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Acerca das Condições de Resolução do Problema da Possibilidade do Soberano Bem: A Doutrina Kantiana dos Postulados

No documento A Felicidade na Ética de Kant (páginas 89-100)

O LUGAR POSITIVO DA FELICIDADE NA ÉTICA DE KANT

3. Acerca das Condições de Resolução do Problema da Possibilidade do Soberano Bem: A Doutrina Kantiana dos Postulados

Iniciaremos esta nossa secção com a determinação negativa do conceito de postulado, ou seja, começaremos por dizer desde já o que um postulado (Postulat) da razão pura prática não é.

“[…] a expressão de um postulado da razão pura prática podia sobretudo ocasionar uma falsa interpretação, se se confundisse o seu sentido com aquele que têm os postulados da matemática pura, os quais comportam uma certeza apodíctica. Mas estes postulam a possibilidade de uma acção, cujo objecto se conheceu a priori, teoricamente e com toda a certeza, como sendo possí-

vel.”18

Kant está aqui, claramente, a advertir-nos para que não confundamos o con- ceito de postulado tal como este ocorre no domínio da razão pura prática com aquele que é próprio do uso dos matemáticos da sua época. Ora, “na matemática, um postulado é uma proposição prática, que apenas contém a síntese pela qual damos a nós próprios um objecto e produzimos o seu conceito”19.

Assim, o que parece fazer do postulado, no seu uso matemático, uma propo- sição prática é, tão somente, o facto de este se deixar traduzir no enunciado de uma técnica e de, enquanto tal, indicar o procedimento pelo qual construímos um objecto e realizamos, por aí, o conhecimento do mesmo; objecto, aliás, cuja possi- bilidade está teoricamente assegurada porque determinada a priori. Como simples regra para a realização da síntese de um objecto na intuição, o postulado não vem acrescentar rigorosamente nada àquilo que ficou estabelecido a priori, pelo que subtrair-lhe o seu carácter utilitário significa também subtrair-lhe todo o seu interesse. Na realidade, o que está em jogo não é ainda a possibilidade de um

18 CRPr, Ak V, 11n (20n, trad. corrigida): “[…] der Ausdruck eines Postulats der reinen praktischen Vernunft konnte noch am meisten Missdeutung veranlassen, wenn man damit die Bedeutung vermengte, welche die Postulate der reinen Mathematik haben, und welche apodiktische Gewissheit bei sich führen. Aber diese postuliren die Möglichkeit einer Handlung, deren Gegenstand man a priori theoretisch mit völliger Gewissheit als möglich voraus erkannt hat.”

19 CRP, Ak III, 198 (A234/B287 [251]): “[…] heisst ein Postulat in der Mathematik der praktische Satz, der nichts als die Synthesis enthält, wodurch wir einen Gegenstand uns […] geben und dessen Begriff erzeugen.”

objecto, aqui apodicticamente legitimada, mas a possibilidade de uma acção cuja regra constitui o conteúdo postulado.

Um postulado da razão pura prática não é, em suma, uma proposição prática teoricamente assegurada. Todavia, também não é, como nos diz Kant na Dialéctica da Crítica da Razão Prática, uma hipótese, na ocorrência teórica deste termo20.

“Uma carência da razão pura no seu uso especulativo leva unicamente a

hipóteses, mas a carência da razão pura prática conduz a postulados; efecti-

vamente, no primeiro caso, a partir do derivado elevo-me tão alto quanto

quero na série das causas e preciso de uma causa primeira, não para dar reali-

dade objectiva àquele derivado […], mas somente para satisfazer plenamente a este respeito a minha razão perscrutadora.”21

O ser hipótese ou o ser postulado parece radicar, respectivamente, numa carência da razão especulativa ou numa carência da razão pura prática. Sem considerarmos, por agora, a segunda possibilidade e, portanto, a carência da razão pura prática conducente à ideia de postulado, vejamos apenas o que o nosso autor entende, neste contexto, por hipótese e procuremos determinar aquilo a que essa mesma hipótese parece vir responder.

