkeit der Gegenstände dieser Vorstellungen zu sein, getadelt: weil blosse Wünsche doch auch Begehrungen wären, von denen sich doch jeder bescheidet, dass er durch dieselben allein ihr Object nicht hervorbringen könne. – Dieses aber beweiset nichts weiter, als dass es auch Begehrungen im Menschen gebe, wodurch derselbe mit sich selbst im Widerspruche steht: indem er durch seine Vorstellung allein zur Hervorbringung des Objects hinwirkt, von der er doch keinen Erfolg erwarten kann, weil er sich bewusst ist, dass seine mechanischen Kräfte (wenn ich die nicht psychologischen so nennen soll), die durch jene Vorstellung bestimmt werden müssten, um das Object (mithin mittelbar) zu bewirken, entweder nicht zulänglich sind, oder gar auf etwas Unmögliches gehen, z. B. das Geschehene ungeschehen zu machen (O mihi praeteritos, etc.) oder im ungeduldigen Harren die Zwischenzeit bis zum herbeigewünschten Augenblick vernichten zu können. – Ob wir uns gleich in solchen phantastischen Begehrungen der Unzulänglichkeit unseren Vorstellungen (oder gar ihrer Untauglichkeit), Ursache ihrer Gegenstände zu sein, bewusst sind: so ist doch die Beziehung derselben als Ursache, mithin die Vorstellung iherer Causalität in jedem Wunsche enthalten und vornehmlich alsdann sichtbar, wenn dieser ein Affect, nämlich Sehnsucht, ist. Denn diese beweisen dadurch, dass sie das Herz ausdehnen und welk machen und so die Kräfte erschäpfen, dass die Kräfte durch Vorstellungen

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Há pouco, a nossa dúvida era a de saber se a causa da realidade dos objectos das representações é o homem ou são as suas representações. Agora, ao introduzir um novo elemento – as forças mecânicas do homem, o seu poder físico – Kant permite-nos formular a resposta de um outro modo.

A compreensão adequada da definição de faculdade de desejar passa, do nosso ponto de vista, pela compreensão da faculdade de desejar como uma relação que se estabelece entre três termos: o homem, as suas representações e o seu poder físico. Ou melhor, como uma relação que se estabelece entre dois termos – as representações do homem e o seu corpo – no seio de um outro – o homem. Trata--se, agora, de perceber como é que se estabelece essa relação e quais os seus limi-tes. Para isso, comecemos por identificar o sentido da crítica que é dirigida a Kant. Essa crítica é formulável através da seguinte questão: como é que Kant pode defi-nir a faculdade de desejar como uma faculdade de produzir objectos se existem determinados tipos de desejo (o voto, por exemplo) que provam a inexistência de uma tal produção?

Na Antropologia, Kant define-nos o voto como sendo o desejo de um objecto que não é acompanhado pela aplicação das forças mecânicas do sujeito para a sua produção13, o que nos permite concluir que o voto não deixa de ser

desejo apenas porque não há produção do objecto. Assim, não é na produção do objecto que parece radicar o definiens da faculdade de desejar. Por outro lado, deveremos dizer da faculdade de desejar que ela não é tanto a faculdade de o homem ser, através das suas representações, causa da realidade dos objectos dessas representações, mas de o homem se determinar a ser causa dessa realidade14. Ora,

esta pequena alteração que introduzimos na definição da faculdade de desejar per-mite-nos clarificá-la, distinguindo nela dois momentos constitutivos, um funda-mental e um acidental: o momento em que nos determinamos a produzir os objec-tos das nossas representações e o momento da efectivação da própria produção. O primeiro momento é da responsabilidade do homem considerado do ponto de vista da sua faculdade de representar – é pelas representações que nos determinamos a ser causa da realidade dos seus objectos. Diferentemente, o segundo momento é da responsabilidade do homem considerado do ponto de vista do seu poder físico – a produção dos objectos é da competência das forças mecânicas, as quais, umas vezes, se revelam insuficientes para levar a efeito a própria produção, outras vezes, tendem mesmo para qualquer coisa de impossível.

wiederholentlich angespannt werden, aber das Gemüth bei der Rücksicht auf die Unmöglichkeit unaufhörlich wiederum in Ermattung zurück sinken lassen.”

13 Cf. Antrop., Ak VII, 251.

14 A ligeira modificação que acabamos de introduzir na definição de faculdade de desejar é-nos sugerida por uma passagem onde Kant dá uma definição de vontade muito próxima da definição de faculdade de desejar que temos vindo a analisar (cf. CRPr, Ak V, 15 [23]). Adiante, na secção 3. deste capítulo, será discutida a relação entre a faculdade de desejar e a vontade.

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Feitas estas considerações, obtivemos a resposta da segunda e da terceira questões que inicialmente dirigimos à definição de faculdade de desejar: (1) a causa da realidade dos objectos das representações é o poder físico do homem, o qual deve ser (mas não é necessariamente) determinado pelas representações a fim de produzir os objectos; (2) a realização dos objectos, ou a sua produção, nem sempre se efectiva (por exemplo, não se efectiva no voto: aliás, uma das características do voto é a de, nele, o sujeito estar consciente, no momento em que deseja, de que as suas forças mecânicas são insuficientes para a produção do objecto ou tendem para algo que é impossível).

