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Resolução do Problema da Possibilidade do Soberano Bem

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 86-89)

O LUGAR POSITIVO DA FELICIDADE NA ÉTICA DE KANT

2. Resolução do Problema da Possibilidade do Soberano Bem

O modo como Kant opera a união entre as duas ordens anteriormente referi- das – a ordem da moralidade e a ordem da felicidade – emerge da reconsideração daquela proposição que é tida como sendo a antítese constitutiva da antinomia da razão prática, isto é, daquela proposição que coloca a intenção virtuosa como gera-

12 CRPr, Ak V, 113 (133, trad. corrigida): “[…] alle praktische Verknüpfung der Ursachen und der Wirkungen in der Welt, als Erfolg der Willensbestimmung sich nicht nach moralischen Gesinnungen des Willens […], richtet […].”

dora de felicidade. Do ponto de vista do nosso autor, esta proposição não é absolu- tamente falsa, mas apenas condicionalmente falsa. Quer dizer, é falsa apenas sob a condição de se tomar a relação de causa e efeito, estabelecida, respectivamente, entre “intenção virtuosa” e “felicidade”, como uma relação puramente mecânica (portanto, segundo as leis do mundo sensível) e, por consequência, sob a condição de uma visão redutora da existência do ser racional (nomeadamente aquela que concebe a existência no mundo sensível como o único modo de existência do ser racional). Assim, no momento em que é superada uma tal concepção da existência do ser racional e se concebe, paralelamente a essa mesma superação, uma outra forma de causalidade que não a mecânica, a proposição que faz da felicidade um efeito da moralidade ganha uma nova expressão. Qual, então, a especificidade de uma tal conexão causal?

Esta, Kant define-a nos seguintes termos:

“Porém, visto que não estou apenas autorizado a conceber a minha existência também como númeno num mundo inteligível, mas que tenho mesmo na lei moral um fundamento de determinação puramente intelectual da minha cau- salidade (no mundo sensível), não é impossível que a moralidade da intenção tenha, como causa, com a felicidade, como efeito no mundo sensível, uma conexão necessária, se não imediata, apesar de tudo mediata (por intermédio de um autor inteligível da natureza), conexão essa que, numa natureza que é simplesmente objecto dos sentidos, jamais pode ter lugar a não ser aciden- talmente e não pode ser suficiente para o soberano bem.”13

Ao compreender a existência do ser racional também como existência num mundo inteligível e, mais do que isso, ao conceber a lei moral como “fundamento de determinação puramente intelectual” de uma vontade que age num mundo sen- sível, Kant apresenta-nos a conexão causal entre virtude e felicidade como a cone- xão de uma causa inteligível com um efeito sensível e julga garantir, deste modo, a possibilidade de a moralidade da intenção constituir causa da felicidade, ainda que o espaço compreendido entre aquela e este reclame ser preenchido pela acção de um “autor inteligível da natureza”.

A exigência que aqui vemos ser reclamada por esta forma de causalidade mediatizada radica, em última instância, na ausência, na lei moral, de um funda- mento para uma conexão necessária entre moralidade e felicidade, a qual parece

13 CRPr, Ak V, 114-115 (134, trad. corrigida): “Da ich aber nicht allein befugt bin, mein Dasein auch als Noumenon in einer Verstandeswelt zu denken, sondern sogar am moralischen Gesetze einen rein intellectuellen Bestimmungsgrund meiner Causalität (in der Sinnenwelt) habe, so ist es nicht unmöglich, dass die Sittlichkeit der Gesinnung einen, wo nicht unmittelbaren, doch mittelbaren (vermittelst eines intelligibelen Urhebers der Natur) und zwar nothwendigen Zusammenhang, als Ursache mit der Glückseligkeit, als Wirkung in der Sinnenwelt habe, welche Verbindung in einer Natur, die blos Object der Sinne ist, niemals anders als zufällig stattfinden, und zum höchsten Gut nicht zulangen kann.”

decorrer de duas razões em particular: 1. a lei moral determina a vontade do ser racional independentemente da natureza e do acordo desta com a faculdade de desejar; 2. a vontade do ser racional que age na natureza não é, todavia, causa da natureza14. Postas estas condições, devemos, segundo Kant, concordar que existe

um ser moral criador da natureza que, agindo de acordo com a representação da lei, goza do poder de distribuir a felicidade em função do mérito de se ser feliz.