Em ciência, uma hipótese consiste numa espécie de cognição22 que espera ser

elevada à categoria de certeza através da confirmação dos factos. Contudo, não é sequer este o sentido de hipótese explicitamente considerado na afirmação mencio- nada. Kant parece estar a referir-se a um tipo de hipótese que, reclamado por uma necessidade meramente subjectiva da razão especulativa (nomeadamente, a necessidade de a razão se elevar cada vez mais na série das causas em direcção ao incondicionado), não pode, todavia, ascender à categoria de conhecimento, mani- festando assim a sua competência enquanto mera explicação para determinados fenómenos (é o que acontece com a hipótese da existência de Deus para explicar a ordem e a finalidade da natureza). Resta ainda acrescentar que a carência que pre- side a um tal processo de investigação, levado a efeito pela razão, só é legítima enquanto tal, quer dizer, enquanto carência da razão, porque goza de um fundamento objectivo, a saber, aquele que respeita à existência de um conceito

20 Poder-se-á, contudo, conceder o nome de hipótese a um postulado da razão pura prática se lhe acrescentarmos o predicado “necessária”, diferentemente de uma hipótese introduzida pelo simples querer da razão especulativa (cf. CRPr, Ak V, 11n [20]). Kant também se refere aos postulados práticos como pressupostos (cf., por exemplo, Orientar-se, Ak VIII, 141 [49]).

21 CRPr, Ak V, 142 (161, trad. corrigida): “Ein Bedürfniss der reinen Vernunft in ihrem speculativen Gebrauche führt nur auf Hypothesen, das der reinen praktischen Vernunft aber zu Postulaten; denn im ersteren Falle steige ich vom Abgeleiteten so hoch hinauf in der Reihe der Gründe, wie ich will, und bedarf eines Urgrundes, nicht um jenem Abgeleiteten […] objective Realität zu geben, sondern nur um meine forschende Vernunft in Ansehung desselben vollständig befriedigen.”

problemático – no caso mencionado, o conceito de um ser absolutamente necessá- rio – que se pretende determinado23. Com base no que acabámos de expor, diremos

então, de um postulado da razão pura prática, que não é também ele uma hipótese de competência meramente explicativa.

Se um postulado da razão pura prática não é uma proposição prática teori- camente garantida, nem uma mera hipótese permitida pela razão especulativa, qual a fórmula kantiana para a definição positiva de postulado?

A resposta a esta questão implica um esclarecimento prévio, nomeadamente no que diz respeito àquilo mesmo a que Kant atribui o nome de postulado. Com efeito, podemos verificar na Crítica da Razão Prática uma certa oscilação na apli- cação deste termo, o qual tanto ocorre a designar as condições necessárias para a realização do soberano bem num mundo possível24 como parece também, por

vezes, referir-se à própria possibilidade do soberano bem25 e à lei moral26. Todavia,

porque, quando apresenta a possibilidade do soberano bem como postulado, Kant está mais a utilizar uma designação geral capaz de abarcar o conjunto das condi- ções necessárias de tal possibilidade e porque a apresentação da lei moral como postulado é explicitamente negada numa outra passagem da obra27, podemos assu-

mir que o termo “postulado”, a rigor, se destina a referir privilegiadamente aquelas mesmas condições. Referimo-nos a Deus, à liberdade28 e à imortalidade da alma29.

Mas deste esclarecimento emerge ainda um problema, o qual diz respeito ao “conflito” existente entre a ocorrência do conceito de liberdade como postulado na Dialéctica da Crítica da Razão Prática e a ocorrência do conceito de liberdade

como fundamento dos postulados (de Deus e da imortalidade da alma) na Analítica

dos Princípios da mesma obra. Ora, este conflito obriga a que compreendamos o conceito de liberdade numa dupla acepção, determinada pela especificidade do contexto em que ele ocorre.

Na Dialéctica, o sentido de liberdade que está em jogo pressupõe, mas não se identifica primeiramente, com a autonomia da vontade e, portanto, com a faculdade que a vontade tem de agir independentemente de toda a condição empírica, isto é, de agir segundo a forma de uma legislação universal. Aqui, o conceito de liberdade parece encontrar-se muito próximo daquele que Kant introduziu no apêndice inti- tulado “Exame crítico da analítica da razão pura prática” com o propósito de res- ponder à questão que interroga pela possibilidade de chamar-se inteiramente livre a 23 Cf. CRPr, Ak V, 142n (161n). 24 Cf. CRPr, Ak V, 132 (151-152). 25 Cf. CRPr, Ak V, 125 (144). 26 Cf. CRPr, Ak V, 46 (58). 27 Cf. CRPr, Ak V, 132 (151).