Resta-nos, pois, responder à última questão: o facto de a produção dos objectos não suceder impede-nos de falar de causalidade na faculdade de desejar? Não. A noção de causalidade continua a ser aquilo que a define. Quando dissemos que a faculdade de desejar é a faculdade pela qual o homem se determina a ser, pelas suas representações, causa do objecto dessas representações, esse

determinar--se a ser deve ele mesmo ser entendido como causalidade. Façamo-nos entender:

ao distinguirmos na faculdade de desejar dois momentos (o momento em que nos determinamos, pelas nossas representações, a ser causa da realidade dos seus objectos e o momento em que a produção do objecto se efectua) e ao dizermos que um desses momentos (o primeiro) é essencial e o outro (o segundo) acidental, estamos a querer fazer radicar o aspecto fundamental da faculdade de desejar num acto de declaração de intenções e não num acto de realização de intenções. Efecti-vamente, o que é próprio do desejar, segundo Kant, é o facto de as representações do homem exercerem um efeito sobre o seu poder físico, seja esse poder físico suficiente ou não para o sucesso na produção do objecto. Concretizando: o facto de dos nossos votos não resultar a produção de qualquer objecto em nada evita que certas representações exerçam efeito sobre as nossas forças mecânicas. E é isto, esta relação causal entre representações e forças mecânicas, que é próprio da facul-dade de desejar. A ineficácia do corpo para a produção do objecto, no caso dos nossos votos, não constitui, por conseguinte, qualquer obstáculo à legitimidade da definição kantiana de faculdade de desejar. Prova apenas que o homem é um ser de contradições, um ser que deseja, por vezes, o próprio impossível (como, por exem-plo, desejar que algo que aconteceu não tivesse acontecido).

As limitações da crítica que, elaborada a partir da noção de voto, é dirigida à definição kantiana de faculdade de desejar acabam por traduzir a dificuldade em compreender que a causalidade que está em jogo no conceito de desejo em geral pode ocorrer de duas diferentes formas: pode ocorrer acompanhada ou não do seu correlato material.

Em suma: segundo Kant, não há desejos inconsequentes. Se, num desejo, o poder físico do homem é suficiente para a produção do objecto, não desejamos em vão. Estamos perante um desejo eficaz. Nele, a causalidade ocorre acompanhada

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do seu correlato material. O mesmo é dizer: nele, a causalidade é simultaneamente interior e exterior15, age no interior do sujeito e age também sobre o mundo. Mas,

se, num desejo, o poder físico é insuficiente para a produção do objecto, desejamos em vão. Estamos certamente perante um desejo ineficaz, mas não sem consequên-cias. Trata-se de um desejo que age apenas no interior do homem. E, porque num tal desejo a causalidade se dá apenas no interior do sujeito, ela deve ser chamada

causalidade interior.

O desejo, vão ou não, é sempre, pelo menos, um esforço por se ser, através da representação, causa da realidade do objecto dessa representação.

2. Acerca dos Apetites e da Sua Relação Necessária Com o Prazer

No tópico anterior, procurámos sobretudo analisar o tipo de mecanismo ou de funcionamento presente no desejo, considerando aqui o termo “desejo” no seu sentido mais abrangente. Mas uma questão, extremamente importante para o pros-seguimento da nossa investigação, esteve ausente naquilo que acabámos de anali-sar, nomeadamente, a questão de saber se, segundo Kant, o nosso desejar é todo ele da mesma espécie ou se, pelo contrário, há formas diferentes de desejar, formas de desejar inferiores e formas de desejar superiores16. A colocação desta pergunta

con-duz-nos imediatamente da definição de desejo em geral, ou de faculdade de dese-jar, à definição de desejo no sentido mais estrito deste termo ou de apetite (Begierde)17.

15 Cf. MCDD, Ak VI, 356-357 (173-174).

16 Na secção anterior, não considerámos a questão da natureza do desejo (ou da existência de uma forma inferior ou superior de desejar), já que, quando define a faculdade de desejar como sendo o poder de se ser, mediante representações, causa da realidade dos objectos dessas representações, Kant não parece estar preocupado com essa questão em particular (ainda que a terminologia utilizada na definição de faculdade de desejar, na defini-ção de prazer que, na CRPr, imediatamente se lhe segue e mesmo na defesa kantiana face às objecções dirigidas à definição da faculdade de desejar se adapte mais facilmente à ideia de uma faculdade de desejar inferior). Mas, porque a distinção entre uma faculdade de desejar inferior e superior é, como teremos ocasião de verificar, admi-tida pelo autor, convém chamar a atenção para o seguinte aspecto: os termos que entram na definição da faculdade de desejar (referimo-nos principalmente aos termos “representação” e “objecto”) têm naturalmente referentes diferentes dependentemente do facto de estarmos a pensar na faculdade de desejar inferior ou na faculdade de desejar superior; no caso específico da faculdade de desejar superior, a representação que está em jogo só pode ser a lei moral e o objecto dessa representação só pode ser a acção moral. Como tão bem nos esclarece Beck (1960) 92, a palavra “objecto” pode referir-se a duas coisas diferentes. No âmbito de uma analítica da razão prática empí-rica, a palavra “objecto” denota uma coisa física e os seus efeitos psicológicos e a produção de um tal objecto requer não apenas o conhecimento empírico das suas causas, como requer também a habilidade para a aplicação desse conhecimento. Diferentemente, no âmbito de uma analítica da razão prática pura, a palavra “objecto” refere--se tão somente a uma acto de decisão da vontade (considerado em si mesmo, independentemente das suas conse-quências) levado a efeito a partir de um determinado motivo (a lei moral).