Solucionada nestes termos a antinomia da razão prática15 e depois de

definidos os limites fundamentais aos quais se deve circunscrever a compreensão da possibilidade do soberano bem16, o nosso autor escreve:

“Mas porque a possibilidade de uma tal ligação do condicionado [a felici- dade] com a sua condição [a moralidade] pertence totalmente à relação suprassensível das coisas e não pode ser dada segundo leis do mundo sensível […], procuraremos, pois, expor os princípios dessa possibilidade […].”17

Embora pela solução da antinomia tenha ficado estabelecida como possível uma conexão necessária entre moralidade e felicidade, com esta passagem Kant não só reitera a impossibilidade de uma tal conexão se operar segundo as leis da natureza como, e por consequência, dá conta da necessidade de levar a efeito uma exposição dos princípios que fundamentam a própria resolução da antinomia. A exposição desses princípios mais não é do que aquilo a que vulgarmente se chama a doutrina kantiana dos postulados.

14 Cf. CRPr, Ak V, 124 (143).

15 Philonenko (1972) 165 reconhece no conceito kantiano de autocontentamento (Selbstzufriedenheit) a saída para a solução da antinomia da razão prática, como se o conceito de autocontentamento, enquanto conceito que representa uma espécie de felicidade moral, encerrasse em si mesmo a justa proporção da felicidade em rela- ção à conduta moral desenvolvida por cada um. Ora, esta afirmação contém, do nosso ponto de vista, um erro, pois essa espécie de felicidade moral que o conceito de autocontentamento representa não tem rigorosamente nada que ver com a felicidade que está em causa na antinomia, a saber, uma felicidade que é sobretudo um sentimento físico. É certo que é precisamente depois de apresentar a noção de autocontentamento, na Dialéctica da CRPr, que Kant afirma que “[d]esta resolução da antinomia da razão prática segue-se que…” (“[a]us dieser Auflösung der Antinomie der praktischen reinen Vernunft folgt, dass…”) (CRPr, Ak V, 119 [138]) e esta ordem na exposição das matérias terá sido, eventualmente, a razão que conduziu Philonenko ao referido reconhecimento; todavia, quando faz tal afirmação, Kant está a referir-se, não ao conceito de autocontentamento que acabou de apresentar, mas à concepção de uma certa espécie de causalidade que alguns parágrafos antes tinha enunciado, a saber, uma concep- ção segundo a qual uma causa inteligível produz um efeito sensível. Efectivamente, a solução kantiana da antino- mia não passa pela reformulação dos termos constitutivos da antinomia; passa, antes, pela concepção da natureza da relação que se estabelece entre tais termos.

16 Referimo-nos, em particular, ao estabelecimento dos “estatutos” atribuídos aos elementos constitutivos do soberano bem: a moralidade é condição da felicidade; a felicidade é uma consequência moralmente condicio- nada (cf. CRPr, Ak V, 119 [138]).

17 CRPr, Ak V, 119 (138): “Weil aber die Möglichkeit einer solchen Verbindung des Bedingten mit seiner Bedingung gänzlich zum übersinnlichen Verhältnisse der Dinge gehört, und nach Gesetzen der Sinnenwelt gar nicht gegeben werden kann […], so werden wir die Gründe jener Möglichkeit […] in Ansehung dessen […], darzustellen suchen.”

O procedimento metodológico que, a seguir, utilizaremos para abordar uma tal doutrina não visará tanto a análise de cada um dos postulados em particular, mas procurará, fundamentalmente, circunscrever-se à determinação específica do conceito de postulado, do tipo de necessidade subjectiva subjacente ao próprio acto de postular e, finalmente, do modo de ser do sujeito que postula.

3. Acerca das Condições de Resolução do Problema da Possibilidade do

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 86-89)