28 Kant refere-se indiferentemente às leis da liberdade ou de um mundo inteligível (cf. CRPr, Ak V, 132 [151] e 137 [156]).

um ser que, num mesmo momento e em relação a uma mesma acção, se encontra, no entanto, submetido a uma necessidade natural inevitável30, ou seja, com o propó-

sito de responder à questão que interroga pela possibilidade de chamar-se livre a um ser, todavia, finito. Falamos de uma concepção de liberdade que, radicando obviamente na autonomia da vontade, procura sobretudo pôr em evidência a capa- cidade que o sujeito tem de agir contra as exigências que a sua própria finitude reclama. A liberdade é aqui muito mais a responsabilidade, entregue ao ser racional mas finito, de pôr em exercício a sua moralidade.

Feitos estes esclarecimentos decorrentes da ambiguidade em que se instala o uso do termo “postulado da razão pura prática”, avancemos pois com a definição positiva de postulado.

Por postulado da razão pura prática entende Kant “uma proposição teórica, como tal, porém, não demonstrável, na medida em que está inseparavelmente ligada a uma lei prática que tem a priori um valor incondicionado”31.

Um postulado merece, do ponto de vista daquilo que nele se postula, o nome de proposição teórica. Efectivamente, o seu conteúdo deixa traduzir-se especifica- mente na afirmação da possibilidade (realidade objectiva)32 ou da existência33 de

determinados objectos – em particular, daqueles objectos que constituem em si mesmos as condições necessárias de possibilidade do soberano bem. Todavia, embora seja uma proposição teórica, um postulado é indemonstrável como propo- sição teórica e, como tal, porque do ponto de vista da razão especulativa ele será sempre isento de certeza apodíctica, não poderá servir qualquer propósito teórico. Assim, a questão a colocar é precisamente a de saber por que motivo uma tal pro- posição teórica é indemonstrável como proposição teórica. A resposta a esta inter- rogação, ou seja, a justificação da indemonstrabilidade, pela razão especulativa, da referida proposição, competiu à Crítica da Razão Pura pô-la em evidência: os objectos cuja possibilidade ou existência é aqui postulada não nos são dados por nenhuma intuição, ou seja, ultrapassam os limites de toda a experiência possível, fora dos quais nenhum conhecimento pode constituir-se. E, por este motivo, as proposições teóricas constitutivas dos postulados não podem em si mesmas ser consideradas conhecimentos.

Desta forma, vemos aquela nossa questão dar lugar a uma outra de primor- dial interesse: se o postulado é uma proposição teórica, mas não teoricamente certa, o que o justifica? Qual a necessidade que pode fundamentar uma proposição a que a razão especulativa apenas concede o benefício de um estatuto hipotético?

30 Cf. CRPr, Ak V, 95 (111).

31 CRPr, Ak V, 122 (141, trad. corrigida): “[…] einen theoretischen, als solchen aber nicht erweislichen Satz verstehe, so fern er einem a priori unbedingt geltenden praktischen Gesetze unzertrennlich anhängt.”

32 Cf. CRPr, Ak V, 135 (154). 33 Cf. CRPr, Ak V, 134 (153).

Ao dizer-nos que a proposição teórica na qual se resolve um postulado está inseparavelmente ligada a uma lei prática incondicionalmente válida, Kant logo nos conduz ao modo da necessidade que reclama o próprio conteúdo postulado: a necessidade que justifica um postulado é uma necessidade subjectiva, uma carên-

cia (Bedürfnis), diz Kant, da razão pura prática34. Trata-se de uma necessidade

reconhecida pelo sujeito em relação a si mesmo e, mais particularmente, em rela- ção às leis objectivas, mas práticas, da (sua) razão35, pelo que aquilo que dela

decorre visa servir a razão no seu uso prático. Avancemos, pois, numa análise mais detalhada desta carência, de modo a determinar o seu carácter intrínseco e o fun- damento em que repousa.