17 O termo alemão Begierde ora é traduzido pela expressão “desejo propriamente dito” (Beck [1960] 90), ora é traduzido pelo termo “apetite” (Sullivan [1989] 27). Como nos temos vindo a referir a Begehrungsvermögen por “faculdade de desejar” e a Begehren por “desejo”, optámos por traduzir a maior parte das vezes Begierde por “apetite”.

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No seu Commentary, em particular quando procede ao estudo da definição kantiana de faculdade de desejar (ou de desejo em geral), Beck distingue nessa mesma faculdade um factor cognitivo, a representação, e um factor conativo ou dinâmico18, fazendo corresponder a este último a noção de apetite (Begierde)19. Do

nosso ponto de vista, julgamos talvez mais adequado dizer de um tal conceito que representa, não tanto um elemento constitutivo da faculdade de desejar (como a expressão “factor dinâmico” pode levar a crer)20, mas mais um modo específico de

funcionamento da mesma, ou melhor, um modo específico de determinação da faculdade de desejar, mediante o qual, aliás, a faculdade de desejar pode, neste caso, ser chamada de faculdade de desejar inferior e distinguir-se daquela a que Kant chama a faculdade de desejar superior21: referimo-nos à determinação da

faculdade de desejar por aquilo a que o filósofo dá o nome de prazer prático ou, dito de outro modo, à determinação da faculdade de desejar que o prazer prático deve preceder como causa22.

Uma vez que o conceito de apetite parece manter uma relação necessária com o de prazer (o de um prazer determinado, é certo), impõe-se, em primeiro lugar, saber o que entende Kant por prazer (Lust), enquanto este conceito se

rela-ciona com a faculdade de desejar23, para, posteriormente, compreender com uma

maior precisão o prazer que está em jogo quando se diz que, no apetite, o prazer

18 Cf. Beck (1960) 90.

19 Ao apetite Kant chama-lhe muitas vezes “impulso” (Antrieb) ou “móbil” (Triebfeder). Na FMC, Ak IV, 427 (64), Kant distingue Triebfeder (móbil: princípio subjectivo do desejar) de Bewegungsgrund (motivo: funda-mento objectivo do querer); todavia, na CRPr (no capítulo segundo da Analítica), o autor utiliza o termo Triebfe-der no sentido em que na FMC definia Bewegungsgrund, nomeadamente quando se refere à lei moral como móbil da vontade.

20 A opção de Beck, ao fazer do apetite o factor dinâmico da faculdade de desejar, só não nos parece muito feliz porque a própria definição kantiana de apetite contém em si mesma o factor cognitivo (a representação) a que Beck se refere. E isto porque, como teremos ocasião de verificar, os apetites são, para o próprio Kant, um determinado tipo de funcionamento da faculdade de desejar.

21 A faculdade de desejar superior distingue-se da faculdade de desejar inferior pelo facto de a primeira, diferentemente da segunda, nunca ser determinável pelo prazer. A admissão de uma faculdade de desejar superior corresponde, na filosofia moral kantiana, à admissão de uma razão prática pura. Neste nosso trabalho estará sobretudo em causa a faculdade de desejar inferior cuja satisfação se relaciona necessariamente com a razão prática empírica.

22 Cf. MCDD, Ak VI, 213 (16). A noção de prazer prático será posteriormente desenvolvida.

23 Fazemos questão em sublinhar o facto de nos interessar saber o que entende Kant por prazer, sobretudo enquanto este conceito se encontra relaciona com a faculdade de desejar, já que é circunscrito ao domínio desta relação que o conceito de prazer é relevante para a nossa investigação. Na verdade, não constitui aqui nosso pro-pósito levar a efeito uma análise do tema do prazer capaz de esgotar a multiplicidade das dimensões em que este ocorre na filosofia kantiana; queremos apenas olhar para um tal tema do ponto de vista específico da sua relevân-cia para a problemática da felicidade e, por conseguinte, impõe-se-nos, principalmente, reter as considerações kantianas acerca do prazer que julgamos importantes para uma melhor compreensão quer do conceito de felicidade quer da argumentação dirigida pelo autor contra o eudemonismo. Todavia, sempre que julgarmos útil para o nosso estudo mencionar qualquer aspecto que caia fora do âmbito específico da relação do prazer com a faculdade de desejar, não nos impediremos de o fazer.

(23)

prático é a causa da determinação da faculdade de desejar. Só assim, aliás, logra-remos um estudo mais completo da própria noção kantiana de apetite.

Ficou já estabelecido que a faculdade de desejar (ou o desejo, no sentido mais geral deste termo), é o poder que um sujeito tem de se determinar a ser, pelas suas representações, causa da realidade dos objectos dessas representações. Ora, o prazer é precisamente, segundo Kant, a ideia do acordo do objecto ou da acção com os nossos desejos ou, o que vai dar no mesmo, com a faculdade de desejar24. Mas

será suficiente falar do prazer como a ideia de um acordo? Estaremos nós a esgotar os aspectos essenciais do prazer ligado à faculdade de desejar ao dizer dele que é simplesmente a ideia de um acordo?

Se na leitura da passagem anterior tivermos como referência uma espécie de denominador comum à grande maioria das considerações kantianas sobre o prazer, deveremos reformular a definição de prazer apresentada, dizendo deste que não é tanto a ideia do acordo entre o objecto ou acção e a faculdade de desejar, mas que é mais o sentimento (Gefühl) que resulta da efectividade desse acordo: o ser

senti-mento parece constituir, na verdade, um aspecto essencial do conceito kantiano de

prazer. Por contraposição, poderemos dizer do desprazer que é precisamente o sentimento que resulta da efectividade do desacordo25 entre os referidos termos.

Todavia, afirmar que o prazer e o desprazer são sentimentos obriga a fazer um esclarecimento, pois a relação entre os termos “sentimento” e “(des)prazer” é pouco clara na filosofia kantiana, já que o primeiro termo parece poder relacionar--se com o(s) segundo(s) de dois modos diferentes. Façamos, então, esse esclareci-mento.

Quando o conteúdo de uma determinada experiência da nossa sensibilidade é de um tal tipo que, embora dependa da constituição psicológica do sujeito, pode servir para o conhecimento do objecto segundo a forma ou segundo a matéria, esse conteúdo chama-se, respectivamente, “intuição pura” ou “sensação” e a sua recep-tividade é o “sentido” (Sinn)26. Mas quando o conteúdo de uma determinada

experiência sensorial não pode tornar-se conhecimento porque ele não é senão a

24 Cf. CRPr, Ak V, 9n (17n). No caso de estar em jogo a forma superior de desejar, a definição de prazer poderia ser, mais especificamente, aquela que nos é sugerida na MCDV, Ak VI, 399 (34): no contexto da apresen-tação das qualidades morais que caracterizam a receptividade do sujeito ao dever, Kant define sentimento moral (moralische Gefühl) como sendo a capacidade de experimentar o prazer (Lust) ou o desprazer (Unlust) unicamente a partir da consciência do acordo ou da oposição entre a nossa acção e a lei do dever. Ora, esta definição de senti-mento moral parece autorizar-nos a inferir o conceito de um prazer moral, prazer esse que resultaria precisamente do acordo entre a nossa acção e a lei do dever.

25 A expressão que aqui utilizamos a propósito do conceito de desprazer (“a efectividade do desacordo”) procura respeitar o modo como Kant descreve a relação entre o prazer e o desprazer na Antropologia. A relação entre o prazer e o desprazer não é uma simples relação de opostos, mas é mais do que isso: é uma relação de contrários; tal como já havia estabelecido no seu Ensaio para introduzir na filosofia o conceito de grandezas negativas, o desprazer é mais do que uma simples negação do prazer, ele é uma sensação positiva, é o oposto real do prazer (cf. Grand. neg., Ak II, 180-181).

(24)

relação da representação com o sujeito27, então esse conteúdo chama-se

“senti-mento”28 e a receptividade (Empfänglichkeit) desse sentimento ou, se se quiser, a

capacidade do sujeito para o experimentar, chama-se também ela “sentimento”, a saber, o “sentimento de prazer e desprazer”29. O termo “sentimento” pode, por

conseguinte, significar duas coisas. Pode denotar uma das espécies da afecção geral da sensibilidade, sendo a outra espécie o sentido (Sinn)30 e, nesse caso, ele é a

receptividade de um sujeito ao prazer e ao desprazer suscitado por uma

representa-ção: pelo sentimento de prazer e de desprazer o sujeito sente como é afectado pela representação31. Mas o termo “sentimento” pode também significar os diversos

conteúdos dessa mesma experiência, isto é, pode também significar aquilo mesmo

que é sentido por uma tal capacidade: referimo-nos aos diversos estados de prazer

e de desprazer que o sujeito vai experimentando nas diversas situações, em tempos definidos.

Agora, uma vez esclarecida a relação que pode estabelecer-se entre os ter-mos “sentimento” e “(des)prazer”, torna-se claro que, quando dizeter-mos do prazer e do desprazer que são sentimentos, estamos a querer referir-nos aos conteúdos de uma determinada experiência sensorial, conteúdos esses que são duplamente sub-jectivos: os diversos estados de prazer e de desprazer são subjectivos no sentido em que as sensações o são, ou seja, enquanto dependem da constituição de um sujeito; e são também subjectivos no sentido em que se esgotam em si mesmos na simples relação entre a representação de um objecto e o sujeito, quer dizer, são apenas o efeito das representações (sejam estas representações sensoriais ou intelectuais) sobre o sujeito (sobre a sua sensibilidade), não revelando rigorosamente nada, do ponto de vista cognitivo, acerca dos objectos32.