A admissão da existência de uma coisa não constitui em si mesma um dever – e isto é assim porque não pode haver o dever de admitir a existência do que quer que seja, caso contrário estaríamos equivocadamente a atribuir ao uso prático da razão uma competência cujo exercício apenas diz respeito ao uso teórico da mesma. Por este motivo, fica definitivamente estabelecido que a necessidade que preside à formulação dos postulados não é objectiva. Todavia, embora seja uma necessidade subjectiva, uma carência, ela deriva de um princípio objectivo deter- minante do querer36. Referimo-nos à lei moral, ou seja, a uma lei incondicional-

mente válida que se nos oferece como um facto da razão (ein Faktum der Ver-

nunft)37. Assim sendo, torna-se conveniente determinar o espaço que preenche a

distância entre dois termos, a saber, entre uma lei que tem a priori um valor incon- dicionado e a carência que postula. Ora, a lei moral, porque obriga necessariamente todo o ser racional a fazer do soberano bem objecto da sua vontade, autoriza-o a supor a possibilidade desse objecto e, por conseguinte, autoriza-o a supor as condi- ções necessárias dessa mesma possibilidade.

Determinado agora o embrião da carência específica da razão conducente à afirmação dos postulados, torna-se inclusivamente mais claro o que entende Kant por um postulado. Este último manifesta-se, afinal, como a única resposta ade- quada ao reconhecimento do princípio fundamental da moralidade: devemos pos- tular a existência de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade, porque o soberano bem é um objecto necessário da vontade e estas são as condições necessárias para a possibilidade do soberano bem. Um postulado é, assim, uma proposição teórica assegurada praticamente.

34 Cf. CRPr, Ak V, 125 (144). 35 Cf. CRPr, Ak V, 11n (20n). 36 Cf. CRPr, Ak V, 143n (163n).

37 Cf. CRPr, Ak V, 47 (59). Sem querer aqui desenvolver esta noção kantiana de facto da razão (porque isso seria fugir ao nosso objecto de estudo), vale a pena, todavia, chamar a atenção para uma frase, sucinta mas extremamente feliz, de Rousset (1967), que constitui, do nosso ponto de vista, uma boa chave para a compreensão de um tal facto: “Le factum rationis est donc plutôt le fait de l’existence de la raison en nous que l’existence d’un fait donné à notre raison” (527).

A afirmação dos postulados enquanto proposições teóricas que reunem em si mesmas as condições necessárias requeridas pela vontade para que esta considere o prescrito pela lei moral parece radicar, a limite, na própria lei moral, ainda que a distância desta àqueles seja mediatizada pelo conceito de soberano bem. E neste sentido, isto é, na qualidade de hipóteses necessárias de um ponto de vista estrita- mente prático, os postulados vêm conferir às Ideias da razão especulativa uma rea- lidade objectiva.

Resta agora saber até que ponto é legítimo obter de uma carência a realidade objectiva do objecto (Gegenstand) específico dessa mesma carência. A resposta a esta questão é-nos facultada por Kant numa nota curiosa da Dialéctica da Crítica

da Razão Prática:

“No Deutsches Museum de Fevereiro de 1787, encontra-se um tratado de um espírito muito fino e lúcido, o falecido Wizenmann, cuja morte prematura é de lamentar, em que contesta o direito de, a partir de uma carência, concluir a realidade objectiva do seu objecto, e explica o assunto mediante o exemplo de um apaixonado que, ao enamorar-se loucamente por uma ideia de beleza que é apenas uma quimera, queria concluir que um tal objecto existe algures realmente. Dou-lhe aqui plenamente razão em todos os casos em que a carên- cia se funda na inclinação […].”38

A discussão que deve presidir à afirmação da legitimidade ou ilegitimidade do acto pelo qual se obtém, a partir de uma carência, a realidade objectiva do seu objecto deve ser deslocada em direcção ao problema prévio de determinação dos fundamentos em que repousa a própria carência. E nesta ordem de ideias, há que proceder, sem hesitação, a uma distinção decisiva, designadamente entre uma carência fundada na inclinação e uma carência fundada na razão. Ainda que ambas gozem de um denominador comum, nomeadamente o facto de serem em si mesmas carências, isto é, necessidades subjectivas, os fundamentos a partir dos quais uma e outra derivam são claramente diferentes. Uma carência fundada na inclinação é uma carência que promana de um princípio subjectivo dos desejos (desejo desme- suradamente x e daí concluo que x existe). Uma carência fundada na razão deriva de um princípio determinante objectivo da vontade (a lei moral): se a razão reco- nhece na lei moral um princípio absolutamente válido, se a lei prescreve uma determinada acção e se essa acção só é realizável sob a condição da possibilidade