Ora, qual a implicação mais imediata desta concepção de prazer e de despra-zer como sentimentos?

Se qualquer prazer ou desprazer nada contém que sirva para o conhecimento dos objectos, então tais sentimentos nunca podem ser atribuídos aos objectos como suas propriedades.

A nossa resposta à questão de saber o que entende Kant por prazer, conside-rado do ponto de vista da sua relação com a faculdade de desejar, conduziu-nos até

27 Cf. MCDD, Ak VI, 211n (16n2). 28 Cf. CFJ, Ak V, 206 (93).

29 Cf. MCDD, Ak VI, 211, 211n (15-16n2); CRPr, Ak V, 58 (72).

30 Se, como acontece por exemplo na CRPr, Ak V, 23 (33), o prazer é referido ao inneren Sinnes, não se trata do sentido interno (sensus internus) tal como este é apresentado na CRP, mas trata-se do sentido interior (sensus interior) ou da receptividade do sujeito ao prazer e ao desprazer tal como este é apresentado no § 15 da Antropologia.

31 Cf. CFJ, Ak V, 203-204 (89-90). Nesta mesma passagem, Kant designa esta receptividade do sujeito ao prazer e ao desprazer por “sentimento de vida” (Lebensgefühl).

(25)

agora ao reconhecimento de duas teses: (1) o prazer é um sentimento33; (2) do

ponto de vista referido, este sentimento exprime o acordo entre um objecto ou acção e a faculdade de desejar. Para que uma tal resposta se cumpra definitiva-mente, resta-nos introduzir uma terceira tese. O prazer é um sentimento. Este sen-timento exprime um acordo. Mas o prazer é um prazer em quê?

Na Doutrina do Direito, Kant distingue prazer prático de prazer contempla-tivo segundo um critério que podemos designar de critério da ligação, ou não, do prazer ao desejo do objecto (ou, o que vai dar no mesmo, à faculdade de desejar). O estabelecimento da terceira tese força-nos precisamente à compreensão do signi-ficado do critério utilizado na referida distinção.

“Pode chamar-se prazer prático ao prazer que está necessariamente ligado ao desejo (do objecto cuja representação afecta assim o sentimento), quer ele seja causa ou efeito do desejo. Pelo contrário, o prazer que não está necessa-riamente unido ao desejo do objecto e que, portanto, não é no fundo um pra-zer na existência do objecto de representação, mas unicamente está adscrito à representação, podemos chamá-lo prazer meramente contemplativo ou com-placência inactiva.”34

De acordo com esta passagem, o prazer prático é o prazer ligado ao desejo do objecto, independentemente de o prazer ser causa ou ser simplesmente efeito do desejo. Diferentemente, o prazer contemplativo (cuja análise não constitui para nós objecto de estudo) é o prazer que não está ligado a nenhum desejo do objecto, mas apenas à sua representação. Em que é que se converte este critério de distinção de prazeres? Converte-se no seguinte: o prazer prático é o prazer que se tem na

existência do objecto da representação35 e o prazer contemplativo é o prazer que se

tem na representação de um objecto mas indiferente à existência desse objecto.

33 A tese segundo a qual o prazer é um sentimento estende-se obviamente ao prazer estético; todavia, neste caso, o sentimento exprime antes um acordo entre um objecto ou acção e o trabalho das nossas capacidades de percepção e de imaginação.

34 MCDD, Ak VI, 212 (16): “Man kann die Lust, welche mit dem Begehren (des Gegenstandes), dessen Vorstellung das Gefühl so afficirt) notwendig verbunden ist, praktische Lust nennen: sie mag nun Ursache oder Wirkung vom Begeheren sein. Dagegen würde man die Lust, die mit dem Begehren des Gegenstandes nicht nothwendig verbunden ist, die also im Grunde nicht eine Lust an der Existenz des Objects der Vorstellung ist, sondern blos an der Vorstellung allein hastet, blos contemplative Lust oder unthätiges Wohlgefallen nennen kön-nen.”

35 Na MCDD, Ak VI, 212 (16), Kant identifica de forma inequívoca prazer prático com prazer na existên-cia do objecto de uma representação (independentemente de o prazer ser causa ou efeito do desejo do objecto). Todavia, na CRPr, ao afirmar que o prazer só é prático “enquanto a sensação de agrado, que o sujeito espera da realidade do objecto, determina a faculdade de desejar” (“als die Empfindung der Annehmlichkeit, die das Subject von der Wirklichkeit des Gegenstandes erwartet, das Begehrungsvermögen bestimmt”, CRPr, Ak V, 22 [32]), o autor não nos diz de modo explícito o que é que torna o prazer prático, se é o facto de ser um prazer na realidade do objecto ou se é o facto de ser o prazer enquanto este determina a faculdade de desejar.

(26)

Chegamos, deste modo, ao estabelecimento daquela que dissemos ser a ter-ceira tese constitutiva de uma possível explicação kantiana do prazer que se encontra ligado ao desejo: o prazer, na sua relação com a faculdade de desejar, é sempre um prazer na existência do objecto de uma representação. Mas o estabele-cimento desta terceira tese permite-nos agora retirar uma nova implicação.

Se o prazer ou o desprazer é sempre um efeito das representações dos objec-tos sobre a sensibilidade do sujeito, só através de uma experiência efectiva da sen-sibilidade do sujeito é que este pode saber se um sentimento de prazer ou de des-prazer surge com a presença de um objecto. Por conseguinte, o des-prazer ou o despra-zer na existência de um objecto só podem ser empiricamente conhecidos pelo sujeito. Só a experiência pode constituir para nós uma lição sobre o prazer que as coisas nos dão. Devemos, por conseguinte, reconhecer a impossibilidade de se estabelecer a priori uma relação de causa e efeito, respectivamente, entre uma qualquer representação de um objecto (sensação ou conceito) e o sentimento de um prazer ou desprazer36. Qualquer tentativa neste sentido não resultará senão numa

experiência elevada por indução a uma generalidade sempre frágil37.

36 Cf. CFJ, Ak V, 221-222 (111) e ainda 289 (191). No § 12 da CFJ (primeira passagem indicada), imediatamente após a formulação da regra segundo a qual é impossível saber a priori se uma certa representação de um objecto está ligada ao prazer ou ao desprazer, Kant abre uma excepção, remetendo-nos para o sentimento de respeito entretanto analisado na CRPr: “Estipular a priori a conexão do sentimento de um prazer ou desprazer, como um efeito, com qualquer representação (sensação ou conceito), como sua causa, é absolutamente impossível; pois esta seria uma relação de causalidade, que (entre os objectos da experiência) sempre pode ser conhecida somente a posteriori e através da própria experiência. Na verdade, na Crítica da Razão Prática, efectivamente deduzimos a priori, de conceitos morais universais, o sentimento de respeito (como uma modificação particular e peculiar deste sentimento, que justamente não quer concordar nem com o prazer nem com o desprazer que obte-mos de objectos empíricos). Mas ali nós podeobte-mos também ultrapassar os limites da experiência e invocar uma causalidade, ou seja, a da liberdade, que repousava sobre uma qualidade supra-sensível do sujeito” (“Die Verknünpfung des Gefühls einer Lust oder Unlust als einer Wirkung mit irgend einer Vorstellung (Empfindung oder Begriff) als ihrer Ursache a priori auszumachen, ist schlechterdings unmöglich; denn das wäre ein Causalverhältniss, welches (unter Gegenständen der Erfahrung) nur jederzeit a posteriori und vermittelst der Erfahrung selbst erkannt werden kann. Zwar haben wir in der Kritik der praktischen Vernunft wirklich das Gefühl der Achtung (als eine besondere und eigenthümliche Modification dieses Gefühls, welches weder mit der Lust noch Unlust, die wir von empirischen Gegenständen bekommen, recht übereintreffen will) von allgemeinen sittlichen Begriffen a priori abgeleitet. Aber wir konnten dort auch die Gränzen der Erfahrung überschreiten und eine Causalität, die auf einer übersinnlichen Beschaffenheit des Subjects beruhte, nämlich die der Freiheit, herbei rufen”). Depois de aberta e devidamente justificada a excepção à referida regra, o autor parece colocar uma reserva à sua própria excepção. Todavia, a reserva que Kant coloca, e que a seguir passaremos a equacionar, é de tal forma obscura que, do nosso ponto de vista, não encontramos razões suficientes para Kant fazer dela uma reserva. Kant diz-nos, então, aproximadamente o seguinte: na CRPr não foi propriamente o sentimento de respeito, mas a deter-minação da vontade, que nós derivámos. Porém, diz-nos o autor, o estado de ânimo de uma vontade determinada por qualquer coisa é já em si um sentimento de prazer e idêntico a ele. A nossa questão é, portanto, a seguinte: Kant abre ou não, para o sentimento de respeito, uma excepção à regra anteriormente estabelecida? A CRPr parece ter respondido a esta questão de forma claramente positiva: “O respeito pela lei moral é, pois, um sentimento que é produzido por uma causa intelectual e este sentimento é o único que podemos conhecer plenamente a priori e cuja necessidade podemos discernir” (“Also ist Achtung fürs moralische Gesetz ein Gefühl, welches durch einen intelectuellen Grund gewirkt wird, und dieses Gefühl ist das einzige, welches wir völlig a priori erkennen, und dessen Nothwendigkeit wir einsehen können” [CRPr, Ak V, 73 (89)]).

(27)

O prazer na existência do objecto da representação pode, como o enuncia a última passagem que referimos, relacionar-se com o desejo do objecto de dois dife-rentes modos: pode ser causa do desejo do objecto ou pode ser simplesmente seu efeito.

O prazer na existência do objecto da representação é simplesmente efeito do desejo quando ele não constitui o fundamento de determinação da faculdade de desejar; neste caso, o prazer na existência do objecto da representação segue-se a uma determinação anterior da faculdade de desejar por princípios puros da razão (e quando a faculdade de desejar não é determinada pelo prazer designa-se, como já dissemos, faculdade de desejar superior)38.