38 CRPr, Ak V, 143n (163n, trad. corrigida): “Im deutschen Museum, Febr. 1787, findet sich eine Abhan- dlung von einem sehr feinem und hellen Kopfe, dem sel. Wizenmann, dessen früher Tod zu bedauren ist, darin er die Befugniss, aus einem Bedürfnisse auf die objective Realität des Gegenstandes desselben zu schliessen, bes- treitet und seinem Gegenstand durch das Beispiel eines Verliebten erläutert, der, indem er sich in eine Idee von Schönheit, welche blos sein Hirngespinst ist, vernarrt hätte, schliessen wollte, dass ein solches Object wirklich wo existire. Ich gebe ihm hierin vollkommen recht, in allen Fällen, wo das Bedürfniss auf Neigung gegründet ist […].”

do soberano bem, são então de admitir as condições fundamentais dessa possibili- dade. Simplificando a argumentação: eu devo acreditar que x é possível porque y é absolutamente certo e obriga incondicionalmente a z e x é necessário para a reali- dade objectiva de z.

Só num tal contexto é legítimo, segundo Kant, concluir de uma carência – cuja propriedade fundamental radica no facto de ser uma carência da razão (Vernunftbedürfnis) – a realidade objectiva do seu objecto. Trata-se, todavia, agora, de uma objectividade diferente daquela que é própria de um conhecimento, uma objectividade que apresenta como marca específica o facto de repousar sobre uma lei prática apodíctica. Referimo-nos, por conseguinte, a uma objectividade prá- tica39: a lei coloca-nos perante a realidade objectiva das Ideias da razão especula-

tiva na exacta medida em que uma tal realidade se manifesta como sendo a condi- ção necessária daquilo a que essa lei obriga40.

Importa agora trazer à discussão um aspecto fundamental que tem permane- cido omisso. Embora estejamos de acordo com Kant em que a carência que preside à formulação do postulado é uma carência da razão, será legítimo continuarmos de acordo com Kant quando este atribui o predicado de pura a essa razão?

Uma carência é, por definição, uma necessidade subjectiva, uma necessidade do sujeito e, mais particularmente, a necessidade de um sujeito que, para realizar o seu dever e, portanto, para considerar o prescrito pela lei, precisa de acreditar que isso mesmo a que a lei obriga é objectivamente exequível. Neste sentido, embora se trate efectivamente de uma carência cujo fundamento é um princípio objectivo determinante do querer, trata-se sempre já de uma carência, isto é, de uma necessi- dade subjectiva de um ser finito. Na verdade, para Kant, a lei moral obriga à realização do soberano bem mas não reclama, pelo menos sob o carácter de obrigatoriedade, a admissão de qualquer proposição teórica. É o sujeito que por contingências da sua própria natureza, uma natureza sempre já cindida que não dispõe do poder necessário para assegurar a sua felicidade pelo exercício da mora- lidade, precisa de admitir tais proposições. Dito de outro modo: a carência que

39 Rousset (1967) caracteriza devidamente esta nova concepção de objectividade nos seguintes termos: “Bien qu’elle soit ‘pratique’ ‘l’objectivité pratique’ au sens strict […], puisqu’elle ne pose pas des devoirs et ne détermine pas des objets à produire par l’action, mais qu’elle concerne les conséquences de la loi et les conditions du bien” (547).

40 Este processo pelo qual, para Kant, é assegurada a realidade objectiva das Ideias da razão especulativa transporta consigo uma implicação fundamental, já que ele torna possível uma extensão da razão teórica e do seu conhecimento sobre o suprassensível em geral, ao permitir que os conceitos problemáticos desta última sejam “agora assertoricamente declarados como tais, correspondendo-lhes realmente objectos” (“jetzt assertorisch für solche erklärt werden, denen wirklich Objecte zukommen”) (CRPr, Ak V, 134 [153]). Todavia, embora a razão prática nos coloque perante a realidade desses objectos, porque deles não recebemos nenhuma intuição e, conse- quentemente, porque não é possível a partir da realidade que lhes é reconhecida (uma realidade fundada pratica- mente) formular qualquer juízo sintético, dizemos da extensão da razão teórica que não é uma extensão da espe- culação. E isto significa que o uso que a razão teórica fazia das suas Ideias (referimo-nos à purificação da razão

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