O prazer na existência do objecto da representação é causa do desejo do objecto quando ele constitui a mola que desencadeia o acto de determinação da faculdade de desejar, ou seja, quando ele constitui a própria condição da determi-nação da faculdade de desejar: neste caso X deseja Y porque espera prazer da existência de Y39.

Quando Kant distingue o prazer que é causa do desejo do prazer que é sim-plesmente seu efeito está, no fundo, a querer distinguir um prazer que é simulta-neamente causa e efeito do desejo de um prazer que é apenas efeito do desejo, pois o prazer que é causa do desejo (X deseja Y por causa do prazer que espera da sua existência) acaba por ser, a um outro tempo (quer dizer, uma vez satisfeito o desejo e, por conseguinte, obtido o prazer que se esperava da existência de Y), o efeito (um efeito patológico, é certo) do próprio desejo.

Centremos, pois, a nossa atenção no prazer que é causa da determinação da faculdade de desejar ou, dito de outro modo, no prazer que está indissociavelmente relacionado com os nossos apetites.

38 A este prazer que é efeito do desejo, Kant chama, na MCDD, “prazer intelectual” (cf. MCDD, Ak VI, 212 [17]) ou “interesse da razão” (por oposição ao “interesse da inclinação”: sobre a temática do interesse, veja-se adiante a secção 3. deste capítulo). Todavia, o vocabulário utilizado para designar o referido prazer nem sempre é o mesmo: termos como “sentimento de respeito” (cf. CRPr, Ak V, 78-79 [94-95]), “sentimento moral” (cf. CRPr, Ak V, 75 [91]; MCDV, Ak VI, 399 [34]), “prazer moral” (cf. Tom sup., Ak VIII, 395-396; MCDV, Ak VI, 378 [10]), “autocontentamento” (cf. CRPr, Ak V, 117-118 [136]) ou “contentamento intelectual” (cf. CRPr, Ak V, 117-118 [137]) constituem outras tantas possibilidades que o autor utiliza para designar aquilo a que, na MCDD, se refere como sendo o prazer que é simplesmente efeito do desejo. Convém, todavia, assinalar o seguinte: não é possível fundamentar com base em passagens do texto kantiano a correspondência terminológica entre todas estas expres-sões; por exemplo, quando, no capítulo terceiro da Analítica da CRPr, analisa o sentimento de respeito, Kant nunca o identifica explicitamente com o conceito de autocontentamento, que apenas introduz na Dialéctica da mesma obra; de qualquer forma, a descrição que faz de cada um deles apresenta elementos demasiado próximos para nos impedir que pensemos que não se trata da mesma coisa. Quanto a esta necessidade de o autor utilizar diferente terminologia para se referir a um mesmo objecto, talvez ela radique no facto de Kant, muito frequente-mente, querer considerar um mesmo objecto de pontos de vista diferentes ou querer, em diferentes momentos, sublinhar diferentes aspectos de uma mesma coisa.

39 O prazer que é causa do desejo não é senão o prazer que buscamos para satisfazer aquilo que posterior-mente designaremos por “carência da inclinação”.

(28)

Embora na Doutrina do Direito, em particular quando procede à distinção entre os dois tipos de prazer prático, o prazer que é causa do desejo não seja classificado através de nenhuma designação específica, ele parece, todavia, corres-ponder àquilo que, na Antropologia, Kant chama “agrado” (Vergnügen) e define do seguinte modo:

“O agrado é um prazer que se oferece através dos sentidos e o que agrada os sentidos é agradável. A dor é o desprazer transmitido através dos sentidos e o que a produz é desagradável.”40

O agrado e a dor (ou o prazer e o desprazer que nos são dados pelos senti-dos), enquanto sentimentos, ou seja, modificações particulares do sentimento de prazer ou desprazer, são, como dissemos anteriormente, simplesmente subjectivos e, justamente por essa razão, torna-se difícil explicá-los, a menos que por uma tal explicação se entenda a mera identificação dos resultados a que tais sentimentos conduzem. Esses resultados são fundamentalmente dois e vêm também eles enun-ciados na Antropologia. (1) Agrada-nos aquilo que, por meio dos sentidos, nos convida a permanecer no nosso estado; diferentemente, constitui para nós uma dor aquilo que, por meio do sentidos, nos incita a abandonar o estado em que nos encontramos. (2) O agrado promove as nossas forças vitais; contrariamente, a dor inibe-as41.

Uma vez classificado (sob a designação de agrado ou prazer dos sentidos) o prazer que é causa do desejo, compete-nos agora considerar o que a seu propósito Kant estabelece.

É sobretudo na Crítica da Razão Prática que vemos mais desenvolvida a análise kantiana do prazer enquanto princípio de determinação do desejo (ou sua causa), a qual alcança, do nosso ponto de vista, um dos seus momentos cruciais com o reconhecimento da legitimidade da tese epicurista segundo a qual o prazer é sempre da mesma espécie42. Discutamos, portanto, o alcance e o sentido deste

reco-nhecimento e isolemos, também, os alicerces em que se firma.

A subscrição kantiana da tese epicurista da homogeneidade do prazer deve ser compreendida dentro de certos limites, pois ela é levada a efeito, como acabá-mos de insinuar, no momento em que o nosso autor considera o prazer de um ponto de vista bem determinado, a saber, no momento em que considera o prazer

40 Antrop., Ak VII, 230: “Vergnügen ist eine Lust durch den Sinn, und was diesen belustigt, heisst

an-genehm. Schmerz ist die Unlust durch den Sinn, und was jeden hervorbringt, ist unanan-genehm.”

41 Cf. Antrop., Ak VII, 230-231. 42 Cf. CRPr, Ak V, 23 (33).

(29)

enquanto princípio de determinação da faculdade de desejar43. Dito de outro modo:

Kant afirma, com Epicuro, que o prazer é todo ele da mesma espécie quando o perspectiva como causa do desejo, e não como seu efeito. Efectivamente, quando se pronuncia acerca da natureza do prazer que é simplesmente efeito do desejo, isto é, do prazer que se segue a uma determinação anterior da faculdade de desejar ape-nas por princípios da razão (portanto, uma determinação da faculdade de desejar que em nada é afectada pelo prazer), Kant parece estar a referir-se a um prazer de espécie diferente44 ou a algo que nem um prazer é45.

Assim, o alcance do reconhecimento kantiano da legitimidade da tese epicu-rista segundo a qual o prazer é todo da mesma espécie deixa traduzir-se no seguinte: não importa que a representação de um objecto de cuja existência se espera prazer tenha origem nos sentidos, no entendimento ou mesmo na razão, pois

quando o prazer é o fundamento de determinação da faculdade de desejar, ou seja,

no caso em que o prazer é causa do desejo, ele é sempre da mesma espécie46. Para o

nosso autor, a afirmação da homogeneidade do prazer é, assim, manifestamente válida no quadro referencial de uma conduta marcada pela procura do prazer.

A justificação kantiana da tese segundo a qual o prazer, enquanto princípio determinante do desejo, é sempre da mesma natureza parece resolver-se funda-mentalmente em duas razões, a segunda das quais foi já aqui objecto de análise: (1) o agrado é sempre uma sensação animal, isto é, uma sensação corporal47, pois, na

43 Cf. CRPr, Ak V, 23 (33). Acrescente-se o facto de uma tal subscrição se situar por sua vez no contexto mais geral da crítica dirigida por Kant àqueles que fazem da origem das representações ligadas ao sentimento de prazer o critério de distinção entre a faculdade de desejar inferior e a faculdade de desejar superior.

44 CFJ, Ak V, 334-335 (242, trad. corrigida): “Portanto pode-se, como me parece, conceder a Epicuro que todo o agrado, mesmo que seja ocasionado por conceitos que despertam ideias estéticas, é uma sensação animal, isto é, corporal, sem com isso prejudicar minimamente o sentimento espiritual do respeito por ideias morais, que não é nenhum agrado, mas uma estima de si (da humanidade em nós), que nos eleva acima das nossas carências, sem mesmo prejudicar sequer o sentimento menos nobre do gosto” (“Man kann also, wie mich dünkt, dem Epikur wohl einräumen: dass alles Vergnügen, wenn es gleich durch Begriffe veranlasst wird, welche ästhetische Ideen erwecken, animalische, d. i. körperliche, Empfindung sei; ohne dadurch dem geistigen Gefühl der Achtung für moralische Ideen, welches kein Vergnügen ist, sondern eine Selbstschässung (der Menscheit in uns), die uns über das Bedürfniss desselben erhebt, ja selbst nicht einmal dem minder edlen des Geschmacks im mindesten Abbruch zu thun”). Ou ainda, CFJ, Ak V, 292 (194, trad. corrigida): “A satisfação proporcionada por uma acção em virtude da sua natureza moral não é nenhum prazer do gozo [o prazer do gozo é o prazer dos sentidos], mas da autoactivi-dade e da conformiautoactivi-dade desta à ideia da sua determinação” (“Das Wohlgefallen an einer Handlung um ihrer moralischen Beschaffenheit willen ist dagegen keine Lust des Genusses, sondern der Selbstthätigkeit und deren Gemässheit mit der Idee seiner Bestimmung”). Não é, aliás, sem razão que há quem defenda que os termos ale-mães Lust e Vergnügen se distinguem como o género da espécie (cf. Eisler [1930] 813, nota do tradutor).

45 Na CRPr, Ak V, 77 (93), com vista a sublinhar a natureza muito particular do sentimento de respeito, Kant chega a dizer dele que dificilmente pode ser considerado um sentimento de prazer (Lust) ou de desprazer (Unlust).

46 Cf. CRPr, Ak V, 23 (33). Ver ainda CFJ, Ak V, 266 (164).

47 Cf. CFJ, Ak V, 334 (242). Ou ainda: “O agrado (por mais que a sua causa possa encontrar-se também em ideias) parece consistir sempre num sentimento de promoção da vida inteira do homem, por conseguinte, também, do bem-estar corporal, isto é, da saúde” (“Vergnügen (die Ursache desselben mag immerhin auch in Ideen liegen) scheint jederzeit in einem Gefühl der Beförderung des gesammten Lebens des Menschen, mithin

Referências

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